On the mirror of the memory: Macau a mythical place of reconstruction of identity in the works of Maria Ondina Braga/No espelho da memoria: Macau, lugar mitico de (re)construcao da identidade na obra de Maria Ondina Braga.
Gago, Dora Maria Nunes
Introducao
Viajante incansavel, a escritora e tradutora Maria Ondina Braga
cruzou mundos, culturas e linguagens, que atravessam as suas narrativas,
enraizadas em vivencias, aliadas a uma incessante demanda de si propria.
Nascida em Braga, em janeiro de 1932, onde tambem faleceu em marco de
2003, essa autora percorreu diversos paises, tendo vivido na Inglaterra,
na Franca, na India (Goa), em Angola, em Macau e na China--estes
percursos sao ficcionalizados em duas obras de teor autobiografico, que
constituirao o nosso corpus de analise: Estatua de Sal (Braga, 1965b) e
Passagem do Cabo (Braga, 1994). Nesta esteira, tentaremos demonstrar e
analisar o modo como a cidade de Macau e configurada, nas suas diversas
vertentes, como o espaco privilegiado de descoberta e construcao da
identidade do 'eu', em confronto com a alteridade, ancorada
num processo de rememoracao, convertendo-se, temporariamente, numa
especie de axis mundi.
Neste percurso hermeneutico, atenderemos a pressupostos teoricos da
imagologia, partindo da definicao de 'imagem', preconizada por
Pageaux, como conjunto de ideias sobre o estrangeiro, adquiridas num
processo de 'socializacao e de literalizacao', historicamente
contextualizavel, na medida em que se assume como representacao de uma
realidade estrangeira. (Pageaux, 1989). Alem disso, sendo um fato
cultural, a imagem tem a funcao de revelar as relacoes interetnicas,
interculturais entre a sociedade observada e a observadora. Tal como
refere o mesmo teorico:
A imagem, isolada, explicada, interpela, interroga, faz pressao
sobre o investigador para que ele penetre fundo em si mesmo, para que
ele analise as suas proprias formas de representacao, as suas
preferencias, os seus entusiasmos, os seus silencios (Pageaux, 1984, p.
14).
Nesta sequencia, esse conceito de imagem privilegia um entrecruzar
de planos percetivos, memoriais e interpretativos, que remetem para uma
determinada ideologia.
Alem disso, sera pertinente atentarmos na diferente perspectiva de
construcao da imagem, distinguindo entre autoimagem (imagem do
'eu') e heteroimagem, definida como "[...] a referencia a
uma reputacao de carater vigente dentro de um grupo e partilhada por
ele, ou por ultimo, a opiniao que os outros tem sobre o alegado carater
de um grupo" (Beller & Leersen, 2007, p. 342-343, traducao
nossa (1)).
Numa primeira fase, acompanharemos a digressao da narradora de
Estatua de Sal (Braga, 1965b) em demanda da reconstrucao da sua
identidade na cidade de Macau, para depois analisarmos algumas passagens
relevantes e complementares de Passagem do Cabo (Braga, 1994), que
ilustram o percurso empreendido ao encontro do 'outro',
atraves do qual se vao edificando as fronteiras da identidade.
Percursos rememorativos: em busca da identidade por territorios
estranhos e estrangeiros
Escrita em 1963, em Macau--onde a autora aportou em dezembro de
1961, fugida de Goa, quando da sua invasao pela Uniao Indiana--a obra
Estatua de Sal (Braga, 1965b) remete para a narrativa biblica. Evoca,
com efeito, a mulher de Lot que, ao abandonar Sodoma, a cidade que ia
ser destruida, desobedece a entidade divina e olha para tras, sendo,
como punicao, transformada em estatua de sal, Genesis, 19:26 (Biblia,
1995, p. 56). E, com efeito, a atitude retrospectiva atravessa todo o
livro, onde as imagens dos diversos paises conhecidos se constroem, num
processo de revisitacao, atraves da memoria. Neste contexto, tal como
afirma Luciana Bezerra, (2011, p. 83) "A melancolia e a solidao
figuram como elementos propulsores dessas memorias". Com efeito,
deparamonos com uma narradora de primeira pessoa, autodiegetica,
conotando a autora empirica, que narra as suas experiencias como
personagem central da acao e, neste caso, "[...] aparece entao como
entidade colocada num tempo ulterior em relacao a historia que relata,
entendida como conjunto de eventos concluidos e inteiramente
conhecidos" (Reis & Lopes, 1991, p. 260). Em Estatua de Sal
(Braga, 1965b), a protagonista ambiciona encontrar-se consigo propria e
reunir os elementos dispersos da sua identidade, identificando-se tambem
com a personagem biblica anteriormente referida:
Mas, acima de tudo, quero encontrar-me comigo. Acima de tudo,
desejo recordar a minha terra, as pessoas e os lugares que amei, outros
passos.
Ou me volto toda para tras (fique embora transformada em estatua de
sal) ou me perco neste mundo remoto, como que eterno, de uma raca sem
idade (Braga, 1965b, p. 15).
Emerge, assim, a intencao de uma escrita do 'eu',
enraizada numa necessidade interior de equacionar a propria existencia,
atraves de um processo de cisao entre o sujeito e a propria vida, a
necessidade de um recuo para reunir momentos dispersos. Revela-se, como
salienta George Gusdorf, uma intencao critica, que suscita uma
necessidade de recapitulacao com um latente desejo de justificacao
(Gusdorf, 1991).
E, neste contexto, Macau--onde a narradora nos revela, no primeiro
capitulo de Estatua de Sal, viver ha tres meses, territorio ao qual,
segundo refere, se da a volta num sam-um-che, num dia, e cujas paisagens
surpreendem constantemente e que confessa observar como "[...]
alguem a fazer exame de consciencia na vespera de morrer [...]"
