A insularidade real e imaginaria em Ilhas Contadas de Helena Marques.
Rector, Monica
A vida nao e a que nos vivemos, mas a que nos recordamos quando
queremos conta-la.
Gabriel Garcia Marquez (frase citada pela autora)
Helena Marques e autora de cinco romances e de um livro de contos.
Ilhas contadas (2007) contem dez contos que se passam entre o ir e o
estar em ilhas diversas. A maioria dos contos sao narrativas
memorialistas, sobre um passado e suas consequencias no presente, ou o
gosto de mel ou de fel numa permanencia temporaria voluntaria ou
obrigatoria numa ilha. As protagonistas sao mulheres maduras e com a
maturidade vem a sabeduria, a minimizacao dos conflitos e a saudades do
tempo passado ou perdido. Os sentimentos e as emocoes permeiam a
narrativa e o desfecho e quase sempre premeditado, estudado ou analisado
pelas personagens. Segundo entrevista que foi feita a autora (Correio da
Manha), ha um amadurecimento ficcional que imita a realidade. "Era
muito mais intransigente e exigente quando era mais nova. A idade tem
essa grande vantagem de desvalorizacao de umas coisas e valorizacao de
outras. Quanto mais vivemos mais sentimos que os afectos sao as balizas
das nossas vidas. Afectos e valores sao as coisas mais basicas da vida,
da familia, da sociedade, do pais e do mundo, isto funciona assim, como
circulos concentricos".
Viagens a ilhas
Como area fechada de dificil acesso, em geral, a ilha e simbolo
para algo especial ou perfeito. Ir ou sair de uma ilha implica uma
viagem. Muitas sao as formas e as razoes que impulsionam um
deslocamento, por isso "viagem" e uma termo polissemico, que
pode abranger varias significacoes. As viagens podem ser reais ou
imaginarias, mas convergem num ponto: "a busca pelo desconhecido, a
surpresa da novidade, sejam as tensoes originadas nas
confrontacoes/defrontacoes de outras formas diferentes de ser, pensar,
sentir, agir, realizar, imaginar" (Sousa 2).
As viagens em Ilhas contadas tem origens diversas. A recordacao do
passado, o reavivamento da memoria, o desejo da auto-descoberta, o
esclarecimento de fato pressentidos, mas nao sabidos, sao algumas das
motivacoes para os deslocamentos.
A questao do imaginario das aguas tem um valor simbolico. Ajudam a
descobrir-se a si mesmo, buscando um sentido para a propria existencia.
O mundo insular nesta obra e simbolizado pelo casulo. A ilha e um casulo
magico, pois e o lugar de refugio. A morte e a dor da separacao ai se
fazem presentes mais intensamente, devido a condensacao dos sentimentos
num lugar tao diminuto. Ai a essencia pode revelar-se.
A ilha tambem propicia o confronto entre dois espacos geograficos e
traca a diferenca entre o aspecto psicanalitico interno e o externo do
individuo, mostrando uma nova dimensao do ser. E a "eterna busca de
si mesmo, de modo que a propria inquietacao do homem o impulsiona para o
novo, para melhor compreender a vida em todos seus misterios, na
tentativa de ser mais feliz", diz Mari Guimaraes Sousa ao analisar
O conto da ilha desconhecida de Jose Saramago (6).
Ja Maria Luisa Baptista, ao examinar a insularidade na novelistica
de Manuel Lopes, divide a insularidade em tres aspectos: 1. a
insularidade geo-historica, 2. a insularidade socio-cultural, e 3. a
insularidade vivencial. A insularidade geo-historica propicia uma
insularidade socio-cultural e uma insularidade existencial, isto e,
vivencial. Ja a insularidade socio-cultural implica o afastamento da
patria, o esquecimento, e a necessidade de agir em dificeis
circunstancias enquadradoras (22). As tres insularidades podem ser
encontradas em Ilhas contadas. De todas estas insularidades, o
isolamento faz parte integral e delineia uma consciencia de identidade.
Relacionar-se com a ilha e dentro da ilha exige uma adequacao as
condicoes ambientais.
