The intertextual dialogue with Fernando Pessoa in three short stories by Jose Eduardo Agualusa/O dialogo intertextual com Fernando Pessoa em tres contos de Jose Eduardo Agualusa.
Botoso, Altamir
Introducao
Atualmente, muito se tem discutido sobre as literaturas africanas
de expressao portuguesa, ou seja, literaturas oriundas de paises que
foram colonias portuguesas, como Mocambique, Angola, Cabo Verde, Sao
Tome e Principe, Guine-Bissau. Nesse sentido, e valido destacar as
ponderacoes de Mauricio Silva (2011) a respeito do estudo dessas
literaturas:
A importancia e o reconhecimento que [...] a literatura africana em
portugues tem merecido da critica nacional e internacional vem mostrar a
pertinencia de se estudar e divulgar com mais afinco e empenho alguns de
seus mais representativos nomes, abordando nao apenas aspectos que
revelam a competencia estetica de seus autores em criar uma literatura
autonoma e original, mas tambem que demonstrem como essa literatura pode
interagir com todo o processo de construcao da identidade cultural
africana, equacionando, assim, as contradicoes que foram historicamente
implantadas por um sistema de colonizacao (Silva, 2011, p. 1-2).
A literatura africana vem se firmando no cenario mundial, sobretudo
na contemporaneidade, por meio de escritores e escritoras cujo objetivo
tem sido a criacao e a perpetuacao de uma literatura que se volta para
questoes como a construcao da identidade cultural, evidenciando e
discutindo as contradicoes que permearam e ainda permeiam o sistema de
colonizacao lusitano. A proposito da colonizacao portuguesa, que se
caracterizou pela violencia e arbitrariedade, destacamos o que se passou
com a nacao angolana:
A historia de Angola nao e diferente da de outros paises do
continente africano que tiveram sua soberania vilipendiada pelo
colonizador europeu. Foram muitas lutas e mortes desde que os seus
algozes pisaram em suas terras. Isso se deu por volta do seculo XV,
quando adentraram em solo angolano os desbravadores portugueses. Desde
esse momento, o rumo da historia de Angola estava alterado, manchado por
inumeras guerrilhas e resistencias aquele que lhe usurpava a sua terra e
os seus filhos. O trafico de escravos para Portugal e para o Brasil foi
intensificado e acabou por tirar de Angola muitos de seu povo. Acabada a
escravidao formal, Angola entra num periodo de escravidao intelectual,
em que depende de seus opressores para constituir seu governo. Com a
independencia, o territorio angolano conquista sua autonomia, mas seus
governantes muitas vezes passam a copiar o regime de governo usado pelo
colonizador, imitando aqueles que repudiavam. Hoje, Angola vive um
momento de reencontro com a sua historia, com sua gente, com sua
tradicao (Bach, 2011, p. 2).
As colonias africanas, controladas pelo governo portugues, sofreram
toda sorte de abusos, com a exploracao prolongada de seus recursos
minerais e o ultrajante trafico negreiro, que foi bastante intenso,
perdurando ate quase o final do seculo XIX. Apesar disso, Mocambique,
Cabo Verde, Angola, dentre outras colonias, quando conseguiram
libertar-se de Portugal, continuaram a ser dependentes intelectualmente
da metropole portuguesa, uma vez que continuaram a se valer do regime
politico dos colonizadores. Houve necessidade de muitas lutas armadas,
ate que as nacoes africanas conseguissem trilhar caminhos que buscassem
resgatar a sua historia, seu povo e tradicoes seculares, como e o caso
de Angola, cuja literatura vem se consolidando, na atualidade, com
escritores como Pepetela, Jose Eduardo Agualusa, Jose Luandino Vieira,
dentre outros.
Ainda em relacao ao ambito literario, e valido ressaltar que Angola
conta com poetas e romancistas que se dedicaram a promover uma interacao
entre a literatura e a realidade local, e cujos textos dividem-se em
tres fases: a primeira, marcada por um vies anticolonialista; a segunda,
no periodo conhecido como pre-independentista, com fortes tracos
neorrealistas; e a terceira fase, depois da independencia, considerada
como o apice da literatura angolana, valorizando o local e atingindo o
universal. Mauricio Silva (2011) a respeito desse assunto, tece as
seguintes ponderacoes:
Tendo conhecido uma primeira fase marcada pela expressao
tipicamente colonial e nativista (com escritores como Jose da Silva Maia
Ferreira, autor de Espontaneidade da minha alma, 1849; e Pedro Felix
Machado, autor de O filho adulterino, 1892), a literatura angolana
atinge um periodo marcado pela expressao anticolonialista (com Cordeiro
da Mata, autor de Delirios, 1877; e Alfredo Troni, com a celebre novela
Senhora viuva, 1882/1973). A fase seguinte ja traz a contribuicao de uma
literatura pre-independentista, com o neo-realismo de um Assis Junior
(com O segredo da morta, 1936); e um Castro Soromenho (com Noite de
angustia, 1939; Homens sem caminho, 1942; Calenga, 1945; Terra morta,
1949). A literatura angolana atinge o auge de sua producao literaria com
uma fase que, por mais de um motivo, pode ser chamada de independente,
periodo que se inicia sob os auspicios de um nacionalismo localista,
inspirador da famosa Antologia dos novos poetas de angola (1950) e, uma
decada depois, de poesias como as de Agostinho Neto (Poemas, 1960;
Sagrada Esperanca, 1974), Viriato da Cruz (Poemas, 1961), [...].
