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文章基本信息

  • 标题:The nature of language in the novel Caetes/O estatuto da linguagem no romance Caetes.
  • 作者:Ayub, Joao Paulo
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2016
  • 期号:January
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 关键词:Autores brasilenos;Linguistica;Narrativa brasilena;Tecnicas literarias

The nature of language in the novel Caetes/O estatuto da linguagem no romance Caetes.


Ayub, Joao Paulo


Introducao

Um romance na gaveta

Caetes foi escrito em 1925 e finalizado somente em 1928, quando Graciliano, por volta de seus 36 anos, vivia uma vida modesta e condenada a rotina morna de uma cidade do interior do estado de Alagoas. Em 1929, o autor do romance foi descoberto por Augusto Schmidt, editor de livros da cidade do Rio de Janeiro, nao exatamente em virtude desse primeiro romance, mas por meio dos relatorios escritos por GR como prefeito da cidade de Palmeira dos Indios. Marcados pela exatidao literaria e pela curiosa composicao de imagens e casos da vida cotidiana, tais relatorios ganharam um colorido especial na escrita do prefeito e despertaram a curiosidade do editor carioca, fazendo-o pensar que alguem assim 'deve ter algum romance no interior de alguma gaveta'. 1933, oito anos depois de iniciada a escrita de Caetes, o livro foi finalmente publicado (1).

A recepcao desse romance pelos criticos, leitores e escritores da epoca foi profundamente contaminada pelo renascimento do genero literario do romance no Brasil--iniciado na decada de 30. Por forca desse novo contexto que agitou o campo da literatura no pais, Caetes foi inevitavelmente 'colocado' no papel de ter de responder a expectativa provocada pelos romances de Rachel de Queiroz (O Quinze), Jorge Amado (Cacau) e Pagu (Parque Industrial). A resposta nao poderia ser satisfatoria, ja que--considerando-se a mentalidade de uma epoca que via ressurgir um novo tipo de romance em substituicao aqueles que deram corpo a moda naturalista do fim do seculo XIX e inicio do seculo XX--o romance de Graciliano parecia excessivamente voltado para a descricao de tipos sociais e modos de ser mecanicamente enquadrados na dinamica desacelerada da vida de uma pacata cidade do interior nordestino. Nao podia ser maior, aos olhos da epoca, a distancia entre o romance de Graciliano, de intensidades apagadas, e um tipo de romance que buscava retratar a vida de herois proletarios envolvidos nos acontecimentos e conflitos sociais das cidades nascentes, como o romance de Jorge Amado parecia abordar; ou mesmo as historias que se passavam no campo, mas que pretendiam retratar, de modo realista e excessivamente critico, os aspectos sociais que proporcionavam a descoberta de um--ainda--novo pais e de suas mais profundas mazelas.

De fato, com o romance Caetes, Graciliano nao tencionou participar de um movimento de construcao da identidade nacional que teve impulso especial na literatura, mas tambem em outras areas da producao intelectual do pais. Isso nao quer dizer, contudo, que esteja ausente nesse livro um retrato/documento dos mais interessantes sobre a vida de um certo povo brasileiro. O fato e que, dentre a constelacao de romances que explodiram no inicio da decada, aquele de Graciliano pode ser, no maximo, uma estrela menor, de um brilho quase apagado. Nao bastasse a desconsideracao da maior parte dos leitores ao que havia de novo sobre o pais e sua gente na historia contada por Graciliano, tida pela maioria como uma historia 'velha', houve tambem um equivoco na leitura desse livro no que ele poderia apresentar de novidade em termos de estilo literario: no calor dos anos 30, o romance de estreia de Graciliano Ramos foi parar na pasta ja empoeirada dos romances naturalistas.

O passar dos anos proporcionou uma nova leitura de Caetes, leitura que resgata o livro e lhe restitui o interesse devido. No posfacio a 31a edicao lancada pela editora Record em 2006--73 anos apos a primeira publicacao--, Luis Bueno (2006) justifica a necessidade desse resgate, ao mesmo tempo em que ressalta, a partir desse primeiro livro, uma das caracteristicas marcantes da narrativa de Graciliano, qual seja, a imersao nos fatos sociais e cotidianos a partir da otica e esfera dramatica que constituem a interioridade do personagem principal, narrador em primeira pessoa:

Para notar como o ganho em profundidade e a exploracao da introspeccao estao em primeiro plano em Caetes, e nao o grupo e a superficie, basta prestar atencao na constituicao de seu narrador. Nesse sentido, o que chama a atencao em primeiro lugar e que se trata de romance em primeira pessoa, construcao que favorece o mergulho psicologico, mas era abominada pelos naturalistas, que a consideravam limitadora. Afinal, como olhar para um grande grupo a partir de um olhar restrito de um ser que se encontra em posicao semelhante aos outros personagens? O melhor seria estabelecer um narrador em terceira pessoa que, podendo ver a tudo e a todos, por dentro e por fora, seria capaz de ao mesmo tempo reger e esmiucar os movimentos coletivos das criaturas. Se Graciliano escolhe um narrador em primeira pessoa e porque interessa a ele explorar nao aquilo que afeta o corpo coletivo, e sim como repercute no individuo a vida da cidade como um todo. Mais importante do que constatar essa opcao pela primeira pessoa, desviante em relacao ao modelo naturalista, e saber quem e esse Joao Valerio, ja que nele se conjugarao o que ha de mais irredutivelmente individual e mais abrangentemente social na existencia humana. E ele o palco em que individuo e corpo social atuarao em pe de igualdade, de tal forma que e impossivel saber o que deriva de sua constituicao psicologica e o que vem da posicao que ocupa na sociedade de Palmeira dos Indios (Ramos, 2006, p. 255-256).

Tipos Miudos

Em cronica datada de agosto de 1939, publicada anos depois no volume Linhas Tortas, Graciliano Ramos descreve, em poucas linhas, o processo criativo que resultou na confeccao de seus quatro romances. Sem qualquer vestigio de autocomplacencia--habito praticado religiosamente quando se referia aos seus livros--, o escritor faz questao de mencionar que o assunto de que ele entao se ocupa, falar dos proprios livros, foi 'dado com a encomenda' e que assim ele espera atenuar 'uns toques de vaidade que por acaso aparecam nas linhas que se seguem'. Contudo, apesar de a cronica intitulada Alguns tipos sem importancia apresentar uma constante desvalorizacao da obra pelo proprio autor ('E uma narrativa idiota, conversa de papagaios' (2)), a referencia de Graciliano Ramos ao seu primeiro romance e bastante sugestiva para uma caracterizacao geral dele, na medida em que sinaliza a predominancia de 'tipos miudos', incapazes de grandes feitos, "[...] desses que fervilham em todas as cidades pequenas do interior" (Ramos, 1979, p.194).

Caetes e um romance cuja historia e narrada em primeira pessoa por Joao Valerio, guarda-livros (3) empregado no armazem dos irmaos Teixeira (Adriao e Vitorino). Joao Valerio e profundamente marcado pela posicao social que ocupa no contexto de relacoes das principais figuras da sociedade de Palmeira dos Indios, composta por proprietarios, comerciantes, herdeiros agraciados com relativa fortuna, beatas, politicos, pequenos profissionais liberais, pelo padre da cidade, mas tambem por vagabundos e gente desprovida de toda sorte. O ressentimento ruminado pelo narrador da historia diante de sua posicao inferiorizada entre as figuras que compoem os lugares e eventos que frequenta e contraposto por uma tentativa fracassada de lancar a si mesmo, em recorrente autoafirmacao, certas qualidades que o distinguiriam e o sobreporiam aos outros com os quais convive: 'sou desempenado, gozo saude e arranho literatura'.

A historia se apresenta em sessoes de chas na casa de Adriao, patrao de Valerio, homem mais velho, de saude comprometida, pernas tropegas e que vive resmungando sua ma sorte no tratamento frequentemente malogrado de suas enfermidades. Adriao e casado com Luisa, mulher nova, bonita, considerada entre as pessoas da cidade pelo grande coracao e pela posse verdadeira de principios morais e cristaos. Valerio compoe o retrato de Luisa, ao mesmo tempo em que cobica a posicao do marido Adriao. Nesse painel, a imagem deste ultimo nao poderia ser pior:

Tao linda, branca e forte, com as maos de longos dedos bons para beijos, os olhos grandes e azuis ... De Adriao Teixeira, um velhote calvo, amarelo, reumatico, encharcado de tisanas. Outra injustica da sorte. Para que servia homem tao combalido, a perna tropega, cifras e combinacoes de xadrez na cabeca? Eu, sim, estava a calhar para marido dela, que sou desempenado, gozo saude e arranho literatura. Nova e bonita, casada com aquilo, que desgraca! (Ramos, 2006, p. 15).