A insularidade vivencial e a mais acentuada em Ilhas contadas,
apesar de nao assemelhar-se a viajar sem sair da habitacao, como Xavier
de Maistre o fez em Voyage autour de ma chambre e Almeida Garrett em
Viagens na minha terra. Mas as viagens de Garrett sao multiplas, viagem
sem sair do quarto para escrever, viagem com deslocamento a Santarem, e
viagem pela Historia de Portugal. Helena Marques viaja ao passado das
personagens para que estas possam resgatar o presente. A viagem e um
desbravamento dos conflitos intimos em busca de uma explicacao para as
duvidas atraves da memoria. Nao ha o dilema do "querer
bipartido", ou seja, do "ter de partir querendo ficar" e
"ter de ficar querendo partir", num o jogo das forcas
centripeta e centrifuga (Baptista 27), esta ambiguidade so se faz
sutilmente presente.
A ilha, em Helena Marques, serve de contexto para a narrativa se
desenvolver. E um lugar unitario onde a emocao das personagens tem um
livre fluir e uma tranqulidade que lhe da acesso a particulas do
passado, escondidas na rede relacional das preocupacoes, dos desejos e
interesses. Ha a expectativa, mas tambem as surpresas do inesperado e da
descoberta e, em alguns casos, da contra-surpresa.
As ilhas desde sempre deslumbraram e estimularam o imaginario dos
povos. Sao fragmentos de terra, que despontam a intimidade e plasmam a
solidao. As esto rias de Ilhas contadas descrevem a natureza de cada uma
das ilhas, com sua aridez e vegetacao, com as ondas apaziguadoras e
revoltas, envolvendo personagens com seus sentimentos de prazer e de
dor. "Estar de passagem ou permanentemente marcar a indole do
individuo, sao dois tempos marcados pela presenca da ilha ou distancia
dela" (Correio).
Vejamos os contos. Helena Marques comeca cada conto com uma
epigrafe, algumas em portugues, outras em ingles. Vamos nos deter nas em
portugues. Uma leitura de todos estes paratextos nos permitiria uma
compreensao de toda a obra, e certamente nos da um vislumbre de cada
conto, como Joao Guimaraes Rosa o fez em Corpo de baile.
A funcao principal do paratexto e um comentario ao texto, indicando
de forma indireta o significado do mesmo. Desta forma, a autora estimula
o leitor a elaborar uma hipotese antecipada sobre o conteudo do conto.
Tomamos a liberdade de, para alguns contos, escolher uma frase do
proprio texto como epigrafe.
Regresso a Iona
Ha um tempo para cada coisa e um ritmo para cada tempo (21).
Iona e uma ilha escocesa, do arquipelago das Hebridas. Seus
primeiros habitantes foram nomades, que la chegaram entre 5.000 a 6.000
a.C. Nela, Camila e Daniel estao em sua segunda viagem depois de quinze
anos. Naquela epoca--a da primeira viagem a "verdade quotidiana
consistia apenas em duvidas e temor" (13). Ambos haviam tido
multiplos casamentos. No presente, queriam "soltar toda a
verdade", numa tentativa de apagamento da inseguranca da juventude
e numa busca do autoconhecimento.
Para eles, Iona era uma pureza primordial (15). O mar mais parecia
um lago. Vagueavam e caminhavam pelos campos com o mar no horizonte,
"sentindo a insubstituivel companhia do outro" (17). O mar
representava a incerteza, a duvida interior das pessoas, mas "a fe
move montanhas". O casal avista o mar por todos os lados, permeado
pelo silencio. Este silencio imperturbado faz com que o tempo e as horas
estejam suspensas. A contemplacao leva os dois "a outra dimensao de
vida, a um outro plano de qualidade" (19).
"Se tivessemos vinte anos, amariamos assim este lugar?".
Nao souberam responder. "Mas concordamos quanto a sabedoria da
maturidade" (20). A primeira visita a ilha foi "no tempo da
esperanca", a volta e "no tempo das certezas" (21).
A ilha, neste conto, ocupa o lugar de memoria, do compromisso com a
verdade. A mesma ilha e vivida e sentida de forma diferente, segundo a
idade e a experiencia das pessoas. O tempo fica suspenso na visita
temporaria, simbolizando a incerteza na juventude e a certeza na
sabiduria da maturidade.
Os despojos
Nao se deve exigir de uma pessoa aquilo que ela nao tem para dar
(33).
Esta frase do conto de Helena Marques explica a escolha da epigrafe
de Sophia de Mello Breyner, que abre este conto:
Peco-te que venha e me des
Um pouco de ti mesmo onde eu habite.