(Braga, 1965b, p. 13)--assume-se como o 'palco' de todas as
descobertas, do passado, do presente do 'eu' e do
'outro'. Alias, esta estreita conexao entre a construcao da
identidade e o espaco tem sido focada por diversos escritores, como foi
o caso de Proust (A la Recherche du Temps Perdu) e objeto de estudo de
varios filosofos e teoricos como Heiddeger (Being and Time), Gaston
Bachelard em La Poetique de L'Espace ou Merleau-Ponty
(Phenomenologie de la Perception), entre outros (Malpas, 1999, p. 5-6).
Esse teorico salienta os pontos comuns entre o pensamento de Heiddeger
(1962) e Merleau-Ponty (1962), relativamente a estreita relacao entre o
ser humano e o espaco (Malpas, 1999). Por conseguinte, a relevancia de
Macau como espaco subjetivo de simultanea revelacao e rememoracao e
enfatizada por Maria Ondina Braga: "Macau e outra coisa. Macau e a
minha alma a revelar-se, e toda uma vida de exaltacao e de magoa
analisada, revivida, pronta a ser cantada" (Braga, 1965b, p. 14). E
a vivencia nesse territorio que desencadeia esse processo rememorativo,
conducente ao ato ontologico da escrita: "Macau e, portanto,
inedito para mim na medida em que eu propria nele me busco."
(Braga, 1965b, p. 15). Notamos que se inicia um processo de
'mitificacao' desse espaco. Tal como referem Alvaro Manuel
Machado e Daniel-Henri Pageaux, o espaco estrangeiro e envolvido num
processus de mitificacao, visto que "[...] o espaco, na imagem da
cultura, nao e continuo nem homogeneo; um pensamento mitico valoriza
certos lugares, isola outros, condena outros ainda" (Machado &
Pageaux, 2001, p. 57). E, pois, neste contexto, que se inscrevem todos
os elementos proporcionadores da simbolizacao do espaco, ou como
denominou Mircea Eliade, a sacralizacao do espaco, configurada,
frequentemente, por varios regressos aos mesmos locais (Eliade, n.d).
Notamos que os regressos a Macau ocorrem tambem constante e quase
obsessivamente atraves da memoria, apos as diversas evocacoes da terra
natal, dos episodios da infancia e das situacoes vividas noutras
cidades. Alem disso, a descricao das paisagens observadas, partindo de
uma topografia objetiva e empirica, assume os contornos de uma topologia
subjetiva:
O cenario que contemplo das janelas sobranceiras da sala onde
ensino tem em Marco o cinzentoesfumado do Outono em Inglaterra.
Ao anoitecer de um dia morno, quando as criadas chinesas se aninham
no patio a tagarelar, o aroma das plantas tropicais traz-me a memoria
paisagens angolanas. E na distancia dos olhos do povo e, umas vezes, a
infancia, outras vezes, a morte que vem ter comigo (Braga, 1965b, p.
15-16).
Essa descricao de uma paisagem de Macau, geografica, acustica e
olfativa, desencadeia um processo rememorativo, que instaura a
subjetividade, a fusao temporal entre o passado e o presente, gerando,
assim, um espaco com contornos mais interiores do que exteriores,
interpenetrado pelos eixos tematicos da morte e da infancia, que nos
remete para uma "[...] geografia proustiana" (Collot, 2014, p.
56). Alias, Michel Collot, citando Andre Ferre, salienta o fato de os
lugares proustianos pertencerem, sobretudo, ao reino da memoria (Collot,
2014). Alem disso, as manifestacoes culturais, sociais e religiosas,
enquadradas pelo desfolhar do tempo, por meio da alusao as epocas que
vao marcando o ano, tambem surgem na obra, evidenciando o desejo de
conhecimento e de apropriacao do espaco e da cultura estrangeira:
Aparecem no mercado as linguas de fogo das mangas alongadas e
fulvas.
Nos becos a volta da rua principal, os 'tin-tins'
apregoam canfora para as tracas.
Vem a Quaresma, a Semana Santa. Domingo apos domingo, os cristaos
organizam procissoes pelas ruas juncadas de ervas de cheiro--procissoes
que se cruzam com o teatro sagrado a porta do pagode, ou com o bailado
do dragao nos festejos pagaos do Velho Oriente (Braga, 1965b, p. 16).
No excerto supracitado, o ambiente circundante e representado de
forma realista, tecendo-se uma representacao 'mimetica' da
realidade presenciada, que produz o que Roland Barthes denomina como o
'efeito de real', por meio de unidades narrativas que
instauram a verosimilhanca e ancoram a ficcao no real, evocando o
'mundo' empirico experienciado (Barthes, 1982). De notar
tambem, o dinamismo conferido pelos verbos utilizados (apregoam,
cruzam), conjugados no presente do indicativo, que lhe conferem maior
vivacidade e autenticidade. Alem disso, salienta-se a coexistencia de
religioes e culturas, mediante a alusao as procissoes da Semana Santa,
ao pagode e a danca do dragao. No fundo, a narradora procura converter o
estranho, o 'exotico' em familiar, por meio da analogia. Como
preconiza Peter Mason, "Como uma construcao, o exotico esta sempre
apto para renegociacao, como uma invencao, esta sempre aberto a uma
reinvencao" (Mason, 1998, p. 1, traducao nossa) (2). Este processo
tanto de renegociacao como de reinvenccao e observado na protagonista
durante o percurso de descoberta e descodificacao da complexa e distinta
realidade circundante.
Por seu turno, o quarto 'atravancado' de livros, onde a
protagonista vive, assume-se como um espaco relevante de
autoconhecimento, sublinhado atraves da projecao do seu rosto no
espelho. Este e um cenario de introspeccao, por meio do qual a narradora
procura acreditar ter-se habituado a uma quase ancestral "[...]
agonia de viver" (Braga, 1965b, p. 26). Desse modo, ao quarto e
conferido o valor de intimidade, de seguranca real ou imaginada,
atribuido por Gaston Bachelard a casa. Por conseguinte, e o quarto que
se converte para a protagonista numa especie de 'primeiro universo
e cosmos' na longinqua cidade que habita. Segundo o teorico
referido,
[...] e razoavel dizer que nos 'lemos a casa' ou
'lemos o quarto', ja que ambos, o quarto e a casa sao
diagramas psicologicos que guiam os escritores e os poetas nas suas
analises da intimidade (Bachelard, 1964, p. 38, traducao nossa) (3).