Poesia da melhor qualidade que se criou em Angola, essa producao
concilia sentimento nacionalista e expressao lirica, buscando assim
equacionar as contradicoes historicamente criadas por seculos de
exploracao colonial. [...] (Silva, 2011, p. 2-3).
A poesia angolana do periodo pos-independentista, segundo Mauricio
Silva (2011), apresenta um alto grau de elaboracao e de qualidade
estetica, pois unifica o nacionalismo africano e a expressao lirica, com
o objetivo de discutir e equilibrar as contradicoes provenientes do
sistema colonialista portugues. De modo semelhante ao que se observa a
respeito do universo poetico, no territorio da ficcao, a nacao angolana
conta com autores e obras importantes, que atestam a maturidade e a
qualidade das narrativas produzidas em seu territorio:
No que diz respeito a prosa, alem do ja citado Castro Soromenho, a
literatura angolana atinge sua maturidade com as obras de Arnaldo Santos
(Quinaxixe, 1965), Jose Luandino Vieira (Luuanda, 1964; A vida
verdadeira de Domingos Xavier, 1974; Nos, os do Makulusu, 1975; Joao
Vencio: os seus amores, 1979), Mendes de Carvalho/Uanhenga Xitu (Mestre
Tamoda, 1974; Bola com feitico, 1974; Manana, 1974; Maka na Sanzala,
1979), Arthur Mauricio Pestana dos Santos/Pepetela (As aventuras de
Ngunga, 1976; Mayombe, 1980; Yaka, 1984; A geracao da Utopia, 1992).
Boaventura Cardoso (Dizanga dia Muenhu / A lagoa da vida, 1977), Jofre
Rocha (Estorias de Musseque, 1976) e muitos outros (Silva, 2011, p. 2).
Complementando essa listagem oferecida por Mauricio Silva, cumpre
acrescentar o nome de Jose Eduardo Agualusa, que nasceu em Huambo,
Angola, em 13 de dezembro de 1960. Iniciou sua carreira literaria em
finais da decada de 1980, revelando-se, na atualidade, "[...] como
um dos escritores mais produtivos da literatura angolana" (Silva,
2012, p. 12). E tambem jornalista, com formacao em Agronomia e
Silvicultura. Sua familia e portuguesa pelo lado paterno e brasileira
pelo lado materno. Ele ja viveu por algum tempo no Recife e no Rio de
Janeiro. Suas obras distribuem-se em diferentes generos: romances,
contos, cronicas, livros infantojuvenis, ensaios, poesia, pecas de
teatro. Alem disso, ele escreve cronicas para o jornal brasileiro O
Globo, a revista Ler, o portal Rede Angola e realiza um programa sobre
musica e textos africanos chamado A hora das Cigarras, para a RDP
Africa, e e membro da Uniao dos Escritores Angolanos (Fenske, 2015, p.
1-2).
A sua vasta obra divide-se em romances: A conjura (1989), Estacao
das chuvas (1996), Nacao crioula (1997), Um estranho em Goa (2000), O
ano que Zumbi tomou o Rio (2002), O vendedor de passados (2004), As
mulheres de meu pai (2007), Barroco Tropical (2009), Milagrario pessoal
(2010), Teoria geral do esquecimento (2012), A vida no ceu (2013), A
rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo (2014); novelas:
Dancar outra vez (2001), A feira dos assombrados (1992); contos e
estorias: Dom Nicolau Agua-Rosada e outras estorias verdadeiras e
inverossimeis (1990), Fronteiras perdidas: contos para viajar (1999), O
homem que parecia domingo (2002), Catalogo de sombras (2003), Manual
pratico de levitacao (2005), Passageiros em transito: novos contos para
viajar (2006), Educacao sentimental dos passaros (2011), O livro dos
camaleoes (2015); cronica: A substancia do amor e outras cronicas
(2000); poesia: O coracao dos bosques--poesia 1980-1990 (1991); livros
infantojuvenis: Estranhoes e bizarrocos: estorias para adormecer anjos
(2000), A girafa que comia estrelas (2005), O filho do vento (2006),
Nweti e o mar (2011), A rainha dos estapafurdios (2012); ensaios e
outros textos: Lisboa africana (em parceria com Fernando Semedo e Elza
Rocha) (1998), Um pai em nascimento (2010), O lugar do morto (2011), Fui
para Sul: os desenhos de Laurentina (2012); guia: Na rota das
especiarias (2008); antologia (participacao): Estorias alem do tempo
(2014); pecas de teatro: Geracao W (2004), Aquela mulher (2007), Chovem
amores na Rua do Matador (2008), A caixa preta (2010), estas duas
ultimas em parceria com Mia Couto (1955-).
