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文章基本信息

  • 标题:Concealment and departures: the trauma in Antes de nascer o mundo by Mia Couto/Velacoes e partidas: o trauma em Antes de nascer o mundo, de Mia Couto.
  • 作者:Rahe, Juliana Ciambra ; Santos, Rosana Cristina Zanelatto
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2016
  • 期号:January
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:O romance Antes de nascer o mundo, do escritor mocambicano Mia Couto, publicado no Brasil em 2009, tem como um dos temas centrais a dificuldade da relacao humana com o tempo e com a memoria, em meio aos vestigios das duas grandes guerras que abalaram Mocambique. Silvestre Vitalicio, diante do trauma que a catastrofe da guerra ocasionou a si, promove um afastamento espacio-temporal da cidade, exilando-se num sitio onde o passado nao existe e a partir do qual o contato com o mundo e interrompido, desintegrando nao somente a cena traumatica preterita, mas tambem a possibilidade de elaboracao das experiencias presentes.
  • 关键词:Autoras;Identidad;Literatura;Memoria;Tecnicas literarias

Concealment and departures: the trauma in Antes de nascer o mundo by Mia Couto/Velacoes e partidas: o trauma em Antes de nascer o mundo, de Mia Couto.


Rahe, Juliana Ciambra ; Santos, Rosana Cristina Zanelatto


Introducao

O romance Antes de nascer o mundo, do escritor mocambicano Mia Couto, publicado no Brasil em 2009, tem como um dos temas centrais a dificuldade da relacao humana com o tempo e com a memoria, em meio aos vestigios das duas grandes guerras que abalaram Mocambique. Silvestre Vitalicio, diante do trauma que a catastrofe da guerra ocasionou a si, promove um afastamento espacio-temporal da cidade, exilando-se num sitio onde o passado nao existe e a partir do qual o contato com o mundo e interrompido, desintegrando nao somente a cena traumatica preterita, mas tambem a possibilidade de elaboracao das experiencias presentes.

Partindo da analise dessa atitude extrema do protagonista da narrativa, o trabalho pretende analisar a forma como Silvestre Vitalicio se relaciona com o trauma e as consequencias que esse comportamento traz--o abalo identitario que a repressao das memorias traumaticas gera. Em contrapartida, outra forma de se relacionar com o trauma e dada a conhecer pela portuguesa Marta. Essa personagem, apesar de ter vivenciado experiencias traumaticas semelhantes as de Silvestre, vale-se da memoria para enfrentar e se posicionar perante a catastrofe, permitindo-se o confronto com essas experiencias, passando ao estagio de compreensao de sua formacao como sujeito de sua historia.

Tendo como base teorica reflexoes sobre trauma, testemunho e identidade, desenvolvidas por Sigmund Freud, Marcio Selligmann-Silva e Stuart Hall, entre outros, procuramos analisar como as posturas empreendidas tanto por Silvestre Vitalicio quanto Marta possibilitam--ou nao--a (re)invencao das identidades abaladas pelo evento catastrofico.

Rebatismo e crise de identidade

Em Antes de Nascer o Mundo, e Mwanito, filho de Silvestre, quem conta a historia da humanidade que, conforme lhe explicara o pai, era composta por apenas cinco homens. Eles resistiram a morte do mundo: Mwanito, seu irmao Ntunzi, seu pai Silvestre, o servical Zacaria Kalash e o Tio Aproximado, alem da jumenta Jezibela. O extinguir do mundo, conforme a Mwanito revelou ao pai, se deu por definhamento. O cosmos 'exauriu-se em desespero' e os ultimos sobreviventes passaram a habitar um lugarejo ao qual Silvestre Vitalicio batizou Jesusalem. Alem do horizonte, existiam apenas territorios sem vida aos quais se chamava 'Lado-de-La'.

[...] Meu velho, Silvestre Vitalicio, nos explicara que o mundo terminara e nos eramos os ultimos viventes. [...] Em poucas palavras, o inteiro planeta se resumia assim: despido de gente, sem estradas e sem pegada de bicho. Nessas longinquas paragens, ate as almas penadas ja se haviam extinto.

Em contrapartida, em Jesusalem, nao havia senao vivos. Desconhecedores do que fosse saudade ou esperanca, mas gente vivente. Ali existiamos tao sos que nem doenca sofriamos e eu acreditava que eramos imortais (Couto, 2009, p. 11).

O abandono das cidades do mundo e a mudanca para Jesusalem ocorreram apos o falecimento de Dordalma, esposa de Silvestre. Em Jesusalem, os derradeiros viventes eram desconhecedores de saudades e vazios de esperancas. Ausentes do mundo e privados de passado, os habitantes de Jesusalem ganharam novos nomes: "[...] Rebatizados nos tinhamos outro nascimento. E ficavamos mais isentos de passado" (Couto, 2009, p. 37). Na cerimonia de 'desbatismo', Mateus Ventura se converteu em Silvestre Vitalicio; Olindo Ventura, em Ntunzi; Orlando Macara passou a Tio Aproximado; e Ernestinho Sobra foi renomeado como Zacaria Kalash. Apenas Mwanito manteve o nome, pois, conforme lhe dissera o pai, faltava-lhe um diabo. Mwanito, que nao guardava lembrancas do mundo do qual foi exilado, "[...] Por isso, voce nem carece de nenhum nome ... basta-lhe assim: mwana, Mwanito" (Couto, 2009, p. 39).

[...]--Este ainda esta nascendo--justificou assim meu pai a permanencia do meu nome. Eu tinha varios umbigos, ja nascera vezes sem conta, todas elas em Jesusalem, revelou Silvestre em voz alta. E seria em Jesusalem que iria concluir o meu ultimo parto. O mundo de onde fugiramos, o Ladode-La, era tao triste que nao dava vontade de nascer (Couto, 2009, p. 38).

O 'desbatismo' promovido por Silvestre e o abandono do mundo tiveram como unico proposito afastar-se das memorias; no entanto, trouxeram como consequencia um forte abalo identitario, eivado de abatimento, de recriminacoes e de ofensas e configurado na manutencao, a custa da violencia, das defesas erguidas pelo protagonista.