Esse tempo noturno na clausura do quarto conduz novamente a
rememoracao de outros tempos vividos em Angola ou Londres e,
posteriormente, tambem a infancia passada na terra natal. Nao obstante,
aquele espaco interior tambem sofre metamorfoses que podem perturbar a
tentativa de autoconhecimento empreendido pela protagonista, devido a
mutabilidade que encerram: "Tenho de guardar a aparencia das coisas
para nelas me descobrir" (Braga, 1965b, p. 40). Apos a remodelacao
do quarto, os objetos e os moveis sao dotados de valores simbolicos,
como afirma a narradora: "Gosto de abrir o armario e de contemplar
dentro dele os objectos. Fico-lhes grata. Estremeco de inexplicavel
contentamento por eles" (Braga, 1965b, p. 40). Neste caso,
verificamos que, tal como refere Bachelard, o armario e as suas
prateleiras convertem-se em autenticos orgaos da vida psicologica
secreta, atribuindo a existencia um modelo de intimidade. Por
conseguinte, ainda de acordo com Bachelard, o armario instaura um centro
de ordem, um limite. Poderemos, assim, considerar o gesto que conduz a
sua abertura como uma tentativa de desvendar a alma, que acende a
memoria. Alias, a seguir, a narradora evocara objetos que a acompanharam
ao longo das suas jornadas: "Hoje, e o Sul da China. Outro tempo,
foi Inglaterra. As coisas, no entanto, e que me tem aguentado viva"
(Braga, 1965b, p. 41). Os objetos assumem-se como um alicerce
fundamental nos seus percursos rememorativos, atendendo ao poder
evocativo que contem. Essas coisas materializam uma tentativa de
construcao da identidade, evocando o conceito de duracao bergsoniana,
visto que, como afirma Bachelard, "As lembrancas voltam em
burburinhos, se recordamos a prateleira em que ficavam as rendas, as
cambraias de linho, as musselinas colocadas sobre panos mais pesados
[...]" (Bachelard, 1964, p. 79, traducao nossa) (4). Para alem das
'viagens interiores' ao amago do proprio 'eu' e do
passado, das incursoes pela sua historia pessoal, tambem novos e
estranhos sentimentos sao experimentados pela protagonista no contato
com a realidade de Macau:
Foi uma tristeza nova a que ontem me visitou na casa de cha, no
meio das minhas amigas macaenses. [...]
A minha tristeza passava a frontaria envidracada do salao, seguindo
rua alem, e, atras dela, qual vestido de cauda, um rasto de desolacao
(Braga, 1965b, p. 54).
No excerto supracitado, a narradora personifica primeiramente a
tristeza, para depois estabelecer uma comparacao entre a sua
intensidade, nunca antes experimentada e a propria morte.
Simultaneamente, tenta transpor o mesmo sentimento para o ambiente e as
personagens que a rodeiam "[...] cheguei a ver um halo de tristeza
aureolando a cabeca de cada um" (Braga, 1965b, p. 55). Por
conseguinte, o sentimento descrito e projetado nos outros, impelindo a
uma necessidade de partilha.
A certa altura, a narradora tece uma reflexao acerca da escrita
autobiografica e da dor que esta inflige, estabelecendo uma analogia
entre esse exercicio de autoanalise e o ato de morrer, como se a escrita
de um diario equivalesse a um suicidio. No entanto, esclarece:
Eu nao estou a escrever um diario. Estou e a passar para o papel
recordacoes de tempos idos ociosamente misturados com impressoes que vao
surgindo. Sinto-me, no entanto, morrer aos poucos nestas linhas (Braga,
1965b, p. 99).
Revela, assim, uma desintegracao pessoal, uma despersonalizacao ao
referir: "Quem fala e aquela parte de fora de mim sempre atenta a
de dentro e a explora-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar
para nao desistir" (Braga, 1965b, p. 99). Neste caso, equaciona-se
a questao da ficcionalizacao na escrita autobiografica e de um
inevitavel desdobramento do 'eu'. Numa tentativa de
autodefinicao, a narradora recorre a uma relacao de analogia,
consubstanciada numa comparacao entre a sua alma e os livros, por meio
do adjetivo 'esfarrapados', que encerra uma ideia proxima de
fragmentacao, de desintegracao: "Sento-me a minha velha
escrivaninha pejada de livros, livros meio esfarrapados, como a minha
propria alma, das nossas vagabundagens pelo mundo." (Braga, 1965b,
p. 137). Paralelamente, deparamo-nos, a semelhanca do que sucedia
anteriormente em relacao a tristeza, com a revelacao da insatisfacao, de
uma angustia que nasce nas profundezas do ser, do 'eu',
desencadeada, em parte, pelo espaco que a rodeia e alastra o
'outro':
Sinto-me aqui por vezes tao incapaz de me acomodar a vida que chego
a ter desgosto de mim. A verdade e que me bastava o quarto que habito ha
dois anos e o verao de Macau--um purgatorio neste mundo--sem falar nas
penas do coracao e no desencanto de mim e dos outros (1965b, 1969, p.
208).
Note-se que o sentimento de 'desencanto' acaba por
irmanar o 'eu' com os 'outros'. E mais adiante
ainda, uma especie de diluicao, de fusao entre a narradora e a cidade:
Parece que esta terra de sono vai acentuando, dia a dia, o meu sono
sem remedio, esse nao querer nada nem ninguem, o meu abandono a
obrigacao de existir.
Vivo ja so daquilo que nenhuma pessoa pode viver--dos gestos, dos
sons, das cores.