Sobre o escritor em epigrafe, Maria Teresa Salgado (2000) poe em
relevo o fato de que ele imbuiu-se da tarefa de divulgar as literaturas
africanas no Brasil e tambem mundialmente, conectando as nacoes
angolana, portuguesa e brasileira, fato que e reforcado pelas distintas
cidades nas quais Agualusa manteve residencia--Huambo, Rio de Janeiro e
Lisboa--e que interliga espacos e realidades diferenciadas:
[...] Desde 1998 ele se estabeleceu no Rio e, alem de escrever
muito, tem se dedicado a divulgar as literaturas africanas, nao so no
Brasil mas pelo mundo afora. [...] Seu objetivo parece ter sido,
portanto, destacar a interligacao entre os espacos geograficos (o
nascimento em Huambo, a formacao como agronomo e silvicultor em Lisboa e
a residencia atual no Rio), procurando evidenciar a transnacionalidade
como marca de seu percurso. Dessa forma, sua biografia se encontra
intimamente relacionada ao seu projeto literario que procura criar
pontes entre Angola, Brasil, Portugal e o resto do mundo, promovendo uma
reflexao sobre a importancia da mesticagem em todos os niveis [...]
(Salgado, 2000, p. 176).
Assim, notamos que o escritor angolano mencionado busca
estabelecer, por meio de seus escritos, conexoes entre espacos
geograficos que abrangem Angola, Brasil e Portugal, configurando um
projeto literario que
[...] vem se desenvolvendo e sobretudo se modificando desde as
primeiras obras de Agualusa [e] parece ter como um dos seus objetivos
maiores 'confundir' as claras fronteiras que delimitam paises
separados pelo Atlantico, promovendo a interpenetracao entre os espacos
geograficos nos tres continentes. Como pensar, entao, o seu proprio
perfil como escritor, sem evidenciar as ligacoes que possui com Angola,
Portugal e Brasil? Da mesma forma, como pensar o processo de construcao
de identidade angolana sem considerar o emaranhado das relacoes
existentes entre esse pais Brasil e Portugal? (Salgado, 2000, p. 176).
Levando em conta tal projeto, e possivel constatar que um dos
recursos de que se vale Jose Eduardo Agualusa para borrar e apagar as
fronteiras entre Angola, Brasil e Portugal e a intertextualidade, que
desvela um dialogo entre as literaturas desses paises. Alia-se a esse
projeto do autor, uma producao artistica vasta, que compreende romances,
novelas, contos, cronicas, ensaios e pecas de teatro, conforme apontamos
anteriormente, e que dao respaldo ao objetivo idealizado e perseguido
por esse angolano de 'varias patrias'.
O nosso proposito, neste artigo, e realizar a analise de tres
contos de Agualusa, 'Se nada mais der certo leia Clarice',
'Catalogo de sombras' e 'Livre-arbitrio', que fazem
parte da obra Manual pratico de levitacao (2005), com o intuito de
destacar a intertextualidade que se estabelece entre tais contos e o
poeta portugues Fernando Pessoa e seus heteronimos--Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Alvaro de Campos.
A intertextualidade: dialogo de textos
O conceito de intertextualidade foi concebido pela semiologa
bulgara Julia Kristeva, quando ela retomou os escritos do teorico russo
Mikhail Bakhtin, afirmando que ele concebeu um modelo no qual a
estrutura literaria
[...] se elabora em relacao a uma outra estrutura. [...] a
'palavra literaria' nao e um ponto (um sentido fixo), mas um
cruzamento de superficies textuais, um dialogo de diversas escrituras:
do escritor, do destinatario (ou da personagem), do contexto cultural
atual ou anterior.
Introduzindo a nocao de estatuto da palavra [...], Bakhtin situa o
texto na historia e na sociedade, encaradas como textos que o escritor
le e nas quais ele se insere ao reescreve-las. [...] (Kristeva, 1974, p.
62, grifos da autora).
Afunilando mais estas consideracoes, Kristeva (1974, p. 63-64,
grifos da autora) afirma que, no universo discursivo do livro,
[...] o eixo horizontal (sujeito-destinatario) e o eixo
vertical (texto-contexto) coincidem para revelar um
fato maior: a palavra (o texto) e um cruzamento de
palavras (de textos) onde se le, pelo menos, uma
outra palavra (texto)
e, dessa forma,
[...] todo texto se constroi como mosaico de citacoes,
todo texto e absorcao e transformacao de um outro
texto. Em lugar da nocao de intersubjetividade,
instala-se a de intertextudiaade e a linguagem poetica
le-se pelo menos como dupla.
O termo intertextualidade e um conceito que assinala "[...] a
presenca de um texto em outro texto: tessitura, biblioteca,
entrelacamento, incorporacao ou simplesmente dialogo [...]", pois
os textos "[...] nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros
[...]" (Samoyault, 2008, p. 9). Pode-se pensar a intertextualidade,
de acordo com Tiphaine Samoyault (2008), de maneira unificada, reunindo
seus tracos em torno da ideia de memoria, porque ela se caracteriza como
a memoria que a literatura tem de si mesma e encarar a historia dessa
memoria da literatura e "[...] servir-se da tensao entre a retomada
e a novidade, entre o retorno e a origem, para propor uma poetica dos
textos em movimento" (Samoyault, 2008, p. 11).
Vale destacar que uma das mais importantes caracteristicas da
literatura e "[...] o perpetuo dialogo que ela tece consigo mesma
[...]" e que e o "[...] seu movimento principal"
(Samoyault, 2008, p. 14). Portanto, a nocao de dialogo revela-se
fundamental para as analises que pretendemos efetuar neste artigo, uma
vez que buscamos ressaltar e destacar a presenca da intertextualidade em
tres contos de Jose Eduardo Agualusa.