Horta e uma cidade portuguesa com cerca de 8.800 habitantes na
regiao dos Acores. E chamada de ilha azul pelo poeta Raul Brandao,
devido as hortencias nos meses de verao.
La vive uma senhora idosa, Maria da Luz, sem mobilidade nas pernas,
quase nao fala e se comunica por meio de caneta e papel. Lucia, filha do
irmao mais velho dela, viuva, viaja a ilha quando pode. Ambas sao
"mulheres solares" (26). Lucia deriva de luz, e o sol, a
verdade. As noras, que cuidam de Maria da Luz, mais parecem abutres da
morte. Lucia lembra-se da tia no passado, como sendo uma mulher bonita,
generosa, sensivel e inteligente, interessada por tudo e por todos. O
narrador (omnisciente em 3a pessoa) poe a atencao nos pequenos detalhes,
na estrutura ossea, como que captando o momento presente, que esta se
extinguindo. Recorda os pormenores, mostrando que a memoria se faz de
fragmentos minimos, de intersticios da memoria. Narra a importancia do
afeto que a velha senhora havia dado para auxiliar Lucia a refazer sua
vida, para reaprender a viver: "tinha-a resgatado do apagamento e
da desistencia" (30).
Toda a narrativa e configurada a partir de flashbacks do passado. A
tia a ensinara a ler: "foi com a tia que Lucia aprendeu a entrar
num livro e a entende-lo, substituindo a leitura impaciente e voraz que
lhe era natural, por uma caminhada mais lenta, atenta e abrangente,
muito mais compensadora" (31).
Salvador, o marido de Maria da Luz, olha a esposa com desafeto. Nao
sobrara "a menor centelha de afecto, nem de compreensao, nem da
mais espontanea simpatia humana, o olhar daquele homem parece protestar
contra o dever que o leva, quotidianamente, aquele quarto ..."
(32). O marido so ve o lado externo fisico, o interno lhe e
desconhecido, mas Lucia o apreende com sua intuicao feminina. A tia da a
ela um papel onde escrevera: "Nao se deve exigir de uma pessoa
aquilo que ela nao tem para dar" (33). Lucia sente raiva, mas
entende e repete a frase. Depois sente pena de Salvador, que considera
Maria da Luz apenas como ela, um pronome e nao um ser humano. Cabe a
Lucia, filha da luz, iluminar Salvador, para que ele entenda que a
esposa nao o havia abandonado.
As duas mulheres mostram um instinto de autopreservacao mutua,
iluminandose e irradiando luz a outros. Novamente, Marques mostra ao
leitor a sabedoria da maturidade e a compreensao da velhice contra a
falta de entendimento dos mais jovens e, nesse caso, do sexo masculino,
seres apressados para quem a vida e o aqui e o agora. A pressa e o
consumo do tempo na juventude da lugar a quietude e ao apreco do tempo
na maturidade.
O rapto segundo Teodora
E de Maria Teresa Horta a epigrafe que inicia este conto:
Desde o comeco que conheco
Que es o porto--a gare
Onde se chega--onde se parte.
Carlota e a sobrinha que viera do Brasil, de Araraquara, no
interior de Sao Paulo, depois de uns 24 anos de ausencia. Memorias lhe
veem a mente. O marido de Carlota havia falecido fazia cinco anos. Ela
tinha uns 35 anos de idade.
Bruno, filho da tia Teodora, a acompanhou ao hotel. Nesta ilha,
Funchal na Madeira, havia crepusculos como nao havia no Brasil. Carlota
tinha saudades da ilha. Funchal foi o lugar de chegada para o encontro
de si mesma para logo tornar-se o lugar de partida para uma nova vida.
Surge um romance entre Carlota e Bruno, que decide ir ao Brasil e, por
isso, passou a ser considerado o Desaparecido, A Vitima, o Raptado (45).
Carlota, uma mulher, era a responsavel pelo rapto. O par havia chegado
"demasiado cedo a uma sociedade preconceituosa e castradora"
(46).