Na busca de livrar-se do passado, o personagem se ve na necessidade de assumir um novo nome, pois aquele que o reconhecia na cidade do mundo--Mateus Ventura--vinha carregado de sentido daquela outra vida: "[...] No principio, ele [Mateus Ventura] queria um lugar onde ninguem se lembrasse do seu nome. Agora, ele proprio ja nao se lembrava quem era" (Couto, 2009, p. 22).

A mudanca de nomes efetuada em Jesusalem evidencia a crise identitaria da qual sofre Silvestre Vitalicio, uma vez que, como afirma Pierre Bourdieu (1996, p. 187), "[...] o nome proprio e o atestado visivel da identidade do seu portador atraves dos tempos e dos espacos sociais". Ao negar seu nome de nascimento, o personagem empreende um projeto que busca o esquecimento e o exilio de si mesmo.

Exilio e esquecimento

Mocambique, locus onde se da a narrativa de Mia Couto, foi palco de quase tres decadas de guerras. A primeira guerra se deu entre a Frente de Libertacao Mocambicana (FRELIMO) e Portugal e visou a libertacao de Mocambique do dominio dos colonizadores. A segunda grande guerra de Mocambique envolveu os partidos Frente de Libertacao Mocambicana e Resistencia Nacional Mocambicana (RENAMO).

O horror das guerras ocorridas em Mocambique constitui uma experiencia traumatica sofrida pelo patriarca de Antes de Nascer o Mundo. A incapacidade de compreensao e de assimilacao da catastrofe vivenciada e a consequente tentativa de apagamento ou higiene mental do evento traumatico--que se da por meio do exilio em Jesusalem--dao origem a uma crise de identidade que afeta Silvestre Vitalicio e tambem aqueles que o cercam.

A catastrofe costuma trazer em seu bojo um problema de representacao. Conforme aponta Ronaldo Lima Lins (1990), quando o horror atinge um nivel extremo, a arte fracassa em seu principio mimetico de representacao da realidade. Por seu turno, Seligmann-Silva (2005, p. 83. Grifos do autor) afirma que "[...] o evento catastrofico e um evento singular porque, mais do que qualquer fato historico, do ponto de vista das vitimas e das pessoas nele envolvidas, ele nao se deixa reduzir em termos do discurso". Sendo assim, retratar o horror como resposta ao horror e uma empreitada de antemao fracassada: "[...] Faca o que fizer, em materia de literatura, nada se comparara aos caminhos tortuosos e sinistros da realidade, quando se trata, por exemplo, do que houve em Auschwitz" (Lins, 1990, p. 33).

A intencao e retratar em qualidade e em extensao o que se da na realidade; no entanto, o resultado resvala na banalizacao e no esvaziamento do horror real. Um exemplo disso sao os primeiros documentarios produzidos imediatamente apos a Segunda Guerra Mundial, que, por seu carater extremamente realista, geraram nos espectadores uma reacao de incredulidade. Lyslei Nascimento (2005, p. 61) chama a atencao para o efeito perverso que tal excesso de realidade provocou:
   [...] As imagpns, crueis demais para serem aceitas como
   verdadeiras, provocavam a incredulidade na boa
   consciencia dos espectadores e, ao serem desacreditadas,
   os absolviam da cumplicidade ou da omissao.


A esse impasse em que a arte se encontra, diante da impossibilidade e da necessidade de retratar o horror, Bernardo Carvalho (2000), no ensaio A comunicacao interrompida: Estao apenas ensaiando, propoe, como resposta, a interrupcao radical de toda comunicacao ate a mais absoluta falta de sentido. Essa incomunicabilidade poe em cena a introducao do horror no nivel formal, atingindo a palavra.

[...] Para representar a interrupcao radical da comunicacao, o fim violento do sentido, as narrativas dramaticas--seja o cinema, a literatura ou o teatro--costumam lancar mao, por analogia, de uma interrupcao da comunicacao em um nivel mais palpavel, interpessoal, individual, compreensivel. A separacao forcada, o desencontro e a perda individuais sao os meios de representacao, ainda que insignificantes em relacao a dimensao real e coletiva da catastrofe, que costumam ser usados na tentativa de estabelecer uma comunicacao sensivel com o espectador, uma compreensao dramatica possivel, uma transmissao do sentimento do horror (Carvalho, 2000, p. 237-238).

Para o autor, diante da inexistencia de uma representacao dramatica que condiga ou equivalha ao horror coletivo da catastrofe, diante desses limites, entender a catastrofe seria assumir a posicao do outro em um nivel de identificacao individual. Assim, "[...] a interrupcao da comunicacao interpessoal e a forma possivel, aproximativa, conhecida e identificavel, de se representar essa impossibilidade" (Carvalho, 2000, p. 238).

Em Antes de nascer o mundo, o suicidio de Dordalma, esposa de Silvestre Vitalicio, constitui uma analogia em que o horror da guerra e representado. A morte poe em cena a interrupcao da comunicacao por meio da qual a catastrofe, que traumatiza os habitantes de Jesusalem, e retratada aproximativamente.

Na verdade, antes da morte, que constitui uma suspensao definitiva, a comunicacao e interrompida gradativamente. Em um primeiro momento, o adulterio de Dordalma com Zacaria poe em cena uma negacao do corpo, que e intensificada quando a esposa de Silvestre o abandona.

O suicidio da mae de Mwanito foi a maneira por ela encontrada de se revoltar contra a condicao de propriedade que o casamento lhe imputara. Por meio de tal ato tragico e intimo de violencia, recupera-se e se faz reconhecer o direito da mulher sobre a propria vida.

[...] Suicidio de mulher casada e o vexame maior para qualquer marido. Nao era ele o legitimo proprietario da vida dela? Entao, como admitir aquela humilhante desobediencia? Dordalma nao abdicara de viver: perdida a posse de sua propria vida, ela atirara na cara do teu pai o espetaculo de sua propria morte (Couto, 2009, p. 246).