O estudo comparado de textos literarios, conforme assinala Leyla
Perrone-Moises (1990, p. 94), comprova que a literatura se produz num
constante dialogo de textos, por retomadas, emprestimos e trocas. A
literatura nasce da literatura, pois cada obra nova e uma continuacao,
por consentimento ou contestacao, das obras anteriores, dos generos e
temas ja existentes. O ato de escrever e, por conseguinte, dialogo com a
literatura anterior e com a contemporanea.
O intertexto, ou seja, a relacao que se estabelece entre dois ou
mais textos, "[...] e antes de tudo um efeito de leitura
[...]" (Samoyault, 2008, p. 25), porque a decodificacao de qualquer
processo intertextual vai depender da capacidade do leitor de detectar a
presenca de elementos de um texto anterior numa nova estrutura textual.
Dessa forma, o intertexto, segundo as colocacoes de Michel Riffaterre
(apud Samoyault, 2008, p. 28), e "[...] a percepcao, pelo leitor,
de relacoes entre uma obra e outras que a precederam ou a
seguiram".
Laurent Jenny (1979) declara que a intertextualidade caracteriza-se
por introduzir um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do
texto, semeando bifurcacoes que lhe abrem, aos poucos, o espaco
semantico, isto e, o espaco para novas significacoes e interpretacoes e
"[...] fala uma lingua cujo vocabulario e a soma dos textos
existentes" (Jenny, 1979, p. 21-22).
Em sintese, a intertextualidade revitaliza a literatura e
possibilita a valorizacao de textos e escritores de todas as epocas, ao
estabelecer um constante e fecundo dialogo que aproxima autores, textos
e paises diferentes, possibilitando que se encare a literatura como um
sistema de trocas, e o ato de escrever como um processo dialogico entre
a literatura do passado e a contemporanea.
Ecos de um dos heteronimos de Fernando Pessoa
O conto Se nada mais der certo leid Clarice inicia-se com o
narrador sentado nas areias de Itamaraca, desenhando num bloco de papel,
quando encontra um velho pescador pernambucano, que lhe pergunta:
--Por que faz isso?--perguntou.--O mar nao cabe ai!
Sentou-se ao meu lado. Disse-me que as vezes, ao acordar, lhe doia,
do lado esquerdo do peito a humanidade. Caminhava entao ate a praia,
estendiase de costas na areia, e sonhava um peixe.
--Foi Clarice, sabe? Ela me iniciou (Agualusa, 2005, p. 65).
Quer seja pelo titulo, quer seja pela fala do velho pescador,
evidencia-se o intertexto no conto pela presenca do nome de Clarice,
evocando a escritora brasileira Clarice Lispector (1925-1977). O
pescador conta ao narrador que ficara a deriva, perdido no mar, e
Clarice o salvara, trazendo-lhe um pernil de porco e uma garrafa de
Coca-Cola.
A presenca de Clarice na vida do pescador e justificada por um
habito seu--a leitura, conforme ele proprio deixa patente na seguinte
passagem que extraimos do conto:
Era grande devoto de Clarice Lispector e Alberto Caeiro. Contou-me
que Clarice lhe apareceu de madrugada, trazendo nas maos Uma Maca no
Escuro, e lhe leu o romance inteiro. A seguir, depois que o achou mais
recomposto, ensinou-o a sonhar peixes. [...] Ele sofria com os erros dos
outros. Andava pela ilha com A Hora da Estrela debaixo do braco,
tentando, sem sucesso, converter os demais. So eu lhe dava atencao:
--Se nada mais der certo leia Clarice (Agualusa, 2005, p. 66-67).
O pescador, de acordo com as ponderacoes do narrador, e leitor de
Clarice e tambem de Fernando Pessoa (1888-1935), fato que vem assinalado
no texto pela mencao a um de seus heteronimos, Alberto Caeiro, o qual
foi caracterizado por criticos e estudiosos de literatura portuguesa
como um poeta ligado a natureza, por empregar, em suas composicoes, o
verso livre, uma linguagem simples, temas marcados pela atitude
antilirica, pela busca da objetividade, e e ainda o poeta das sensacoes
visuais e auditivas. Esses dados relacionam-se, explicitamente, ao mundo
vivenciado pelo pescador e irmanam o mundo poetico de Caeiro a realidade
do velho pescador, que tambem busca a simplicidade e a objetividade para
a propria vida.
O universo da literatura e ressaltado nao so pela referencia a
Clarice Lispector e a Alberto Caeiro, mas tambem e reforcado pela mencao
ao titulo de duas obras da escritora modernista: A maca no escuro, que
no conto aparece com o artigo indefinido--Uma maca no escuro, e A hora
da estrela, dois de seus romances mais importantes e que deixam
evidentes o jogo intertextual que se estabelece no conto e que e
utilizado para reverenciar nao so dois dos maiores escritores de lingua
portuguesa, mas tambem duas literaturas--a brasileira e a lusofona--que
sempre tiveram um papel relevante na formacao dos escritores africanos,
como e o caso de Jose Eduardo Agualusa.
As relacoes intertextuais mencionadas acima configuram o que
Tiphaine Samoyault (2008, p. 47) considera como a memoria da literatura,
pois esta
[...] se escreve com a lembranca daquilo que e,
daquilo que foi. Ela a exprime, movimentando sua
memoria e a inscrevendo nos textos por meio de um
certo numero de procedimentos de retomadas, de
lembrancas e de re-escrituras, cujo trabalho faz
aparecer o intertexto.