Desco e subo a rua para olhar os frutos nas barracas da praca, as
joias nos ourives, as sedas e os brocados no capelista. Escuto os homens
porque as palavras deles sao amaveis e porque os seus modos, ora
naturais, ora falsos, podiam caber, perfeitos, num romance (Braga,
1965b, p. 212).
Neste caso, a captacao das diversas sensacoes parece impor-se,
relativamente a uma apreensao racional e reflexiva do real. Verificamos
um privilegio dos sentidos e das sensacoes, com o dominio, nao apenas da
visao, mas tambem da audicao ('olhar os frutos', 'escuto
os homens'). Embora a descricao sob a otica do olhar nos permita a
aquisicao de uma perspectiva mais abrangente do mundo que nos rodeia, o
recurso a evocacao da sensacao auditiva instaura uma relacao mais
proxima e intensa com o espaco exterior, tal como preconiza Yi-Fu Tuan
(Tuan, 1990). Assim, constatamos que o estado de espirito do
'eu' e configurado pelo espaco onde se encontra,
redimensionando-o atraves de uma sensacao de desintegracao, de abandono.
Apenas as sensacoes captadas no espaco exterior objetivado parecem
acalentar o ato de existir.
Em suma, em Estatua de Sal, deparamo-nos com uma narradora que,
seguindo o exemplo da mulher de Lot, olha constantemente para tras, ou
seja, para o passado. Macau assume-se como o espaco propicio ao irromper
da memoria e a uma demanda de uma identidade dispersa e fragmentada
pelos varios cantos do mundo e do tempo. Essa tentativa de
(re)construcao da identidade, atraves de incursoes interiores e
exteriores, e complementada pelos textos que constituem Passagem do
Cabo, que seguidamente analisaremos.
Os percursos da alteridade: a inquietante demanda de unidade do
'eu'
Eu vim para ver a Terra veio a lume em 1965 (Braga, 1965a), pela
Agencia Geral do Ultramar, sendo formada por cronicas acerca das terras
percorridas pela autora. O titulo foi colhido da frase de abertura da
primeira narrativa, intitulada A Terra. Posteriormente, trinta anos mais
tarde, esse livro seria reeditado (em 1994), com a inclusao de alguns
textos ineditos e o titulo tambem simbolico de Passagem do Cabo. Segundo
Brookshaw, esse titulo, que evoca o marco historico da travessia dos
navegantes portugueses pelo Cabo da Boa Esperanca rumo a um mundo
desconhecido, "[.. .]representa uma especie de viagem, uma demanda
na qual a sua contemporanea mais velha, Marguerite Duras, definiu a
nocao de imortalidade." (Brookshaw, 2002, p. 86, traducao nossa)
(5). Alias, na mesma linha de pensamento, como acrescenta Claire
Williams, relativamente a Maria Ondina Braga, "[...] para ela, o
objecto de desejo encontra-se sempre no fim da linha, mas so enquanto a
viagem dura" (Williams, 2009, p. 248, traducao nossa) (6). Nesta
esteira, as tres partes do volume inicial ('As terras sentidas de
Africa', 'Passagem do Indico' e 'Dias de
Macau'), e acrescentada uma quarta parte, formada por quatro
narrativas: 'Em Pequim. Macau', 'Coloane',
'Memorias da casa das professoras' e 'Macau vinte e cinco
anos depois'. Esta e uma obra que mistura a narrativa de viagens
com o tom memorialistico, assumindo tambem, por isso, a semelhanca da
anterior, um tom autobiografico.
No capitulo intitulado 'De Africa ao extremo oriente' de
Passagem do Cabo, a narradora principia por contrapor a pujanca, a
vastidao, a fecundidade magica e paradisiaca de Angola com a realidade
macaense. Neste contexto, Goa assumir-se-a como a 'ponte', o
local de transicao entre esses dois mundos. Esse processo de comparacao
e contraste com os locais habitados anteriormente revela uma tentativa
de apreender, conhecer mais profundamente Macau. Isto porque, tal como
preconiza Yu-Fu Tuan (2011), os lugares podem adquirir visibilidade
atraves de uma serie de significados, como e o caso da rivalidade ou do
conflito com outros lugares, a proeminencia visual ou, inclusive, o
poder evocativo da arte, da arquitetura ou dos rituais. Tal como afirma
esse autor,
Os locais humanos tornam-se nitidamente reais atraves da
dramatizacao. A identidade do lugar e concluida, dramatizando as
aspiracoes, necessidades, ritmos funcionais da vida pessoal e em grupo
(Tuan, 2011, p. 178, traducao nossa) (7).
Neste caso, Macau, espaco de acolhimento, salienta-se precisamente
pelos rituais, pela cultura, pelos monumentos que a narradora enumera:
[...] para quem veio la de Angola, os seus pagodes, os seus
conventos. os fantasticos funerais dos sequazes de Confucio, um
espiritualismo melancolico, aqui, senao mesmo lugubre (Braga, 1994, p.
112).
Esta cidade surge configurada sob o olhar ainda de uma vivencia
presente in loco--muito proxima do que sucede em Estatua de Sal, onde e
a terra natal e os outros espacos habitados pela autora que sao
retratados retrospetivamente, tecidos pelos fios da memoria. Entao, e a
alteridade, o estranhamento face ao 'outro' e, sobretudo, do
'outro' em relacao ao 'eu' que transparece na
descricao paisagistica e ambiencial de Macau, onde se questiona o
estatuto dos portugueses e da sua propria identidade cultural naquela
sociedade:
Macau, agora. Inverno frio. O ceu baixo e brumoso. E apertada nos
bracos lamacentos do rio das Perolas (que ironia!), a terra como se
terminasse aqui. Estreitas tambem as ruas de Macau, sombrias e
tortuosas. E daqui para acola, pequenos e activos, os seus habitantes
formiguinhas num formigueiro. Gente que passa por nos sem quase nos
enxergar, os chineses. Estreitos igualmente os olhos deles, como quem
visse para dentro. Que Macau, afinal, os chineses: as suas falas, as
suas feicoes, os seus vicios de viver. E os portugueses? O que, aqui, os
portugueses? Uns estranhos? Uns intrusos? (Braga, 1994, p. 110).