A catastrofe e um evento que provoca um trauma. Diante da morte da esposa, que, como dimensao minima, alegoriza o irrepresentavel da experiencia catastrofica da guerra, e movido pelo sentimento de culpa pela sobrevivencia, Silvestre abandona as cidades do mundo e se exila em Jesusalem, levando consigo seus filhos e acompanhado pelo servical Zacaria Kalash, que tambem compartilha a culpa por ter sobrevivido a Dordalma: "--So nao entendo uma coisa: por que razao eles [Silvestre e Zacaria] foram juntos para Jesusalem ... --A culpa, Mwanito. Foi o sentimento de culpa que os juntou ..." (Couto, 2009, p. 271).

O suicidio de Dordalma estabelece a interrupcao da comunicacao para Silvestre Vitalicio e seus filhos, assim como para Zacaria Kalash. A incapacidade de compreensao do evento traumatico desencadeia o abandono da cidade e a fundacao de Jesusalem. Neste sitio, o contato com o mundo externo e interrompido, assim como toda e qualquer mencao a tudo aquilo que extrapola os limites de Jesusalem e que traz de volta o passado recusado por Silvestre. Esse lugar foi erigido sob o desejo de silenciar de uma vez por todas o trauma.

As reflexoes de Freud (1996c) nos auxiliam a melhor entender o conceito de trauma, sua causa e o reflexo que produz sobre a memoria. A experiencia traumatica, para o autor, esta ligada a incapacidade de assimilacao total de um evento no tempo de seu acontecimento. Segundo ele,

[...] as neuroses traumaticas dao uma indicacao precisa de que em sua raiz se situa uma fixacao no momento do acidente traumatico. [...] E como se esses pacientes nao tivessem findado a situacao traumatica, como se ainda tivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda nao executada (Freud, 1996c, p. 282-283).

A causa principal do desenvolvimento do trauma reside no fator surpresa, no susto. Freud (1996b) afirma serem erroneamente empregadas como expressoes sinonimas 'susto', 'medo' e 'ansiedade', e afirma serem elas diferenciadas em relacao ao perigo.

[...] A 'ansiedade' descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O 'medo' exige um objeto definido de que se tenha temor. 'Susto', contudo, e o nome que damos ao estado em que alguem fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando enfase ao fator surpresa (Freud, 1996b, P. 23).

Assim, o trauma esta intimamente relacionado ao susto, ao despreparo do sujeito diante do evento traumatico e a omissao da ansiedade, uma vez que nela ha algo que protege o individuo contra o susto. De fato, diante da catastrofe, uma expressao extrema do horror, nao ha qualquer possibilidade de preparo.

Nesse sentido, o trauma relaciona-se com o choque tanto quanto constitui uma fissura na memoria que impede a experiencia plena do evento e ultrapassa os limites da nossa capacidade de entendimento. Segundo Seligmann-Silva (2000, p. 84), "[...] o trauma e justamente uma ferida na memoria [...]", sendo caracterizado pela incapacidade de recepcao de um evento que extrapola os limites da nossa percepcao.

A impossibilidade de acessamento da crise, Silvestre responde com a tentativa de eliminar toda e qualquer lembranca. Assim como ele, Zacaria partiu para Jesusalem como quem foge do passado--"[...] sempre vivi em guerra. Aqui e a minha primeira paz.". Zacaria era "[...] neto de soldado, filho de sargento, ele mesmo nao tinha sido outra coisa senao um militar [...]" (Couto, 2009, p. 85). Nao se lembrava, contudo, de nenhuma guerra. Assim como escapara da morte, escapara das recordacoes.

[...] Pelas perfuracoes do corpo lhe tinham fugido as lembrancas. [...] O Tio Aproximado foi quem desvendou esse esquecimento: por que motivo Zacaria nao se lembrava de nenhuma guerra? Porque ele lutara sempre do lado errado. Foi assim desde sempre na sua familia: o avo lutara contra Gungunhana, o pai se alistara na policia colonial e ele mesmo combatera pelos portugueses na luta de libertacao nacional (Couto, 2009, p. 86).

O trauma que a guerra provocou no militar fez com que ele quisesse se afastar nao apenas do quartel, mas do tempo de todas as guerras. Dai o motivo do exilio do militar fora do mundo.

[...] Havia muito que deixara de entender Zacaria Kalash. As duvidas comecavam na razao de seu antigo nome. Ernestinho Sobra. Porque Sobra? A razao, afinal, era simples: ele era uma sobra humana, um resto anatomico, uma pendencia de alma. Sabiamos, mas nao falavamos: Zacaria tinha ficado diminuido por rebentamento de mina. O engenho explodiu, o soldado Sobra levantou voo, em tosca imitacao de passaro. Foi encontrado chorando, sem saber como caminhar. Ainda procuraram, em vao, algum dano no corpo. A explosao tinha danificado a totalidade da sua alma (Couto, 2009, p. 93-94).

Se e verdade que o recomeco representado por Jesusalem significa estaca zero, nao se pode afirmar, no entanto, que ofereca um rumo a seguir. Isso porque o trauma mina as esperancas de Vitalicio no porvir e o amarra a uma existencia em que, assim como o passado, o futuro tambem e interdito: "[...] A cidade desmoronara, o Tempo implodira, o futuro ficara soterrado." (Couto, 2009, p. 74). Detentor absoluto do poder, Silvestre proibe em seu reino cantos, rezas--pois rezar e chamar visitas--e escrita. Contudo, mais proibido que a reza e mais pecaminoso que as lagrimas ou o canto, era, em Jesusalem, falar sobre mulheres. E, como aponta Ntunzi, "[...] sem mulheres, nao resta semente" (Couto, 2009, p. 33).

A maneira como Silvestre Vitalicio impoe rigidas regras de conduta em seu reino, estabelecendo, assim, o isolamento absoluto de Jesusalem, revela em que medida o trauma sofrido por ele afeta tambem aqueles que vivem consigo. Diferentemente de Zacaria Kalash, cuja mudanca para Jesusalem se deu por vontade propria, para Ntunzi e para Mwanito nao houve escolha.