As praticas intertextuais manifestam-se por meio da citacao, da
alusao, do plagio, da referencia, uma vez que todos esses procedimentos
inscrevem a presenca de um texto anterior no texto atual, segundo
Tiphaine Samoyault (2008, p. 48).
O procedimento intertextual predominante que se observa no conto Se
nada mais der certo leia Clarice e a referencia, a qual nao expoe o
texto citado, mas a este remete pelos titulos das narrativas de Clarice
e pelo nome de Caeiro, um dos heteronimos mais conhecidos de Fernando
Pessoa. Desse modo, temse uma referencia precisa, que supoe o emprego de
varios materiais visiveis e "[...] procede tambem da
integracao-instalacao [...]" desses titulos e nomes de escritores
no tecido narrativo do conto, permitindo "[...] precisar o conjunto
da referencia" (Samoyault, 2008, p. 60).
E valido ressaltar que ao mesmo tempo em que as referencias remetem
a um mundo imaginario, onirico da personagem, abarcando um cenario
intelectualizado, abrem-se para a possibilidade de a personagem buscar a
realizacao pessoal e a liberdade, metaforizada na sua habilidade de
'sonhar peixes' e, concomitantemente, pondo textos e
escritores de literaturas e nacionalidades distintas em um fecundo e
impressionante dialogo, que e a marca registrada de todos os intertextos
que estruturam o conto analisado.
As sombras dos heteronimos de Pessoa
No conto Catalogo de sombras, o narrador mostrase alguem envolvido
com o universo literario e um grande leitor, que encontra um texto,
Catalogo de sombras, o qual e atribuido a Alberto Caeiro. Novamente,
esse heteronimo de Pessoa reaparece e, agora, com maior destaque do que
aquele que observamos na historia do velho pescador de Se nada mais der
certo leia Clarice.
Vale notar que Catalogo de sombras e o titulo do conto e tambem da
obra que desperta o interesse do narrador. Ja no principio da historia,
o narradorpersonagem classifica-se como alguem extravagante no que diz
respeito as obras literarias que ele costuma colecionar:
Parecia-me um desses jogos literarios tao do agrado de Jorge Luis
Borges, um fatigado truque de espelhos, com objetos impossiveis e livros
antigos surgindo do nada para inquietar a realidade. Pedro Rosa Mendes
descobriu o livro num velho alfarrabista em Alcantara, Maranhao,
escondido entre titulos de poesia brasileira dos anos quarenta. Os meus
amigos sabem que alimento com carinho, ha longos anos, uma pequena
biblioteca monstruosa. Incluo nesta todo o genero de erros, aberracoes e
atrocidades, mas tambem milagres e prodigios, desde obras com titulos
insensatos ou revoltantes a plagios descarados, volumes com capas
invertidas, outros com graves erros de ortografia no proprio titulo,
arduas utopias que ninguem lera (Agualusa, 2005, p. 71).
A referencia ao escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) poe em
destaque a paixao do narrador pelo universo literario, uma vez que
Borges tambem se dedicou a tratar do mundo das bibliotecas, de obras
apocrifas, enfim, de textos literarios que dialogam com outros e tambem
de invencoes, de notas de rodape ficticias, de tecidos narrativos que se
voltavam sobre si mesmos, num movimento circular e infinito.
No fragmento transcrito, tambem e relevante destacar o interesse do
narrador-personagem em colecionar obras que se caracterizam por serem
'aberracoes', apresentam erros tipograficos, capas invertidas,
textos apocrifos, enfim, tudo o que um colecionador de textos literarios
evitaria possuir em sua biblioteca.
No entanto, e exatamente esse interesse peculiar do narrador que o
induz a empreender uma longa investigacao a fim de desvendar a autoria
da obra que ele tem em maos, Catalogo de Sombras, atribuida a Alberto
Caeiro:
--Conheces isto?!
Tomei o livro das maos de meu amigo: Catalogo de Sombras, de
Alberto Caeiro, Editora Ibis. Uma nota, na primeira pagina, indicava que
qualquer correspondencia para o autor ou editor deveria ser dirigida a
Calcada de Elegua, no. 15, em Sao Paulo. Folheei-o rapidamente e nao
reconheci um unico verso. O estilo, contudo, atordoou-me--inconfundivel.
Foi entao que me lembrei de Borges.
--Talvez seja simplesmente--arriscou, afagando o queixo o meu
amigo--, um obscuro homonimo brasileiro do mais famoso heteronimo
portugues (Agualusa, 2005, p. 72).
Observa-se, no conto, uma mescla de dados reais e ficcionais, isto
e, criados, inventados por Agualusa. No trecho acima, a editora
mencionada pelo narrador, Ibis, realmente existiu, conforme se depreende
das informacoes de Joao Gaspar Simoes (1977, p. 62) contidas na secao
'Cronologia da vida e obra de Fernando Pessoa' e tambem nas
indicacoes de Conceicao Jacinto e Gabriela Lanca (2008, p. 7):
1907--Volta [Fernando Pessoa] a morar na Rua Bela
Vista, com as tias. Escreve um diario intimo em
ingles. Convive com jovens intelectuais em A
Brasileira do Chiado [cafe de um bairro da cidade de
Lisboa]. A avo Dionisia morre nesse ano e deixa-lhe
uma pequena heranca. Aluga um quarto na Rua da
Gloria, no. 4--r/c. Monta uma tipografia--a Ibis--,
em Portalegre, na Rua da Conceicao da Gloria, no.