Ha um hiato temporal na narrativa, que agora se volta para
Margarida, bisneta de Teodora. Esta e convidada para ir de Sao Paulo, a
Araraquara especificamente. Margarida pensa, em retrospectiva, que
Carlota e Bruno deveriam ter feito este mesmo percurso. Ha flashbacks de
um imaginario de Margarida, visualizando o carro em que viajaram, os
campos e o caminho que percorrreram. Depois imagina que deveriam ter
consultado um advogado, ja que ela era uma viuva rica e ele solteiro. Ao
chegar ao seu destino, com sua amiga Rosa Linda, ambas ficaram
hospedadas em casa da mae da amiga, Abigail. Esta discorre sobre a
geografia das refeicoes, a visita a fazenda tombada. Recorda a historia
da cidade e relembra--ja que Margarida era portuguesa--um medico
portugues, que falecera ja com idade avancada, logo apos a esposa,
"como se ja nao soubesse--ou nao quisesse--viver sem ela"
(50). Formarase medico pela Universidade de Sao Paulo. Fora um
happy-end, Margarida pensou.
Os olhos azuis de Margarida lembravam os de Bruno--a sua identidade
e relevada de repente: Margarida era uma sobrinha-neta de Bruno. E entao
foi a vez dela, da narradora em terceira pessoa, contar a sua versao do
"rapto", um rapto feminino onde a memoria de um amor feliz e
de recordacoes reconstroi um passado, segundo uma outra visao composta a
partir do ouvir dizer e do imaginar.
A guia de Patmos
O Livro do Apocalipse guia os passos pela ilha, assim como a
epigrafe do apostolo Joao. Patmos e uma pequena ilha da Grecia a 55 km
da costa da Turquia, no mar Egeu. E uma das ilhas do Dodecaneso, e
possui uma populacao de uns 3.000 habitantes, com capital em Hora (ou
Chora), as vezes erroneamente chamada Patmos. A ilha e dividida em duas
partes quase iguais, uma do norte e outra do sul, unidas por um estreito
istmo.
Despina, Maria em grego, e a guia da excursao. Lucas e de Coimbra e
esta apenas fazendo turismo. Preferiu viajar com desconhecidos do que
com uma companhia desagradavel, pois havia acabado de desfazer-se de uma
relacao. As religioes o fascinavam, as existentes, "reveladas"
(56) e as construidas sobre "ilusoes consentidas" ou por
"uma iluminada fe". As marcas do passado prendiam-no a ilha,
assim como outrora acontecera com o apostolo Joao. Este havia sido
condenado em Patmos e fora ai, numa gruta que escreveu o Livro do
Apocalipse. Seu desejo de visitar o Mosteiro de Sao Joao--que estaria
fechado por tres dias--produziu raiva em Despina. Nao era um local
turistico. Mas, devido a calma que Lucas exalava, propos leva-lo a um
convento de freiras do seculo xvii. O mal-estar se desfez, ela abriu-se
e comecou a revelar o passado da ilha e ate mesmo chegou a rir. Um ar de
enlevo os uniu e ela pediu que voltasse um dia para ver o mosteiro. Ele
reagiu positivamente e o desfecho ficou no ar, em aberto, restando o
mosteiro como pretexto de ligacao entre ambos e de reavivar uma memoria
enraigada no passado distante.
Mais do que a memoria, este conto e sobre o momento epifanico, a
dissolucao do conflito, que se da pela serenidade e permite a relacao, a
comunicabilidade.
A segunda mulher do Coronel Miller
Porto Santo e um municipio que ocupa toda a ilha de Porto Santo, na
regiao da Madeira, com seus 5000 habitantes. Nesta ilha ha um hotel com
excesiva tranquilidade. Tome, seu hospede, ali se encontrava porque sua
avo lhe pagara a viagem para escrever um relatorio, que precisava ter
caracteristicas vencedoras para sua promocao no banco. Ele luta
diariamente "contra a opacidade do seu cerebro" (68). O papel
em branco diante dele equivale a espuma das vagas do Atlantico que se
desfazem sem deixar marcas. Luta tambem contra a maquina de escrever.
Este silencio se interrompe com a visao de uma mulher em negro. Logo foi
informado tratar-se de Mrs. Miller, segunda esposa e viuva do Coronel
Miller. Elsa Miller ama a beleza de Porto Santo, com sua dimensao tao
reduzida. Sua "vida se resume a uma sufocante solidao, a uma cama
vazia, a uma mesa quase sempre solitaria, a uma par de maos sem nada
para agarrar" (71).
Sybill e Andrew Miller foram os amigos mais proximos de Mrs.