Incapazes de tracar os proprios destinos, os meninos, em Jesusalem, sofrem da mesma falta de memoria da qual padece Silvestre. As consequencias que a experiencia traumatica oferece a eles se fazem sentir na carencia de lembrancas que ambos tem da mae, Dordalma, e o sofrimento que esta falta lhes causa.

O degredo em Jesusalem era penoso para Ntunzi pelo fato de ele haver conhecido o Lado-de-La: "[...] Ntunzi sofria porque se lembrava, tinha termos de comparacao. Para mim [Mwanito], aquela reclusao era menos penosa: eu nunca tinha saboreado outras vivencias" (Couto, 2009, p. 54). No entanto, sem qualquer subsidio que alimentasse e mantivesse vivo o passado, as lembrancas de Ntunzi acabam por se dissipar.

[...] Ntunzi chorava.

--O que foi, mano?

--E tudo mentira.

--Mentira que?

--Eu nao me lembro.

--Nao se lembra?

--Nao me lembro da mama. Eu nao consigo lembrar-me dela (Couto, 2009, p. 58-59)

De todas as vezes que ele a representaram, em tao vivo teatro, tinha sido puro fingimento. Os mortos nao morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento. Dordalma falecera definitivamente e, para Ntunzi, se extinguira para sempre o tempo em que ele tinha sido menino, filho de um mundo que com ele nascia.

--Agora, meu mano, agora e que somos orfaos. T alvez Ntunzi, a partir daquela noite, se sentisse orfao. Para mim, porem, o sentimento era mais suportavel: eu nunca tinha tido mae. Eu era filho apenas de Silvestre Vitalicio (Couto, 2009, p. 59).

Mwanito nao guarda recordacoes do tempo em que viveu na cidade--a migracao para a coutada ocorreu quando tinha apenas tres anos. Embora afirme que o fato de nao ter experimentado outra realidade que nao a de Jesusalem faca sua vida neste recinto isolado menos sofrivel, Mwanito inveja as supostas lembrancas de Ntunzi: "[...] Nao gostava que lembrassem que o meu irmao ja vivera nesse outro lado, que ele conhecera a mae, que ele sabia como eram as mulheres" (Couto, 2009, p. 72).

[...] eu queria esse barco que conduzia Ntunzi para os bracos da nossa falecida. Certa vez, a raiva acumulada extravasou:

--O pai diz que e mentira, diz que voce nao sonha com a mae.

Ntunzi olhou-me com pena, como se eu fosse desvalido e o meu orgao de sonhar tivesse sido mutilado (Couto, 2009, p. 43).

Se, como afirma Geoffrey Hartman (2000, p. 223), "[...] a memoria e a evidencia de continuidade: de que o futuro tera um passado [...]", em Jesusalem, a inexistencia de qualquer memoria aprisiona os sobreviventes do mundo a um tempo ininterrupto, suspenso, em que nao apenas o passado e negado, como tambem o e qualquer expectativa com relacao ao futuro. De fato, diante do isolamento e da solidao em que se vive em Jesusalem e da suposta morte do mundo, que futuro poderia haver para o que restou da humanidade, especialmente, sendo os 'ultimos viventes' todos homens?

Esquecer--como procuram fazer os habitantes de Jesusalem--nao e a unica (nem a melhor) maneira possivel de se lidar com o trauma. Segundo Freud (1996a), os efeitos dos traumas podem ser de dois tipos: positivos e negativos.

[...] Os primeiros [efeitos positivos] sao tentativas de por o trauma em funcionamento mais uma vez, isto e, recordar a experiencia esquecida ou, melhor ainda, torna-la real, experimentar uma repeticao dela de novo [...]. As reacoes negativas seguem o objetivo oposto: que nada no trauma esquecido seja recordado e repetido (Freud, 1996a, p. 90).

O trabalho do trauma, por meio de seus efeitos positivos, tem como objetivo a reintegracao do evento traumatico de modo articulado e nao mais patologico na vida do sujeito. Buscar a realidade (em vez de tentar fugir dela), como afirma Shoshana Felman (2000), e uma maneira de explorar a ferida infligida por ela como o reemergir da paralisia desse estado, para engajar-se na realidade enquanto advento e enquanto necessidade de prosseguir. Segundo a autora, "[...] e para alem do choque de ter sido atingido, porem, apesar disso, dentro da ferida e de dentro do estar ferido, que o evento, por mais incompreensivel que possa ser, torna-se acessivel." (Felman, 2000, p. 40).

A transformacao da ferida em uma abertura que permita o acesso a realidade se faz possivel por intermedio da memoria e das palavras: a narracao do trauma, ou seu testemunho, se nao e capaz de esvazia-lo, pode conduzir a sua pacificacao por meio do conhecimento. Silvestre Vitalicio, no entanto, se protege das palavras com a ajuda de seu filho Mwanito que, tecendo "[...] os delicados fios com que se fabrica a quietude" (Couto, 2009, p. 14), afina os silencios e afasta o pai das lembrancas. Alem disso, quando Silvestre se vale das palavras, fabrica discursos lugubres e confusos, ordenando-as em falas que nada dizem: "[...] Todas as historias que o pai inventava sobre os motivos de abandonar o mundo, todas aquelas fantasiosas versoes tinham um unico proposito: empoeirar-nos o juizo, afastandonos das memorias do passado" (Couto, 2009, p. 23).

Diante da catastrofe, ao sujeito se interpoe o conflito entre a necessidade e a impossibilidade de representacao, entre o desejo de esquecer e sua impossibilidade. Nesse sentido,

[...] tanto o testemunho deve ser visto como uma forma de esquecimento, uma 'fuga para frente', em direcao a palavra e um mergulhar na linguagem, como tambem, por outro lado, busca-se igualmente atraves do testemunho a libertacao da cena traumatica (Seligmann-Silva, 2000, p. 90).

A palavra e o instrumento por meio do qual se torna possivel o acessamento da crise. No entanto, a incapacidade de reviver a experiencia traumatica por meio da narrativa e, assim, compreende-la, faz com que Silvestre se prive da propria vida. Vitima de uma crise identitaria desencadeada pelo fato de o personagem recusar o testemunho por meio do qual poderia reencontrar seu nome proprio, sua assinatura, Mateus Ventura abandona a identidade que o reconhecia nas cidades do mundo e se transforma em Silvestre Vitalicio.