38-40. Esta tipografia funcionou, porem, durante
muito pouco tempo.
Depreende-se que se entrecruzam dados veridicos, como e a
referencia a editora Ibis e tambem a personagens de extracao historica,
como e o caso de Jose Mindlin (1914-2010), famoso por possuir uma
biblioteca com exemplares raros, o proprio Borges ja mencionado,
Aleister Crowley (1875-1947), que conviveu um certo periodo na companhia
de Fernando Pessoa, e dados ficticios.
Ao tentar solucionar o misterio da autoria da obra Catalogo de
Sombras, o narrador vai a Bahia procurar por Inacia Assuncao, que
trabalhara para um ingles, Charles Robert Anon, e la entra em contato
com cartas que lhe permitem desvendar o misterio que perpassa o conto.
O surgimento da personagem Charles Robert Anon possibilitara que o
narrador e, por extensao, o leitor descubram o enigma proposto pelo
conto, ja que ele e o autor do texto que da titulo a narracao de
Agualusa. Em uma nota publicada no livro Correspondencias 1905-1922, de
Fernando Pessoa (1999), descobrimos que Charles Robert Anon e
[...] uma personalidade literaria criada por Fernando Pessoa, ainda
na Africa do Sul. Os seus escritos, poeticos, diaristicos e filosoficos
situam-se entre 1904 e 1906. E, no entanto, [...] um 'ser'
ainda muito umbilicalmente ligado ao seu jovem criador, traduzindo muito
das suas preocupacoes de adolescente. O nome escolhido, abreviatura de
'anonimous', remete-nos, tambem, para um estatuto de nao
maioridade dentro do universo pessoano. Seria em breve substituido pela
figura de Alexandre Search (Pessoa, 1999, p. 15).
O ingles Charles Robert Anon, pelo que se depreende da leitura do
conto, e o autor de Catalogo de Sombras. O ponto de partida da
investigacao a que se propos o narrador acaba conduzindo-o a uma
aventura circular, pois a resposta de suas inquietacoes encontrava-se
ligada a um heteronimo de Pessoa, mas que nao era Alberto Caeiro. Dessa
maneira, o conto resgata o universo pessoano e lanca luzes sobre um de
seus heteronimos quase desconhecido do publico leitor.
Em relacao aos heteronimos de Pessoa, o estudioso Massaud Moises
(1991) tece as seguintes observacoes:
[...] a complexidade da figura e da obra de Fernando Pessoa comeca
e termina no jogo especular dos heteronimos. [...]
A multiplicacao em outros seres ou personalidades--os heteronimos,
com 'vida' e diccao proprias, [...] diferentes das do seu
criador--esta na raiz desse processo. Mas ao mesmo tempo dele se
beneficia, como se a despersonalizacao desencadeasse uma forca eruptiva,
dirigida ao amago das coisas, e simultaneamente dela resultasse:
multiplicar-se em 'pessoas' significa multiplicar-se em
maneiras de pensar--e de ver a realidade, [...] atirar o pensamento para
todos os quadrantes, e a tentativa de buscar um pensamento transpessoal,
necessariamente convertido em multipessoal ou heteronimico. Assim, os
heteronimos sao outros 'eus' que pensam com autonomia, ou dao
a impressao de faze-lo, e imagina-lo ou realiza-lo equivale a dispersao
em outros seres (Moises, 1991, p. 11-13).
Moises enfatiza a importancia dos heteronimos na producao poetica
de Fernando Pessoa, que lhe permitia multiplicar-se em outras
personalidades, tais como Alvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto
Caeiro, os mais conhecidos, alem de outros que, como Charles Robert
Anon, tiveram uma existencia mais breve. Dentre esses, podemos citar
Bernardo Soares, Alexandre Search, Antonio Mora, C. Pacheco, Vicente
Guedes.
Em Catalogo de sombras, todos os tres heteronimos mais relevantes
de Pessoa sao mencionados ao longo da trama e, particularmente, no final
do conto, os tres juntam-se a Fernando Pessoa, por meio da aproximacao
do universo dos heteronimos aos cultos das religioes africanas
brasileiras--mais especificamente, do candomble, quando o personagem
Alexandre, uma especie de guia que ajudou o narrador a encontrar as
cartas que revelaram quem era Charles Robert Anon, entregalhe uma
fotografia:
Abriu uma pasta de couro e tirou a fotografia de Charles Robert
Anon, num jardim, com um livro aberto entre as maos. Nas costas da
fotografia, a mesma que eu vira antes, em Nossa Senhora do Silencio,
alguem escrevera a lapis numa caligrafia infantil: 'Pai
Dionisio'.
Sacudi a cabeca perplexo:
--Pai Dionisio?!
--Eu era menino, mas lembro dele, sim, esteve aqui varias vezes.
Nos temos em Cachoeira os terreiros de candomble mais antigos do Brasil.
Encolhi os ombros. E dai?
--Pai Dionisio, o senhor nao sabe?, foi um grande medium. Ele
comecou por vir aqui, ao Centro Espirita, e depois se interessou pelo
candomble e pela macumba. Virou pai de santo. Depois morreu e virou uma
entidade. Conheco ate um ponto de macumba ... (Agualusa, 2005, p.
81-82).