Miller. Ao recordar e repensar, ela da-se conta que amava Andrew, sem
percebe-lo quando ele estava ao seu lado. "Viver sem reconhecer o
que se viveu nao sera o pior dos castigos?" (71). Julga que ele
sabia de seus sentimentos, pois ela tinha estado casada por afeto e
companheirisimo, mas nao conhecera o grande amor. Tenta recuperar o
tempo perdido na imaginacao, enquanto le os Apontamentos de guerra do
falecido marido. Tome a percebe nos minimos detalhes, adivinhando a
maciez de sua pele. Entre o nao-relatorio e a presenca de Mrs. Miller
opta pela segunda. "Tome pensa que ela e a personificacao da
harmonia e fica a ve-la afastar-se sobre a areia molhada" (73) em
seu maillot e chapeu lilas. Ela percebe Tome e decide que nao valeria a
pena dar-lhe atencao, talvez apenas por uns minutos. Logo, em seguida,
ela partira para a Inglaterra para encontrar-se com o editor para uma
possivel publicacao dos Apontamentos, enquanto Tome continua com seu
"bloqueio criativo, nao consegue pensar, e melhor nao insistir, nao
vale a pena, nao vale mesmo a pena ..." (79).
A solidao e o vazio da vida continuam sistematicamente. O conto
mostra a inconsciencia dos sentimentos no presente em que se esta
vivendo. A angustia da solidao de estar so e a mesma angustia da solidao
do processo da escrita. Para Tome, o fracasso de nao escrever o
relatorio seria recompensado se pudesse voltar com uma mulher, sua
mulher. O processo tanto da conquista como da escrita fica no
imaginario. Ha apenas a ilusao, ja que ela parte, sem que ele se
apercebesse que tal fato fosse ocorrer. Nunca se comunicaram, o
pensamento so tem sentido quando posto em acao e para isto palavras sao
necessarias. As palavras sao a unica forma de comunicabilidade ja que o
pensamento nao se materializa quando nao ha um receptor e um canal para
transmitir a mensagem. Os pensamentos precisam ser transformados em
signos.
Morte em Mdina
Mdina e a antiga capital de Malta. E uma cidade medieval cercada de
muralhas no topo de uma colina no centro da ilha. E chamada de
"cidade silenciosa", com uma populacao diminuta. Num hotel
neste topo esta hospedada Filipa Novais, que acorda no meio da noite com
um medo e uma ansiedade imensa, a ponto de telefonar para Koli em Lisboa
para reanima-la. Este sugere que verifique o trinco da porta e se a
janela esta fechada. Koli, Nicholas Gaudi, e Filipa mantinham um
sentimento de empatia um pelo outro. Ele lhe mostrara Creta pela
primeira vez.
Filipa tem uns trinta anos, cabelos quase brancos e arritmia. Koli
lhe tinha sugerido ir a Malta, onde ele ja estivera varias vezes. Filipa
tenta adormecer de novo lendo um livro sobre as deusas, que lembra o
romance A deusa sentada de Helena Marques, com suas "deusas
fecundas, maternais e inspiradoras" (88). Ao descer ao saguao do
hotel de manha encontra-se com Koli e dois policiais. Estupefata, e
informada que o tiro que a acordara de madrugada tinha sido real, haviam
matado um homem no quarto vizinho ao dela, que estava envolvido em
drogas. De noite, quando ela havia telefonado a Koli dizendo-lhe de sua
inquietacao e de achar que um homem na rua estava olhando para sua
janela, Koli telefonou para o inspetor de policia, relatando o fato, o
que permitiu que prendessem o assassino ao fazer o check-out. Agora
havia o pretexto de Koli seguir na ilha--havia trazido uma mala--e assim
ambos puderam ter a "capacidade de se deslumbrar e comover perante
a beleza unica desta ilha" (92). Os dois que antes haviam sido
compagnons de route, agora tinham o seu destino modificado e selado pela
necessidade da companhia mutua constante.
Este conto relata um outro momento epifanico em que o acaso
modifica o destino. Ao contrario dos contos anteriores, onde a
imaginacao impera, em "Morte em Mdina", a suposta imaginacao e
a propria realidade.
O retrato
A epigrafe de Eugenio de Andrade abre este conto:
Estes mortos dificeis
Que nao acabam de morrer
Dentro de nos.
Este morto e o pai de Maria Amelia. Em que ilha a narrativa se
desenrola? Este conto e "Prima Frederica" nao mencionam o nome
da ilha. Perguntando a Helena Marques se a omissao fora intencional, a
autora responde: "Antes do livro ter nome definitivo, achei que
repetia muito as referencias a Madeira. Quando me decidi quanto ao
titulo, nao me lembrei deste facto" (email de 08/08/2010).