[...] Ao fim e ao cabo, so existe um verdadeiro suicidio: deixar de ter nome, perder o entendimento de si e dos outros. Ficar fora do alcance das palavras e das alheias memorias.

--Eu me matei muito mais do que Dordalma. Silvestre Vitalicio, ele, sim, se suicidou. Mesmo antes de chegar a morrer, ja tinha posto cobro a vida. Varreu os lugares, afastou os viventes, apagou o tempo (Couto, 2009, p. 212).

O livro

A reconstrucao identitaria dos habitantes de Jesusalem tem inicio com a chegada de uma visitante. A portuguesa Marta viaja a Mocambique em busca de seu marido, Marcelo. Tendo combatido como soldado em terras africanas, Marcelo passou um mes em Mocambique, o que lhe custou o sentimento de pertencimento a sua cidade de origem, Lisboa: "[...] tu regressaste de Africa, mas parte de ti nunca voltou. Todos os dias, manha cedo, saias de casa e ficava deambulando pelas ruas como se nada reconhecesse na tua cidade" (Couto, 2009, p. 138). Essa inadequacao conduz o portugues de volta a Mocambique, mas desta vez numa viagem sem retorno.

Depois do regresso de Marcelo a Africa, Marta encontrou, no fundo de uma gaveta, uma fotografia de uma jovem negra em cujo verso constava um numero de telefone. Quando viaja para resgatar seu marido, a portuguesa entra em contato com sua rival, Noci, de quem adquire informacoes sobre os ultimos rastros deixados por ele: Marcelo havia sido conduzido por Orlando Macara (Tio Aproximado), patrao de Noci, a coutada, seu ultimo paradeiro conhecido. O intuito de encontrar Marcelo orienta o destino de Marta a Jesusalem, onde se hospeda na antiga casa da administracao, que permaneceu desabitada.

O encontro da visitante com os habitantes de Jesusalem abala a autoridade de Silvestre Vitalicio, revelando o logro sobre o qual se sustentava seu imperio: afinal, o mundo nao havia morrido.

[...] Uma unica pessoa--ainda por cima uma mulher --desmoronava a inteira nacao de Jesusalem. Em escassos momentos, tombava em estilhacos a laboriosa construcao de Silvestre Vitalicio. Afinal, havia, la fora, um mundo vivo e um enviado desse mundo se instalara no coracao do seu reino (Couto, 2009, p. 127-128).

Enquanto a morte de Dordalma provoca o rompimento do fio que ligava a existencia de Silvestre, seus filhos e Zacaria com o mundo, a presenca de Marta destroi os alicerces em que Jesusalem se sustentava, minando os limites que separavam esse espaco do territorio chamado 'Lado-de-La': "[...] A visao da criatura [Marta] fez com que, de repente, o mundo transbordasse das fronteiras que eu [Mwanito] tao bem conhecia" (Couto, 2009, p. 123).

A historia de Marta se assimila a de Silvestre. Marta, assim como Silvestre, tambem foi vitima da catastrofe da guerra ocorrida em Mocambique. Tal evento atravessa a historia da vida da portuguesa e e representado pelo falecimento de Marcelo. Na verdade, assim como ocorre com Dordalma, a anulacao da existencia de Marcelo nao se da subitamente, mas de forma gradativa. A negacao do corpo (ou a interrupcao da comunicacao) ocorre, em um primeiro momento, por meio da traicao, do envolvimento com a mocambicana Noci em uma das viagens de Marcelo a Africa. Em seguida, pelo abandono definitivo de Lisboa e da esposa e, finalmente, pela morte.

No entanto, distinta e a maneira como Marta se posiciona diante do trauma que a catastrofe acarreta. A portuguesa traz a tona os efeitos positivos do trauma, de que nos fala Freud: em vez de tentar esquece-lo, como Silvestre, Marta busca confrontarse com ele. E e seguindo esse embate com a experiencia traumatica que ela refaz os ultimos passos de Marcelo e pode tornar a morte de seu marido real.

Alem disso, enquanto Mateus Ventura abandona ate seu nome proprio por nao poder lidar com o passado, votando-o ao esquecimento e dando origem a uma crise identitaria, Marta resgata o passado em seu diario e reconstroi sua identidade por meio da escrita. Assim, ela mostra que "[...] escrever e um dos recursos de que podemos nos valer para inverter, ainda que precariamente, a posicao passiva que experimentamos diante da catastrofe, e que nos causa tanto horror" (Kehl, 2000, p. 139).

Se o trauma ultrapassa as fronteiras do nosso poder de entendimento do evento catastrofico, e apenas por meio de sua narracao que se faz possivel, de alguma forma, assimila-lo.

[...] A memoria, e especialmente a memoria usada na narracao, nao e simplesmente um nascer postumo da experiencia: ela possibilita a experiencia, permite que aquilo que chamamos de o real penetre na consciencia e na apresentacao das palavras, para tornar-se algo mais do que so o trauma seguido por um apagamento mental higienico e, em ultima instancia, ilusorio (Hartman, 2000, p. 222-223).

Esse confronto com o trauma pressupoe um reencontro com uma historia permeada por uma forma afetiva de composicao. Nesse sentido, a memoria se revela como instrumento de recuperacao do passado em que o fragmentario e a experiencia individual e da comunidade sao fundamentais. "[...] A arte da memoria [...] e uma arte da leitura das cicatrizes" (Seligmann-Silva, 2003, p. 56) e se funda na dialetica entre lembrar e esquecer.

[...] A memoria so existe ao lado do esquecimento: um complementa e alimenta o outro, um e o fundo sobre o qual o outro se inscreve. Esses conceitos nao sao simplesmente antipodas, existe uma modalidade de esquecimento [...] tao necessaria quanto a memoria e que e parte desta (Selgimann-Silva, 2003, p. 53).