A passagem citada relaciona-se com o fato de Pessoa, por influencia
de uma de suas tias, ter conhecido os fenomenos da mediunidade (Jacinto
& Lanca, 2008, p. 8) e realizado varias leituras de obras
teosoficas, ou seja, livros que tratavam de diferentes doutrinas
misticas e iniciaticas de sentido esoterico. Alias, o proprio processo
heteronimico assemelha-se aos rituais do candomble, quando entidades
incorporam-se num pai de santo.
A esse respeito, Carina Cerqueira (2014) faz um apurado comentario
sobre o final do relato, que entrelaca as culturas africana, portuguesa
e brasileira:
Assim, no fim do conto, estamos na presenca da construcao cultural
[na qual] se associa[m] elementos portugueses (Fernando Pessoa, enquanto
expressao de culturalidade portuguesa) com elementos africanos (Pai
Dionisio, enquanto expressao do candomble, religiosidade de raiz
africana e adaptabilidade brasileira) (Cerqueira, 2014, p. 11).
As relacoes intertextuais que se manifestam no fecho da narrativa
coadunam-se com a postura de Agualusa de estabelecer pontes e elos entre
Angola, Brasil e Portugal, por meio da religiosidade vinda da Africa,
que assume novos contornos no Brasil e reune o poeta portugues e seus
heteronimos num terreiro de candomble.
A figura de Pai Dionisio, ligada ao candomble, transforma-se no pai
de santo que recebe os espiritos dos heteronimos de Fernando Pessoa:
Alberto Caeiro, Alvaro de Campos, Ricardo Reis, alem do proprio Pessoa,
como se pode observar na seguinte passagem do conto, que poe em
evidencia um intertexto com a poesia do poeta portugues, por meio das
rimas e da construcao textual em formato poetico:
Alexandre ergueu a voz de falsete: 'La vem Pai Dionisio La
vem, la vem com suas quatro sombras abrindo caminho: Caeiro, Seu Alvaro,
Reizinho e Pessoa. La vem Pai Dionisio, oh gente!, preparem o vinho, a
bencao padrinho
--oh gente boa!' (Agualusa, 2005, p. 82).
De forma magistral, Pessoa e seus heteronimos transformam-se em
espiritos que se incorporam no medium brasileiro e, nessa incorporacao,
um dos maiores escritores portugueses e suas criacoes heteronimicas
aportam no Brasil, num terreiro de candomble, fazendo reviver e dialogar
toda uma tradicao literaria que se alia a um dos tracos culturais mais
marcantes do nosso pais: o sincretismo religioso, para enlacar a
literatura e a cultura do Brasil, de Portugal e da Africa.
A queda de um anjo
Em Livre-arbitrio, o protagonista e Fernando Pessoa. Ele se
encontra em uma mesa do famoso cafe A Brasileira, ponto de encontro dos
intelectuais portugueses, no final do seculo XIX e inicio do XX, quando
algo inusitado acontece:
Um anjo caiu do futuro e estatelou-se em pleno Chiado. Levantou-se,
sacudiu a poeira das asas, ensaiou dois ou tres passos, ainda um tanto
aturdido, e finalmente interrogou Fernando Pessoa:
--Pode dizer-me em que tempo estou? [...]
O anjo era um tipo palido e esguio. A sua silhueta recortava-se na
noite como um simples traco de giz num quadro negro. Estava inteiramente
nu e todavia isso nao parecia incomoda-lo. Dir-se-ia imune ao frio.
Fernando Pessoa esforcou-se durante um breve instante por aparentar
alguma simpatia (ha que ser simpatico com os estrangeiros) (Agualusa,
2005, p. 119).
O anjo tenta conversar com Fernando Pessoa, fazendo-lhe perguntas
que o poeta responde secamente. Quase no final da narracao, o anjo
comeca a falar de livre-arbitrio, e Pessoa desinteressa-se pelo assunto
e divaga, recordando-se de sua infancia na Africa, de um menino fugindo
de uma multidao numa bicicleta e do nascimento de uma roseira no meio do
asfalto.
O conto encerra-se de uma maneira inesperada, pondo em evidencia a
falta de percepcao daqueles que caminham nas proximidades do cafe:
O tempo mudou com a madrugada. Choveu. Uma agua mole, exausta, que
a luz do sol atravessa com esforco. Os primeiros transeuntes que
passaram, apressados, diante d' 'A Brasileira',
estranharam um pouco: nao havia ninguem sentado a mesa do poeta
(Agualusa, 2005, p. 121).
Esse fragmento do conto deixa patente que apenas Fernando Pessoa
pode ver o anjo, uma vez que ele e adepto das ciencias ocultas, acredita
na existencia de anjos e espiritos. O seu oficio de poeta o faz
vivenciar cotidianamente experiencias mediunicas, quando incorpora cada
um de seus heteronimos e cria poesias distintas da sua propria producao
ortonima. Nao e de espantar, entao, o fato de que somente Pessoa possa
dialogar e sentir a presenca fisica do anjo que cai proximo a sua mesa.