A mae de Maria Amelia lhe havia dado um retrato de carvao para
guardar quando tinha quatro anos. O retrato era de uma figura masculina.
Desde cedo se viu sem pai. A mae recasara passados apenas dois anos de
viuvez. Maria Amelia era melancolica, mas havia algo de rebelde nela,
como em Jane Austen, que se tornara independente como escritora, e que
acreditava que para ser livre, a mulher precisa de "independencia
economica". Maria Amelia casara-se, nao era feliz, mas nao se
queixava. O marido nao havia permitido que pendurasse o retrato que era
o de seu pai. As tias tinham pena da menina triste que perdera o pai em
tao tenra idade. Mas as tias, apesar de infecundas, tinham a alegria de
viver. Maria Amelia imaginara que o pai havia sido um homem triste,
quando lhe disseram que morrera de emocao, festejando a vida. Este foi o
turning point, o momento de epifania, que permitiu que reconstruisse o
seu interior (104). O sorriso voltou a sua face, as modas inspiradas por
Paris deram leveza e sensualidade ao seu corpo. Achou-se bonita. Voltou
a aceitar convites, a frequentar a roda social e artistica. Sua tia mais
velha, Ana, falece e lhe deixa quase todos os bens. Sentindo-se
financeiramente segura, procede ao divorcio. Lagrimas purificadoras dao
leveza a uma vida sacrificada. A melancolia dissipa-se. Maria Amelia se
instala na casa que era de sua tia Ana com os filhos. Tem autonomia
agora. Duas pessoas permitiram que tal acontecesse: o pai e a tia. E o
retrato do pai ganhou o lugar que lhe pertence, exposto na sala, com
nova moldura dourada.
Este conto permite uma leitura feminista. Relata a dificuldade da
mulher que sem apoio e autonomia financeira perde sua liberdade. Para a
emancipacao da mulher, ha a necessidade de seguranca financeira para
ganhar-se autonomia. Marques tambem enfatiza neste, como em outros
contos, as importancia da familia, de seu apoio e da presenca paterna na
infancia.
O casulo
Uma epigrafe de David Mourao Ferreira inicia este conto na ilha de
Hydra, no mar Egeu. O nome desta ilha grega significa agua. Seu porto,
com suas ruas ingremes de pedra, sao convidativas ao dolce far niente.
A nossa noite ontem a tarde
Foi a manha por que esperavamos.
Esta epigrafe lembra a "Modinha" de Vinicius de Morais:
De manha escureco
De dia tardo
De tarde anoiteco
De noite ardo.
Valentina aprendera que "ha sempre tempo util para dizer o que
se quer. Mas nunca e possivel retirar o que ja se disse" (112).
Vivia numa casa com a mae e a avo depois que o pai falecera. Da avo
aprendera o perfeccionismo e que "orgulho e aprumo nao sao
defeitos" (112-3), se houver bom-senso.
Ela esta no conves do navio a caminho de Hydra. Casara-se e o sonho
se desfez em tres anos. Apos o divorcio voltou a antiga casa.
"Valentina acreditava, cada vez mais, que o excesso de intimidade
arruina as relacoes humanas" (114). E uma mulher
"acolhedora", mas "magoa-se e sofre" (117) com as
aparencias, que desilusionam. "A sua vida nao foi facil, com a
morte prematura do pai e o descalabro do casamento" (117).
Novamente temos a morte prematura de um pai, que tanta influencia a vida
de uma jovem. Valentina viaja junto com duas amigas: Ema e Rosa. Estao
fascinadas pela ilha, que parecia ser so pedra, mas logo revela una
natureza fascinante. O silencio so e perturbado com o som da chavena de
cha.
Valentina recorda o passado, a morte da avo e que esta experiencia
lhe trouxera o terror da impotencia e da inevitabilidade dos fatos. Nao
tivera filhos e agora defronta-se com a futura morte da mae, um
flashforward nada agradavel. Pensa em Xavier, uma nova relacao, e como
este a necessita. Telefona-lhe e diz um "ate amanha". A ilha,
o casulo magico, lhe deu a tranquilidade para pensar no passado e no
futuro e sentir-se agora numa posicao de equilibrio para enfrentar a
vida.