Assim, a leitura do passado por meio da memoria (e do esquecimento) procura manter o passado ativo no presente, buscando nao a representacao, mas a apresentacao e a exposicao do ocorrido por meio de fragmentos, ruinas e cicatrizes. A memoria "[...] tem compromisso com a subjetividade, com a reconstrucao de uma historia pessoal que precisa encontrar saidas viaveis [...] para reconstruir uma vida, um futuro, e isso por mais que ela conte das dores e das feridas" (Cytrynowicz, 2003, p. 132).

E por meio da narracao que Marta e capaz de, ao mesmo tempo, acessar e se libertar do passado e recuperar sua identidade, que se perdeu como (ou com) Marcelo.

[...]--Que e isto?

Na ultima paragem antes de chegarmos a Jesusalem, Orlando (a quem devo habituar-me a chamar de Aproximado) perguntou, apontando para meu nome na capa do meu diario:

--O que e isto?

--Esta--emendei.--Esta sou eu.

Devia ter dito: esse e meu nome, grafado na capa do meu diario. Mas nao. Disse que era eu como se todo o corpo e toda a minha vida fossem cinco simples letras (Couto, 2009, p. 133-134).

Por meio das palavras, de seu testemunho, Marta recupera seu nome e pode renascer:

[...] Nada e anterior a mim, estou inaugurando o mundo, as luzes, as sombras. Mais do que isso: estou fundando as palavras. Sou eu que as estreio, criadora do meu proprio idioma (Couto, 2009, p. 134).

Essa maneira de fazer emergir as cicatrizes deixadas pelo tempo Marta deseja transmitir aos homens de Jesusalem. Assim, forca Silvestre a confrontar-se com o evento traumatico e exercer o luto, trazendo a tona sua historia, antes silenciada. E adverte: "[...] Nao se pode esquecer tudo tanto tempo. Nao existe viagem assim tao longa ..." (Couto, 2009, p. 160).

A presenca de Marta estimula em Ntunzi e Mwanito a expansao da temporalidade de Jesusalem. No territorio governado por Silvestre, reinava apenas o tempo presente, sendo o passado proibido e o futuro inalcancavel. No entanto, a portuguesa desperta em Mwanito saudades de sua mae e o desejo pelo passado: "[...] Marta era a minha segunda mae. Ela tinha vindo para me levar para casa. E Dordalma, a minha primeira mae, era essa casa" (Couto, 2009, p. 147). E aguca em Ntunzi o desejo carnal, intensificando nele a ansia pelo porvir.

[...] Cada dia mais, eu [Mwanito] a tinha como mae. Cada vez mais, Ntunzi a sonhava como mulher. Meu irmao passou a ser tomado pelo cio: sonhava com a nudez dela, despia-a com sofreguidao de macho, no chao do sono tombavam as roupas intimas da lusitana (Couto, 2009, p. 152).

Quando a coutada e, gracas a intervencao de Marta, enfim, abandonada, o contato com esses outros tempos se faz possivel. O passado pode, a partir da interferencia da visitante, ser acessado e incorporado dentro de uma memoria dirigida tambem para o futuro, "[...] dentro de uma memoria que possibilite a narracao" (Seligmann-Silva, 2000, p. 89). Esse aprendizado de narrar o passado traumatico pelas vias da memoria, de testemunhar, e propiciado pela portuguesa, principalmente a Mwanito.

Antes que essa aprendizagem comecasse, Marta e Mwanito lidavam de maneira diferente com o trauma: enquanto Marta buscava acessa-lo, mantendo um diario durante sua viagem a Africa em que narrava a historia da perda de Marcelo, a Mwanito, 'o afinador de silencios', restava a incumbencia de ajudar o pai a apagar o passado: "[...] Tal como eu, Marta era uma estrangeira no mundo. Ela escrevia lembrancas, eu afinava silencios" (Couto, 2009, p. 152).

Cumprindo a missao que lhe fora designada pelo pai de espionar os bens que Marta guarda em seu quarto, Mwanito entra em contato com os 'papeis da mulher'. Assim se da o primeiro contato do menino com o testemunho: "[...] Durante horas, percorri, olhos e dedos, os papeis de Marta. Cada folha foi uma asa em que ganhei mais tontura que altura" (Couto, 2009, p. 129).

A maneira de resgate historico que Marta ensina aos 'ultimos viventes' nao tem pretensao de abarcar o passado integralmente, como de fato ocorreu. Ela se funda no trabalho da memoria, que traduz o passado a partir do trauma e do 'resto'. Assim, a licao de Marta vai ao encontro daquilo que afirma Cytrynowicz (2003, p. 136): "[...] Nao devemos esperar do testemunho que ele explique algo, nao devemos fazer-lhe perguntas nem inquiri-lo sobre a historia, mas apenas garantir-lhe o direito de falar, de contar".

O testemunho do passado que Marta presta parte, como nao poderia deixar de ser, da propria perspectiva. Ela revive a vida e a morte de Marcelo a partir dos fragmentos que a experiencia individual lhe permite acessar, nao havendo preocupacao em representar com exatidao o que de fato ocorreu, mas apresentar, por meio de fragmentos, os ultimos dias de vida de seu marido.

[...] Nunca quis saber como Marcelo morrera. De doenca, me bastava como explicacao. No dia em que parti, ja no aeroporto, Noci me contou detalhes da derradeira viagem do meu marido. Depois que Aproximado o deixou junto ao portao, Marcelo tera vagueado sem direcao, durante dias, ate que foi baleado numa emboscada. Imaginamos por onde andou pelas imagens que restaram nos seus rolos fotograficos. Noci ofereceu-me essas fotos a preto e branco. Nao eram, como pensava, imagens de garcas e paisagens. Era a reportagem do seu proprio fim, um diario pictorico de sua decadencia. Por esse registro percebemos que ele desejava alonjar-se de si mesmo. Primeiro andando desgrenhado e sem roupas. Depois, cada vez mais proximo dos bichos, bebendo agua de pocas, comendo carne crua. Quando o abateram, Marcelo foi tomado por um animal bravio. Nao foram os da guerra que o mataram. Foram cacadores. O meu homem [...] escolheu essa especie de suicidio. Quando a morte chegasse ele ja teria deixado de ser pessoa. E assim se sentiria morrer menos (Couto, 2009, p. 239-240).