Neste excerto, emerge uma reflexao acerca da 'auto e
heteroimagem'. Por conseguinte, constatamos que o estreitamento das
ruas, ou seja, da cidade, se projeta na configuracao fisica dos olhos
dos habitantes chineses, concebidos como indiferentes aos outros,
pequenos, ativos, trabalhadores incansaveis--o que se salienta atraves
da imagem das formigas. Evidencia-se a distincao entre o estranho e o
familiar, essencial na construcao da identidade, que envolve a nocao de
'ser identificavel' e intimamente ligado a uma permanencia
atraves do tempo, algo que perdura identico a si proprio (Beller &
Leersen, 2007, p. 335-337). Nesta esteira, como tambem preconiza Stuart
Hall, podemos pensar sobre a identidade cultural como uma cultura
partilhada, uma especie de coletivo "[...] verdadeiro eu"
(Hall, 2003, p. 223, traducao nossa) (8). Subjacente a esta definicao,
segundo esse autor, encontra-se o fato de a nossa identidade cultural
refletir experiencias historicas comuns e codigos culturais partilhados.
Por conseguinte, de um modo geral, a narradora procura analisar a
questao da sua identidade nacional no seio de todas as diferencas
contempladas. Emerge igualmente o conceito de 'exotico' na
linha de pensamento de Victor Segalen, como uma 'estetica do
diverso', ou, por outras palavras, a nocao do diferente, a percecao
do diverso sem deformacoes (Segalen, 1999).
Como ja frisamos, os locais de Angola, as suas caracteristicas
sociais, culturais e paisagisticas vao surgindo constantemente como
elemento de comparacao com Macau, como ja sucedia tambem em Estatua de
Sal. Embora haja um tom, por vezes, de certa desilusao perante a
realidade encontrada no Extremo Oriente dessa analogia, a narradora
conclui o seguinte: "Comovente, de qualquer modo, Macau. Comovente
porque unico. Por mim comparo-o ao peixe-dourado-da-china, um rubi nas
aguas espessas e paradas (podres?), de um vaso ritual." (Braga,
1994, p. 112). Desse modo, Macau e investida de um valor simbolico,
consubstanciada, por exemplo, na comparacao com o rubi, pedra preciosa
de cor vermelha, que foi considerada um emblema da felicidade e ate um
antidoto contra a tristeza.
Enquanto em Estatua de Sal a acao se vai construindo, como
verificamos, ancorada nas paisagens interiores e nos atos rememorativos
da narradora, frequentemente desencadeados por estimulos externos,
objetos ou imagens visualizadas, Passagem do Cabo estrutura-se em torno
das paisagens observadas, do exterior, da relacao com o
'outro', diverso e distinto, cuja essencia se pretende
conhecer e apreender. Por exemplo, no capitulo intitulado 'Verao em
Macau':
Por ora, porem, fugida ao sufoco do quarto, vou vagueando por Macau
sem pressa nem proposito. Vou calcorreando as arterias cintilantes de
lojas e estalagens, os recolhidos bairros ricos, os barulhentos bairros
pobres, e largos, e larguinhos e calcadas, e embarcadouros. E nao e que,
de repente, me vejo enredada nos fios de nylon dos papagaios de papel?
(Braga, 1994, p. 121)
O 'sobrenatural' e a religiosidade tambem atraem a
narradora: "Vir a Macau, o mesmo que dizer vir a China, e ter a
oportunidade, impar talvez, de olhar frente a frente o
Sobrenatural" (Braga, 1994, p. 125). Neste caso, como depois e
esclarecido, o 'sobrenatural' surge para a narradora como
sinonimo do inacessivel, que ela procura constantemente numa ansiedade
de reunir e reconstruir as diversas dimensoes do proprio 'eu'.
Ela interroga-se: "Sera que estou doente? Claro que estou. Sempre
estive. E a minha doenca, na raiz da minha doenca, a razao de eu
enxergar aquilo que nao e" (Braga, 1994, p. 125). Alude-se a uma
propensao visionaria para decifrar um sentido oculto das coisas e das
aparencias, algo de profundamente genesiaco, "[...] anterior ao ato
de ser" (Braga, 1994, p. 125). Impelida pela demanda do sentido
mais profundo, desconhecido e puro da realidade circundante, a narradora
sente-se atraida pelas paisagens geograficas e humanas
'exoticas', na linha de uma ja referida 'estetica do
diverso', que, como afirma Maria Leonor Buescu,
[...] sera tambem a contrapartida do etnocentrismo, na medida em
que faz funcionar, como categoria tutelar, o distanciamento espacial,
social, cultural, antropologico, estetico, fazendo, todavia, tambem
funcionar mecanismos de apropriacao (Buescu, 1997, p. 567).
Um exemplo que tambem se enquadra nesta atitude e a atracao por
figuras marginais, desfavorecidas pela sorte e pela sociedade, que
encerram um passado mais ou menos distante. Sera o caso dos condutores
do rickshaw ou das velhas Damas de Xangai, ainda vitimas do ancestral
costume dos pes ligados, exiladas, que pedem esmola, completamente
desintegradas no territorio de exilio e incapazes de comunicar:
"Exiladas do Pais Debaixo do Ceu, aqui se acomodam, as coitadas, na
beira dos bancos de jardim, senao arrimadas a auspiciosas portas de
centros de caridade" (Braga, 1994, p. 126). Alias, como afirma a
narradora, mais adiante: "Tudo nesta terra me impressiona muito, me
impressiona de mais" (Braga, 1994, p. 137). Entao, esse mundo
exotico permitira a descida do 'eu' ao seu proprio misterio,
ao seu mundo subterraneo interior, questionando a sua identidade atraves
do discurso (Bhabha, 1996).