A ilha e o lugar de reflexao e paz, longe do cotidiano, um
parentese com poder transformador.
Prima Frederica de arma na mao
Historias de amor eram comuns no seculo xix. Frederica teve a
felicidade ou infelicidade de viver um romance destes. A outra
personagem, Jose Arcanjo, tem um nome angelical, que bem poderia estar
ocultando algo demoniaco pela sua preferencia por mulheres ricas. Foi
numa festa que se encontraram, mas ela dao lhe deu acesso, apenas
aceitou o convite para o dia seguinte. E naquela noite, "Frederica,
numa espontaineidade que o arrebatou, desenfiou os bracos das mangas
compridas em gestos leves de bailado, e logo toda a ascetica, hermetica
camisa de dormir se transformou num cachecol ..." (127).
Engravidou. Mas Jose Arcanjo nao tomou a iniciativa de uma casamento,
porque uma alcoviteira lhe havia insinuado uma senhora de quarenta anos.
Valentina, vestida de negra, saiu de arma em punho, mas a criada impediu
que atirasse nele.
Ha um corte na narrativa, que se volta para a lembranca da prima
Frederica aos 70 anos. Diziam ter sido bela. Jose Arcanjo ja morrera, a
mulher com quem casara nunca lhe deu filhos. Nem Frederica o tinha
perdoado, se era isto o que esperava. Trata-se de recompor o passado,
com fatos e imaginacao. O que resta de uma vida e apenas uma lenbranca e
a mensagem do conto.
Uma pista em Jersey
E de Maria Telles a epigrafe do ultimo conto do livro:
Na maca a simbiose
Da docura a acidez
Na justa dose
Saint Helier e uma das doze paroquias de Jersey, a maior ilha do
Canal da Mancha, com uma populacao de 28.000 habitantes. Ao sobrevoar o
Canal, a narradoraprotagonista se lembra de Derek e a memoria comeca a
trabalhar. Fora a Jersey em busca de uma escritora britanica. O romance
dela "tinha sido construido a partir das memorias de uma familia
rural e insular, das suas privacoes e ambicoes emigratorias, das suas
lutas, persistencias e sonhos, da presenca obsessiva e constrangedora do
mar em volta da pequena ilha matricial, dia apos dia, geracao apos
geracao, despertando desejos compulsivos de novos rumos, novos
horizontes, novas ilhas pelo vasto mundo, mas contrapondo-lhes, tambem a
forca dos afectos, a resistencia a laceracao das partidas e as ferreas
lealdades a raizes inabalaveis" (134). Este trecho tem um cunho
autobiografico, a escritora britanica bem pode ser a escritora
portuguesa Helena Marques e este resumo tem a forca de sintetizar o
contexto das varias historias de Ilhas Contadas. A descricao que segue,
apresenta os detalhes da natureza nas quais a escritora se fixa e os
nomes de lugares sao aqueles que se sedimentaram na mente.
A narradora, que e uma jornalista, solicitou que a enviassem aquela
ilha onde manteve contato com pessoas da colonia portuguesa. Tomando
whisky ou jantando no Hotel de France, perguntara por Miguel Fernandes,
que falecera ha dois anos; sua filha Micaela ainda la vivia. Caminhando,
deambulando, voltava a pensar no passado e a recordar a vida de Miguel
Fernandes. Foi ao Little House, um guesthouse. Fotografias revelaram a
imagem de Monica, uma neta de Miguel Fernandes, que agora residia nos
Estados Unidos. Sua intuicao lhe revela que Monica era Monica Wood
Carter, a escritora que buscava, e que tinha escrito "sobre a
ilha-mae dos seus antepassados, a ilha que ela escondera nesse
middle-name Wood" (140). Agora a narradora-protagonista podia
"escrever a cronica de uma pista falhada" (141).
A busca a leva a ilha, e um ir que exige um voltar, ja que o que
buscava estava aonde tinha saido. A partida e a volta sao necessarias
para descobrir a pista que estava ai, diante dos proprios olhos. O
destino reserva contra-surpresas se uma pista adequada for seguida.
O SIGNIFICADO DAS ILHAS EM ILHAS CONTADAS
Varias das ilhas tem um significado psicologico: o desejo de
solidao para isolar-se dos problemas ou a necessidade de um pequeno
espaco para si mesmo. O mar muitas vezes simboliza a mente inconsciente,
entao ir ou ficar numa ilha pode significar permanecer com o ego
consciente para nao ter que enfrentar a parte desconhecida de si mesmo.