O ato de colecionar os fragmentos da memoria e expo-los por meio da narrativa permite ao sujeito remontar sua historia e sua identidade. Essa narracao "[...] e tecida tanto como uma forma de se 'libertar' do passado como tambem se desdobra como um doloroso exercicio de construcao da identidade" (Seligmann-Silva, 2005, p. 114).

Com o retorno a cidade, os segredos que ocultavam as origens de Ntunzi sao revelados. O menino, na verdade, nao e filho de Silvestre, mas fruto da relacao entre Dordalma e o militar Kalash.

[...] Agora tudo fazia sentido: o modo diferenciado como Silvestre me tratava. Os castigos que infligia a meu irmao. A proteccao velada mas constante que Kalash destinava a Ntunzi. A aflicao com que o militar conduziu ao rio o meu irmao doente. Tudo, agora, fazia sentido. Ate o modo como Silvestre renomeara meu irmao. Ntunzi quer dizer "sombra". Eu era a luz dos seus olhos. Ntunzi lhe negava o Sol, lembrando-lhe o eterno pecado de Dordalma (Couto, 2009, p. 270).

Des(en)cobrindo sua real ascendencia, Ntunzi segue seu destino e--assim como seu pai, seu avo e seu bisavo--se torna militar. Recuperando sua historia, o menino pode recuperar sua identidade, seu nome proprio: "[...] Agora sou o sargento Olindo Ventura" (Couto, 2009, p. 266).

Mwanito, tendo partido de Jesusalem, nao encontra no 'Lado-de-La' qualquer sentimento de pertencimento. A casa onde nasceu lhe e estranha: "[...] Todos, naquele grupo, estavam de regresso. Eu nao. A casa onde eu nascera nunca fora minha. O unico lar que tivera foram as ruinas de Jesusalem" (Couto, 2009, p. 220); "[...] Por mais que eu fizesse esforco continuava estranhando a casa onde havia nascido. Nenhum quarto, nenhum objeto me trouxe lembrancas dos meus primeiros tres anos de vida" (Couto, 2009, p. 221); "[...] Eu nascera na morada que agora ocupavamos, mas nao era esta a minha casa, nao era aqui que o meu sono me descia com docura. Tudo nesta residencia me causava estranheza" (Couto, 2009, p. 227).

Nao se sentindo integrante do mundo em que agora habita e incapaz de acessar o passado traumatico, o menino revela o mesmo desejo de apagar o tempo que levou seu pai a fundar Jesusalem.

[...] Essa exclusao de tudo e de todos me trouxe, confesso, um contentamento. Como se secretamente quisesse regressar a solidao. E esse descaminho fui seguindo nos tempos. [...] passei a saudar o meu pai ao modo antigo, consoante os mandos de Jesusalem: --Ja posso dormir, pai. Ja abracei a terra.

Talvez, no fundo de mim, eu sentisse saudade da imensa quietude do meu triste passado (Couto, 2009, p. 256).

[...] Pela primeira vez confessei aquilo o que havia muito me apertava no peito: eu herdara a loucura de meu pai. Por longos periodos era atacado de uma cegueira selectiva. O deserto se transferia para dentro de mim, convertendo a vizinhanca num povoado de ausencias.

--Tenho cegueiras, Ntunzi. Sofro da doenca de Silvestre (Couto, 2009, p. 275).

No entanto, por meio do testemunho, que

[...] como processo humanizador e transitivo, [...] atua sobre o passado resgatando 'o individual, com rosto e nome proprios', do lugar do terror no qual aquele rosto e aquele nome foram levados embora (Hartman, 2000, p. 215),

Mwanito tem a possibilidade de se curar da doenca que herdara do pai.

Quando Ntunzi, ou melhor, o sargento Olindo Ventura, visita o irmao na cidade, Mwanito o recebe frio e distante. Apos revelar estar doente como o pai, o menino lhe mostra seu caderno.

[...]--Veja esses papeis--disse, estendendo um maco de paginas caligrafadas.

Tudo aquilo eu redigira nos momentos de escurecimento. Atacado por cegueiras deixava de ver o mundo. So via letras, tudo o resto eram sombras. [...]

--Deixo de ser cego apenas quando escrevo (Couto, 2009, p. 275).

O contato que tivera, em Jesusalem, com os papeis de Marta foi significativo para Mwanito, assim como a ultima licao que a portuguesa promove, quando lhe envia uma carta de Portugal. Marta reforca o poder que o testemunho desempenha na reconstrucao identitaria: "[...] Quando comecaste a ler os rotulos das caixas de armas nao eram as letras que tu mais aprendias. O ensinamento era outro: as palavras podem ser o arco entre a Morte e a Vida" (Couto, 2009, p. 241).

Por meio de sua narrativa, de seu testemunho, Mwanito redescobre quem e. Esse autoconhecimento, contudo, "[...] pode apenas acontecer atraves do testemunho: nao pode ser separado dele. Ele pode apenas se desdobrar no processo de testemunhar" (Felman, 2000, p. 64). Por isso, a cegueira que se abate sobre o menino so e interrompida no momento da escritura.

Mwanito (re)atualiza o tempo por meio da memoria, corporificada em narrativas que (re)poem o passado na vida das personagens. Ele recupera as historias sobre sua familia, sobre sua cultura, que lhe foram negadas pelo pai. No entanto, a (re)construcao da identidade de Mwanito aponta para um movimento rumo ao futuro; afinal, o menino ainda precisa de um nome que o identifique nas cidades do mundo: "[...] Mwanito ficara em Jesusalem, e eu carecia de um novo nome, um novo batismo" (Couto, 2009, p. 218). E, mais uma vez, Marta e quem o encoraja nessa formacao de sua propria identidade--"[...] Ha muita viagem, muita infancia que podes ainda viver. Ninguem te podera pedir que nao sejas mais que um pastor de silencios" (Couto, 2009, p. 250)--e o lembra de que "[...] Nunca mais havera Jesusalem" (Couto, 2009, p. 250).