A historia e narrada por um narrador onisciente e, devido ao seu
conteudo que apela para um evento extraordinario, fora do comum, da
nossa realidade costumeira, ela faz parte de uma categoria que o
romancista e estudioso David Lodge (2011) conceitua nos seguintes
termos:
O Realismo Magico--a interferencia de acontecimentos fantasticos e
impossiveis em uma narrativa realista--e um efeito associado em
particular a ficcao latino-americana contemporanea (encontram-se
exemplos na obra do colombiano Gabriel Garcia Marquez, por exemplo), mas
ocorre tambem em romances vindos de outros continentes, como os de
Gunter Grass, Salman Rushdie e Milan Kundera. Todos esses autores
viveram periodos de grande turbulencia historica e conflitos pessoais
pungentes, que, a seu modo de ver, nao se prestam a representacao em um
discurso realista tradicional.
[...]
Como desafiar a lei da gravidade foi e continua sendo um grande
sonho impossivel, nao e surpreendente que imagens de voo, levitacao e
queda livre ocorram com frequencia nesse tipo de romance. No Cem anos de
solidao de Marquez, um personagem ascende aos ceus enquanto poe a roupa
lavada para secar. No inicio de Os versos satanicos, de Salman Rushdie,
os dois personagens principais caem agarrados um ao lado do outro de um
aviao que explode, cantando, e aterrissam, sem nenhum arranhao, em uma
praia inglesa coberta de neve. A heroina de Noites no circo de Angela
Carter e uma trapezista chamada Fewers, que tem lindas plumas uteis nao
apenas para compor um figurino de palco: tambem sao asas de verdade, que
lhe permitem voar. Sexing the Cherry, de Jeanette Winterson, apresenta
uma cidade flutuante com habitantes flutuantes [...]. E, n[uma] passagem
[...] de O livro do riso e do esquecimento, o autor [Milan Kundera]
afirma ter visto uma roda de dancarinos levantar voo e ir embora (Lodge,
2011, p. 122).
A existencia de seres alados, como anjos, dragoes, pessoas com
asas, que saltam e voam pelo espaco, monstros, demonios etc., que
partilham da realidade de seres humanos, e uma das marcas da ficcao
realista magica, e o conto Livre-arbitrio filia-se a esse tipo de
ficcao, pelo fato de expor a conversacao de um anjo com o poeta Fernando
Pessoa.
O procedimento intertextual predominante no conto Livre-arbitrio e
a referencia que remete a outro texto por meio do nome de um autor,
Fernando Pessoa, e tambem pela retomada de um tipo de narrativa bastante
comum na America Latina: o realismo magico, na qual eventos e
acontecimentos insolitos transcorrem sem que o leitor fique em duvida,
como e o caso de historias escritas por Edgar Allan Poe (1809-1849),
Julio Cortazar (1914-1984), pertencentes ao realismo fantastico e nas
quais, apos a leitura, permanece a duvida, a inquietacao sobre o que
efetivamente aconteceu.
Consideracoes finais
Nos tres contos analisados--Se nada mais der certo leia Clarice,
Catalogo de sombras, Livre-arbitrio--percebemos relacoes intertextuais
que poem em evidencia o escritor portugues Fernando Pessoa e seus
heteronimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Alvaro de Campos e ainda
Charles Robert Anon, uma das criacoes de Pessoa que e pouco conhecida
por estudiosos e criticos e, principalmente, por seus leitores.
E possivel verificar que ha uma progressao que marca as presencas
dos heteronimos nas narrativas selecionadas: no primeiro, ha somente uma
breve mencao a Alberto Caeiro; no segundo, aparecem referencias a
Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Alvaro de Campos, Fernando Pessoa; no
terceiro, o poeta portugues assume o protagonismo. Os intertextos
verificados comprovam a valorizacao e a importancia da literatura
portuguesa para os escritos de Jose Eduardo Agualusa, mas nao e so isso.
Tambem as literaturas brasileira e hispano-americana sao relembradas por
meio de escritores paradigmaticos como Clarice Lispector e Jorge Luis
Borges.
Nos contos estudados, notamos que Jose Eduardo Agualusa, por meio
da retomada de escritores paradigmaticos das literaturas portuguesa,
brasileira e argentina, criou um dialogo proficuo entre essas
literaturas e a africana, valorizando e possibilitando novas e
instigantes leituras por intermedio dos intertextos que se manifestam em
Se nada mais der certo leia Clarice, Catalogo de sombras e
Livre-arbitrio.
Sendo assim, "[...] o leitor ve-se envolvido pelo turbilhao de
signos intertextuais em rotacao [...]", como participante de um
dialogo no qual "[...] reconhece ecos e ressonancias, escuta vozes
que se complementam [...]" (Guimaraes, 1993, p. 63), percebendo
semelhancas e diferencas que permitem aproximar as literaturas dos
continentes americano, europeu e africano.
Em sintese, Fernando Pessoa e seus heteronimos transitam e se
imortalizam nos contos estudados, comprovando e confirmando que a
literatura possui particularidades e especificidades proprias,
"[...] mas que ao mesmo tempo traz consigo a lembranca da cultura
em que esta embebida [...]" (Umberto Eco, 1985, p. 12), por meio da
intertextualidade, conformando um dialogo perene entre autores, temas,
estilos e continentes distintos, que se irmanam e proporcionam sempre um
campo aberto de associacoes e interpretacoes renovadas por leitores de
todas as partes do mundo.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.28009
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Received on May 31,2015.
Accepted on November 25, 2015.
Altamir Botoso
Programa de Pos-graduacao em Literaturas de Lingua Portuguesa,
Universidade de Marilia, Rua Higino Muzi Filho, 1001,17525-902, Marilia,
Sao Paulo, Brasil. E-mail: abotoso@uol.com.br