Por seu turno, um dos processos reveladores do teor sui generis de
Macau, da sua paisagem filtrada pela subjetividade da narradora, e a
ekfrasis, entendida como a arte de descrever verbalmente uma imagem
pictorica ou uma cena visual, ou, nas palavras de Scott, "[...]
ekphrasis e o processo criativo que implica fazer arte verbal da arte
visual" (Scott, 1994, p. 1, traducao nossa) (9). Desse modo, a
cidade surge retratada como um quadro impressionista:
Da janela do meu quarto lembra uma pintura, Macau, um quadro de
casas velhas em vermelhoescuro de algum talento impressionista.
Vermelhoescuro e arruivado de arvores anosas e invernais. E ao fundo as
velas pretas num mar de purpura.
Por dias de chuva fina e nevoeiro, Macau recordame Inglaterra.
Melhor, apesar de tudo. Nao tem tanto frio. Nao e estrangeira (Braga,
1994, p. 136).
Nessa pintura tecida por palavras, sobressai a cor vermelha,
fortemente simbolica, conotando o principio da vida--presente tambem na
imagem do rubi. O vermelho-escuro "[...] e nocturno feminino,
secreto e, no limite, centripeto, ele representa nao a expressao, mas o
misterio da vida." (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 686).
Trata-se, pois, de uma cor matricial, que contrasta com o negro das
velas. Com efeito, a cor negra opoe-se a todas as cores, estando
associada as trevas primordiais, a indiferenciacao original, a
condenacao, a morte, tendo um aspecto de obscuridade e de impureza.
Visto que absorve a luz e nao a devolve, evoca "[...] o caos, as
trevas terrestres da noite, o mal, a angustia, a tristeza, a
inconsciencia [...]" (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 543).
Por conseguinte, esse quadro e 'pintado' por cores evocadoras
do misterio, atravessadas pela dicotomia vida/morte, reveladoras do
enigma que atravessa aquela realidade exotica, embora com certos laivos
de familiaridade e proximidade, visto nao ser considerada
'estrangeira'.
No texto intitulado 'porto interior', a narradora olha
para tras, novamente como a mulher de Lot, para recordar o primeiro
inverno passado em Macau, visto ter chegado em dezembro, e o tom de
desilusao inicial transparece: "Eu que viera a Macau movida pelo
sonho do Extremo Oriente, preparada para a superioridade de uma
civilizacao multimilenaria" (Braga, 1994, p. 143-144).
Posteriormente, na parte subordinada ao titulo 'Macau 25 anos
depois', deparamo-nos com o texto 'Em Pequim ... Macau',
baseado na experiencia da autora ao viver e trabalhar nessa cidade em
1986, vinte e cinco anos depois do primeiro contato com o Extremo
Oriente. Neste caso, a narradora confronta a capital chinesa, de ruas
largas e palacios majestosos, de jardins deslumbrantes, mas, sobretudo,
marcada pela distancia e pela frieza, com Macau. E revela a sua
dificuldade em encontrar, naquele espaco, a realidade do territorio
anteriormente habitado: "Custoso para mim, de repente, rever Macau
la. A tipica Macau de ruazinhas tortas e sujas, lojas e restaurantes
porta-sim, porta-nao, sam-lum-ches, tintins, pregoes, salas de
jogo" (Braga, 1994, p. 147). Contudo, a evocacao de Macau surge
constantemente e mesmo a partir das pessoas, das pequenas coisas ou
objetos, mesmo de sabores e cheiros:
Mesmo assim, num instante de distracao, ai voltava eu vinte anos
atras ao Sul da China. [...] Eram o perfumes de canfora, de sandalo, de
cha, de ervas medicinais. Sem ja falar da antiguidade dos usos e dos
ares (Braga, 1994, p. 148).
Neste contexto, deparamo-nos, como alias tambem sucede em Estatua
de Sal, com uma transposicao metaforica, muito frequente na estetica de
Proust, ancorada numa assimilacao por proximidade, desencadeada pela
experiencia da 'memoria involuntaria', por um mecanismo de
reminiscencia, de uma sensacao que desencadeia a lembranca de um outro
lugar (Genette, 1972). Tal como o narrador de A la Recherche du Temps
Perdu [Em Busca do Tempo Perdido] de Proust rememorava o passado a
partir do sabor de uma madalena, tambem esta narradora revela uma
proustiana e constante tentativa de procurar o tempo e o espaco perdidos
"[...] volta e meia, a minha memoria em Macau" (Braga, 1994,
p. 149). Nesta esteira, espaco e tempo encontram-se intimamente
relacionados, agindo ambos como agentes configuradores da construcao e
reconstrucao de uma identidade, que evolui sempre em confronto com o
outro, com o ambiente social e a cultura circundante. Desse modo, como
refere Leerssen, "[...] a identidade e a alteridade, a auto e
hetero-imagem espelham-se uma na outra: cada uma determina o perfil do
outro, e e, por sua vez, determinada por isso" (Leerssen, 2007, p.
340, traducao nossa) (10).