Esse movimento rumo ao futuro, que deve entrar em cena para a formacao da identidade de Mwanito, e representado por Noci--antes amante de Marcelo e, agora, namorada do Tio Aproximado. Enquanto Marta despertava em Mwanito saudades da mae, Noci faz surgir no menino o desejo carnal, numa sede de futuro.

[...] havia Noci, uma razao acrescida para faltar a escola. A namorada de Aproximado se oferecia para me apoiar nos deveres de casa. Mesmo nao os havendo, eu os inventava apenas para a ter debrucada sobre mim, espetando nos meus os seus grandes olhos negros. E havia ainda a gota de suor escorrendo entre os seios dela e eu seguia afogado e afogueando nessa gota, descendo no peito dela ate me afundar em tremor e suspiro (Couto, 2009, p. 256-257).

Assim, as duas mulheres contribuem na (re) construcao da identidade de Mwanito, metaforizando as duas vertentes em torno das quais, segundo Hall, as identidades se constroem. Por um lado, a intervencao de Marta promove o reencontro do menino com o passado--"[...] E meu dever devolver-te esse passado que te foi roubado" (Couto, 2009, p. 242). Nesse sentido, Hall (1990, p. 223, traducao nossa) afirma:
   [...] nossas identidades refletem as experiencias
   historicas comuns e os codigos culturais
   compartilhados que nos fornecem, como 'um povo',
   quadros estaveis, imutaveis e continuos de referencia
   e significado, sob as divisoes mutaveis e as
   vicissitudes da nossa historia real (1).


Por outro lado, a segunda vertente apresentada por Hall revela que as identidades devem ser pensadas como uma producao, sempre em processo e nunca completas.

[...] Identidade cultural [...] e uma questao de 'se tornar' assim como de 'ser'. Ela pertence ao futuro tanto quanto ao passado. Nao e algo que ja exista, transcendendo espaco, tempo, historia e cultura. Identidades culturais vem de algum lugar, tem historias. Mas, como tudo que e historico, elas se submetem a constantes transformacoes. Longe de estarem eternamente fixas em um passado essencializado, estao sujeitas ao continuo jogo da historia, da cultura e do poder. Longe de estarem fundamentadas em uma mera recuperacao do passado, que espera para ser encontrado e que, quando encontrado, ira assegurar nossas percepcoes de nos mesmos na eternidade, identidades sao os nomes que nos damos as diferentes maneiras que nos somos posicionados pela, e que nos posicionamos dentro das narrativas do passado (Hall, 1990, p. 225, traducao nossa) (2).

Afinal, e Noci quem completa a libertacao de Mwanito da saudade que sentia do silencio de Jesusalem. Ela evidencia a importancia de se pensar as identidades em termos das relacoes dialogicas entre similaridade e continuidade, entre diferenca e ruptura, entre passado e futuro.

[...] A ternura daquela mulher me confirmava que meu pai estava errado: o mundo nao morreu. Afinal, o mundo nunca chegou a nascer. Quem sabe eu aprenda, no afinado silencio dos bracos de Noci, a encontrar minha mae caminhando por um infinito descampado antes de chegar a ultima arvore (Couto, 2009, p. 277).

Assim, Marta e Noci desempenham um papel importante no destino dos habitantes de Jesusalem, sobretudo no de Mwanito. Marta traz a tona o passado: ela o instiga a colecionar os fragmentos da memoria, antes a duras penas soterrados, e o ensina a remontar sua identidade por meio do testemunho. Por outro lado, o sentimento de Mwanito por Noci poe em cena o futuro e, assim, revela que as identidades sao sujeitas a constantes transformacoes, estao sempre em construcao e nunca completas. As duas mulheres revelam a importancia das lembrancas e dos afetos, mas tambem indicam que a construcao da identidade nao se esgota no resgate do passado. Assim, apresentam um caminho a ser percorrido para a libertacao e o acessamento do passado traumatico, permitindo a reconstrucao de vidas e futuros.

Conclusao

Em Antes de nascer o mundo, a dificuldade de Silvestre Vitalicio em lidar com o trauma das guerras ocorridas em Mocambique, e metaforizado no suicidio de Dordalma, leva o personagem a tentativa de apagar o passado. Afastado do mundo, isolado em um sitio a que chama de Jesusalem, Silvestre busca afastar-se das memorias e criar seus filhos em um mundo livre do horror das guerras. Essa empreitada, no entanto, nao e capaz de liberta-lo do trauma e acaba aprisionando os meninos a um mundo que, se, por um lado, e livre de passado, por outro, nao apresenta possibilidades de futuro, alem de gerar uma profunda crise de identidade.

As feridas deixadas pelo passado comecam a vir a tona com a chegada de Marta a Jesusalem, que ensina aqueles que la vivem a importancia de acessar o trauma. Seguindo os ensinamentos da portuguesa, Mwanito resgata a historia de sua familia, dando origem, por meio de seu testemunho, a narrativa Antes de nascer o mundo.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.24481

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Received on July 20, 2014.

Accepted on November 6, 2015.

Juliana Ciambra Rahe [1] e Rosana Cristina Zanelatto Santos [2] *

[1] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Av. Olinto Mancini, 1662, 79603- 01, Tres Lagoas, Mato Grosso do Sul, Brasil. [2] Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: rzanel@terra.com.br

(1) "[...] our culture identities reflect the common historical experiences and shared cultural codes which provide us, as 'one people', with stable, unchanging and continuous frames of reference and meaning, beneath the shifting divisions and vicissitudes of our actual history."

(2) "[...] Cultural identity [...] is a matter of 'becoming' as well as 'being'. It belongs to the future as much as to the past. It is not something with already exists, transcending place, time, history and culture. Cultural identities come from somewhere, have histories. But, like everything that is historical, they undergo constant transformation. Far from being eternally fixed in some essentialised past, they are subject to the continuous 'play' of history, culture and power. Far from being grounded in a mere 'recovery' of the past, which is waiting to be found, and which, when found, will secure our senses of ourselves into eternity, identities are the names we give to the different ways we are positioned by, and position ourselves within, the narratives of the past."

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