Segundo Freud, o mar tambem pode ser um simbolo-mae, ou seja, pode
simbolizar relacoes com a mae, apesar de que nos contos a ausencia do
pai e mais forte do que qualquer presenca materna. A ilha circundada
pelo mar pode ainda representar o temor de ser dominado por forcas
inconscientes e, por isso, perder o controle.
Todo simbolo e uma relacao de referencia entre o signo e a
realidade. Para Cassirer, o simbolo e uma invencao humana que mediatiza
nossa relacao com a realidade criando uma nova realidade Uma ilha pode
ser uma metafora do ceu na terra. E o outro lugar e, por isso, magico.
Como metafora de ceu, a ilha e um lugar dificil de ser alcancado e
reservado para poucos. Nenhum mortal e capaz de alcancar o ceu e,
portanto, precisa do auxilio de outros para ser o lugar divino possa ser
atingido.
E ainda um refugio, um lugar distante das multidoes e da
civilizacao ruidosa. E um espaco de isolamento e de solidao. Mas a
solidao propicia a estabilidade para descobrir o desconhecido. Para
Aldous Huxley, por exemplo, em The Doors of Perception (1954) significa
uma caminho para perceber as conexoes humanas.
Em Helena Marques, o significado das ilhas sao as ideias que se
formam sobre as impressoes e sensacoes captadas e que dao a dimensao
real da existencia. O ego das personagens e uma resposta aos estimulos
externos, da natureza das ilhas e as impressoes subjetivas dos processos
mentais, por isso a diversidade de significados segundo o contexto e a
situacao.
Se tentarmos sintetizar os contos de Ilhas contadas veremos que
Helena Marques centraliza sua narrativa em personagens femininas, em
idade madura. A maturidade traz a sabedoria, e uma momento em que a
calma e a tranqulidade permitem a reflexao. As ilhas, com seu isolamento
geografico, permitem a insularidade vivencial, espaco para pensar e
sentir o passado. Com o afloramento da memoria, feridas passadas sao
esclarecidas, apagadas e transformadas em momentos epifanicos nunca
antes alcancados. As ilhas sao o "casulo magico" que permitem
o aflorar das emocoes e dar significado a fatos do passado, esquecidos
no bau da memoria e que agora podem ser expostos sem medo e temor,
permitindo uma transformacao existencial.
REFERENCIAS
Baptista, Maria Luisa. 'Vertentes da insularidade na
novelistica de Manuel Lopes. Porto: Edicoes Afrontamento, 1993.
Cassirer, Ernest. Antropologia filosofica. Introduccion a una
filosofia de la cultura. Mexico: FCE, 1968.
"Ilhas Contadas de Helena Marques". Correio da Manha,
Clube de leiturasa 06-04-2007.
Marques, Helena. Ilhas contadas. Lisboa: Publicacoes Dom Quixote,
2007.
Sousa, Mari Guimaraes. Em busca da ilha desconhecida de Jose
saramago: um pequeno roteiro turistico-literario.
www.omarrare.uerj.br/numero8/pdfs/Mari.pdf, 03/08/2010.
Monica Rector
University of North Carolina at Chapel Hill
QUADRO-SINTESE
Conto Ilha Tema/Mensagem
Regresso a lona Iona, ilha escocesa Busca da verdade, na
maturidade
Os despojos Horta, nos Acores Memoria do passado,
sabedoria da maturidade
O rapto segundo Funchal, na Madeira Memoria e reconstruido do
Teodora passado
A guia de Patmos Patmos, na Grecia Memoria da antiguidade,
transformacao epifanica
A segunda mulher Porto Seguro, na Solidao, impotencia da
do coronel Miller Madeira escrita, recuperacao do
tempo perdido no imaginario
Morte em Mdina Mdina, em Malta A imaginacao como realidade,
momento epifanico
O retrato ilha Emancipacao financeira da
mulher, revelacao epifanica
O casulo Hydra, na Grecia Reflexao sobre o passado,
tranquilidade dada pela ilha
Prima Frederica ilha Recordacao do passado, so a
de arma na mao lembranca resta, paz que
propicia transformacao
Uma pista em Saint Helier, perto Ir para encontrar a verdade
Jersey do Canal da Mancha no ponto inicial