No fundo, como refere a seguir, em 'Memorias da casa das
professoras': "Macau foi tambem a minha curiosidade e a minha
inclinacao pelo povo chines, a sua Historia, a sua sabedoria"
(Braga, 1994, p. 158). Por isso, Macau sintetiza uma atitude de
admiracao perante o outro, a realidade estrangeira, distanciada de uma
atitude etnocentrica. Por outras palavras, a representacao da cidade
delineia-se paralelamente a redefinicao e reconstrucao de uma identidade
individual forjada atraves da 'viagem' pelos mais profundos
meandros do 'eu', rumo ao 'outro'. Tal como afirma
Manuela Oliveira, a alteridade delinearse-a como uma outra face
complementar e essencial da ipseidade, por isso, "[...] e, tambem
assim, que o caracter polissemico do 'Eu' se afirma e o do
'Outro' se confirma, sendo a polissemia o espaco de afirmacao
do ser que se busca" (Oliveira, 1995, p. 48). Nesta sequencia, o
'eu' espelha o 'outro' e vice-versa, atraves de uma
fusao de imagens reciprocas, marcadas pela similitude, tal como
preconiza Paul Ricoeur (1990). E, portanto, esta necessidade de
'encontro'--consigo e com o 'outro'--que transparece
na escrita de Maria Ondina Braga, embora nunca atinja um processo pleno
de integracao, mantendo-se sempre como uma observadora, uma outsider
(Brookshaw, 2002). Alias, essa necessidade de reunir os seus diversos
'eus', de reencontrar uma identidade dispersa, transparece
neste excerto do capitulo intitulado 'Macau vinte e cinco anos
depois':
Tornar a um lugar que habitamos largos anos atras, e lugar longe,
das duas uma: ou ressuscitamos, emocionados, situacoes ai sucedidas,
rostos ainda familiares, o que nos proprios eramos a data--e isso cada
vez mais raro num mundo em constante mutacao --ou nos perdemos por
completo (Braga, 1994, p. 161).
O retorno ao espaco anteriormente habitado revela-se fulcral para a
reconstrucao da identidade, na medida em que o passado e enformado e
adquire sentido no amago de uma determinada realidade espacial. Tal como
refere J. E. Malpas, "O passado nao pode ser concebido
independentemente da localizacao no espaco" (Malpas, 1999, p. 180,
traducao nossa) (11). Entao, apenas em um determinado lugar, podera o
ser humano ser capaz de 'agarrar' o passado, o presente ou o
futuro, visto que "[...] somente no estrita area do espaco pode
suceder organizacao espacio-temporal das coisas [...]" (Malpas,
1999, p. 180, traducao nossa) (12). Por seu turno, a narradora revela
sentir-se como 'Filha da Eternidade', ao discorrer acerca
desse espaco de tempo compreendido pela sua memoria, que,
simbolicamente, abarca vinte e cinco anos, pois "[...] na Biblia, o
Tempo do Senhor e sem calculo e sem equiparanca, e contudo confinado
pelo Tempo de Sata. Entre esses dois tempos situei-me eu em Macau,
decorreu um quarto de seculo" (Braga, 1994, p. 161). Assim, as
vivencias ficam encerradas num tempo tambem mitico, construido por meio
da memoria.
Por fim, o sujeito de enunciacao evoca ainda a promessa que
fizera--e que acaba por nao cumprir--de, ao regressar a Macau, tomar o
sam-lun-che do seu pang-yau pregoeiro, no porto Exterior, e subir a
Avenida San-ma-lou. Recorda igualmente os 'ventos' que a
impeliram para fora de Macau no ano do Cavalo (1966), afirmando:
"Ora se e verdade que quem sustenta sonhos vive duas vidas, devo
dizer que nao foi em vao o que, de revivido, se me revelou em
Macau" (Braga, 1994, p. 163). E a ultima imagem que encerra a obra
e a dos espectrais homens do samlun-che, acentuando a preferencia da
autora, ja anteriormente mencionada, por personagens consideradas como
marginais, outsiders, ou que, de algum modo, se afastam da norma social
imposta, e neste caso se assumem como testemunhas vivas de um passado
que se perdeu, de um ciclo historico encerrado:
E a par dessas fossilizadas figuras, Santo Deus, a China. A que eu
cheguei a conhecer ha vinte e cinco anos ali refugiada, em Macau, e ja
de rastos? Digo, a das concubinas, das velhas de pes ligados, e do opio?
Nao. Dessa nem ja pedra sobre pedra, po sobre po (Braga, 1994, p. 164).
Com efeito, neste regresso, a narradora encontra a cidade em um
processo de desenvolvimento, adaptada, como refere Brookshaw, a China
pos-Mao, "[...] ja em plena expansao capitalista, submetida a uma
notoria metamorfose" (Brookshaw, 2003, p. 162).
Consideracoes finais
Em suma, Macau delineia-se como um lugar enraizado numa mitologia
pessoal da autora, que nele se procura constantemente. Primeiramente, em
Estatua de Sal, identificando-se com a figura biblica evocada, inicia
uma neoplatonica demanda com o intuito de reunir os varios fragmentos da
sua vida, as metades da sua identidade, atraves de uma rememoracao de
teor proustiano que desagua sempre em Macau, espaco investido de valor
simbolico, mitificado. Em seguida, a demanda da unidade e da identidade
individual prolonga-se, delineando-se mediante o confronto com o
'Outro', com os elementos distintos que marcam o povo, a
cultura e os espacos de Macau, assumida igualmente como uma
'janela' para a contemplacao da fascinante cultura chinesa.
Nao sao as marcas de Portugal nem da sua cultura que a narradora almeja
encontrar, mas, sim, o distinto, o diferente, os aspectos peculiares que
conduzem ao conhecimento da essencia de uma cultura estrangeira tao
distinta. Neste contexto, a escrita adquire um teor ontologico,
assumindo-se como espaco 'sagrado' de revelacao e de busca
tanto da identidade como da alteridade, pois e contando-se que a
narradora procura desvendar a essencia do seu 'eu' e dos
outros. Por isso, em contraposicao a sua terra natal, mas tambem a todos
os outros paises anteriormente habitados, em oposicao a propria China,
Macau e figurada como o espaco do refugio, da criacao, da catarse, para
onde confluem todas as memorias, consubstanciadas, assim, nessa
"[...] terra do sono e da poesia" (Braga, 1965b, p. 108).
Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.26921
Referencias
Bachelard, G. (1964). The Poetics of Space. New York, NY: Orion
Press.
Barthes, R. (1982). "L'effet de reel." Litterature
et Realite. Paris, FR: Ed. du Seuil.
Beller, M. & Leerssen, J. (2007). Imagology, the cultural
construction and literary representation of national characters. New
York, NY: Rodopi.
Bezerra, L. S. (2011). A escrita itinerante de Maria Ondina Braga:
autobiografia, ficcao e memoria (Tese de doutorado), Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Biblia de Jerusalem (1995). Sao Paulo: Edicoes Paulus.
Bhabha, H. (1996). The Location of Culture, New York, NY:
Routledge.
Braga, M. O. (1965a). Eu vim para ver a terra. Lisboa:
Agencia-Geral do Ultramar.
Braga, M. O. (1965b). Estatua de sal. Lisboa: Sociedade de Expansao
Cultural.
Braga, M. O. (1994). Passagem do Cabo. Lisboa: Editorial Caminho.
Brookshaw, D. (2002). Perceptions of China in modern portuguese
literature border gates, Lewiston, NY: The Edwin Mellen Press.
Brookshaw, D. (2003). Revisitando os fantasmas imperiais: Nocturno
em Macau de Maria Ondina Braga. In A.P. Ferreira & M. Calafate
(Eds.), Fantasmas e fantasias imperiais no imaginario portugues
contemporaneo (p. 151-163). Porto, PT: Campo das Letras.
Buescu, M. L. C. (1997). O exotismo ou a estetica do diverso. In A.
Falcao, M. Nascimento, & M. L. Leal (Eds.), Literatura de viagem,
narrativa, historia, mito (p. 565-578). Lisboa, PT: Cosmos.
Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (1994). Dicionario dos Simbolos.
Lisboa, PT: Teorema.
Collot, M. (2014). Pour une geographie litteraire. Paris, FR:
Corti.
Eliade, M. (n.d). O sagrado e o profano. A essencia das religioes.
Lisboa, PT: Livros do Brasil.
Genette, G. (1972). Figures III. Paris, FR: Seuil.
Gusdorff, G. (1991). Ecritures du Moi. Paris, FR: Odite Jacob.
Hall, S. (2003). Cultural Identity and Diaspora. In J. E. Braziel
& A. Mannur (Eds.), Theorizing Diaspora: a Reader (p. 233-246).
Oxford, GB: Blackwell.
Heidegger, M. (1962). Being and Time, New York, NY: Harper &
Row.
Leerssen, J. (2007). Identity/Alterity/ Hibridity. In M. Beller
& J. Leerssen (Eds.), Imagology, the cultural construction and
literary representation of national characters (p. 335-341). Amsterdam,
New York, NY: Rodopi.
Machado, A. M. & Pageaux, D.-H. (2001). Da Literatura Comparada
a Teoria da Literatura, Lisboa, PT: Ed. Presenca.
Malpas, J. (1999). Place and Experience. A Philosophical
Topography, Cambridge, GB: Cambridge University Press.
Mason, P. (1998). Infelicities: representations of the exotic.
Baltimore, MD: John Hopkins University Press.
Merleau-Ponty, M. (1962). The Phenomenology of Perception. London,
GB: Routledge.
Oliveira, M. M. V. B. (1995). A arte da "Fuga" em Maria
Ondina Braga ou o feminino em "contraponto". Dissertacao de
Mestrado, Faculdades de Letras, Universidade do Porto, Porto, Portugal.
Pageaux, D.-H. (1984). Imagens de Portugal na cultura francesa,
Lisboa, PT: ICLP.
Pageaux, D.-H. (1989). De l'imagerie culturel a l'
imaginaire. In Y. Chevrel & P. Brunel (Eds.), Precis de litterature
comparee (p. 138-147). Paris, FR: PUF.
Proust, M. (1954). A la recherche du temps perdu. Paris, FR:
Gallimard.
Reis, C. & Lopes, A. C. (1991). Dicionario de Narratologia.
Coimbra, PT: Livraria Almedina.
Ricoeur, P. (1990). Soi meme comme un autre. Paris, FR: Seuil.
Scott, G. F. (1994). The Sculpted Word: keats, ekphrasis, and
visual arts. London, GR: University Press of New England.
Segalen, V. (1999). Essai sur l'exotisme. Paris, FR: Le Livre
de Poche.
Tuan, Y.-F. (1990). Topophilia, a study of environmental perception
and values. New York, NY: Columbia University Press.
Tuan, Y.-F. (2011). Space and place. the perspective of experience.
Minneapolis, MN: University of Minnesota Press.
Williams, C. (2009). Re-exploring the empire: Maria Ondina's
Braga Journey to Macau and other places. In Actas Congresso
Internacional A Vez e a Voz da Mulher Portuguesa na Diaspora (p.
241-248), Universidade de Macau. Macau, China, 3.
Received on April 7, 2015.
Accepted on October 26, 2015.
Dora Maria Nunes Gago
Departamento de Portugues, Faculdade de Letras, Universidade de
Macau, Avenida da Universidade, Taipa, Macau, China. E- mail:
doragago@umac.mo
(1) "[... ]the referring to a characterological reputation
current within and shared by a group, the latter to the opinion that
others have about a group's purported character"
(2) As a construct, the exotic is always up for renegotiation, as
an invention, it is always open to reinvention
(3) it was reasonable to say that we 'read a house' or
'read a room', since both room and house are psychological
diagrams that guide writers and poets in their analysis of intimacy
(4) Memories come crowding when we look back upon the shelf on
which the lacetrimmed, batist and muslin pieces lay on top of the
heavier materials
(5) represents a kind of theresfold journey, a quest for the
intangible what her older contemporary, Marguerite Duras, termeed the
notion of immortality.
(6) For her the object of desire is always at the end of the line,
but only as long as the journey lasts.
(7) Human places become vividly real through dramatization.
Identity of place is achieved by dramatizing the aspirations, needs, and
functional rhytms of personal and group life.
(8) One true self
(9) Ekphrasis is a creative process that involves making verbal art
from visual art
(10) identity and alterity, auto--and hetero-image, mirror each
other: each determines the profile of the other, and is in turn
determined by it
(11) The past cannot be grasped independently of location in place
(12) only within the compass of place can there be the
spatio-temporal ordering of things