As festas religiosas tambem estao presentes na dinamica da cidade. Numa sociedade na qual as posicoes de autoridade e poder sao reservadas aos homens, e nessas ocasioes que beatas e mulheres consideradas de boa familia ganham certo destaque na confeccao de artefatos religiosos e no desfile engendrado pela procissao religiosa. Durante uma festa, Marta Varejao, afilhada de d. Engracia, conjuga suas habilidades manuais na feitura de um presepio. Joao Valerio so e capaz de enxergar, nessa atitude de Marta, um conjunto de interesses escusos, pois a fe da moca, a seus olhos, tanto dissimula a vontade de se destacar entre as outras mocas da cidade quanto, ainda, alimenta os lacos com a madrinha que, ao que tudo indica, deixara como heranca consideravel fortuna. Na opiniao do narrador, essa moca nao passa de uma 'sonsa', pois alem de renegar o pai, Nicolau Varejao, um pobre coitado, lhe dirige flertes de que Valerio nao cansa de se esquivar.

Segundo o proprio Graciliano Ramos, e para sua surpresa, 'as infelizes criaturas' comecaram a falar e o romance ganhou corpo nas conversas entre dr. Liberato, medico de linguajar excessivamente tecnico, que ninguem entende; Isidoro Pinheiro, 'jornalista, pequeno proprietario', sujeito ingenuo e de bom coracao, companheiro de Joao Valerio no jornal A Semana; e padre Atanasio, homem de pensamento confuso, diretor do periodico no qual Isidoro e Valerio veiculam, feito marionetes, os assuntos de interesse dos poderosos da cidade. Padre Atanasio e uma figura respeitada entre os moradores da cidade, embora, nas descricoes enviesadas do narrador, apareca sempre com incrivel limitacao intelectual, situacao que coloca o principal representante da igreja catolica na impossibilidade de defender ate mesmo os mais basicos principios dogmaticos. A lamentavel condicao do diretor do jornal e explicitada em pequenos detalhes, tal como indicado neste pequeno trecho da obra:

O diretor da Semana mourejava na extracao de um dos seus complicados periodos, que ninguem entende. Tinha aberto o dicionario tres vezes. Soltou o livro com desanimo, olhou de esguelha para a banca de Isidoro e perguntou-me em voz baixa: Eucalipto e com i ou com y? Estou esquecido, e o dicionario nao da (Ramos, 2006, p. 33).

Na pensao onde moram Isidoro, dr. Liberato e Joao Valerio, vive tambem o italiano Pascoal, malandro que mantem um caso amoroso praticado as escondidas num dos quartos da pensao com a dona do estabelecimento, d. Maria Jose, mulher de seus quarenta anos, 'gordinha e miuda'. Pascoal e um dos tipos que preenchem a baixa classe da sociedade palmeirense, vive de escusos emprestimos tomados de sua parceira, comprometendo o dinheiro em jogos, mulheres e bebidas. Abaixo do italiano se encontram miseraveis nomeados ora pela profissao, ora por uma especie de marca que denota a precariedade de sua condicao fisica e social, como o sapateiro e sua mulher que sofre de tisica; dois irmaos alcoolatras remanescentes de uma tribo indigena, Balbino e Pedro Antonio, cuja degradacao pessoal se confunde com o esfacelamento da tradicao e cultura de sua antiga comunidade; Nicolau Varejao, pai renegado de Marta Varejao, homem mentiroso e alvo de pilherias do grupo de amigos de Joao Valerio.

Evaristo Barroca ocupa um lugar especial no romance por tratar-se de alguem pelo qual Joao Valerio guarda enorme ressentimento, inveja reprimida. Bacharel, orador nato e eximio cavador de posicoes de destaque na politica, Barroca desperta em Valerio um misto de inveja e desprezo. E extremamente curioso e instigante o papel desse personagem na propria dinamica que caracteriza a oscilante personalidade do narrador principal: ora Evaristo Barroca faz nascer em Joao Valerio um antagonismo que se expressa numa incompatibilidade radical de ideias, ora provoca no amago profundo desse personagem uma admiracao melancolica, manchada pela inveja reprimida. Ao mesmo tempo em que Joao Valerio se ressente de nao possuir o talento de Evaristo Barroca nos delicados jogos de interesse que animam uma sociedade refem dos valores proporcionados pela boa aparencia, causa-lhe profundo desprezo a falsidade desse carater:

Evaristo avancou com gravidade, pos o chapeu e a bengala sobre a mesa empoeirada, olhou com desconfianca a palha da cadeira e sentou-se, sem se recostar, com medo de sujar a roupa. Maneiras detestaveis. Ia para seis anos que eu conhecia aquele tipo, encontrava-o quase diariamente. Horrivel. Empertigava-se para largar trivialidades abjetas, e o pior e que so muito depois de as ter dito me vinha a compreensao de que aquilo nao valia nada (Ramos, 2006, p. 27-28).

Mesmo reconhecendo a farsa de Barroca, Joao Valerio nao deixa de invejar seus triunfos. Em conversa com o tabeliao Miranda Nazare, Valerio diz:

Defronte do bilhar encontrei Nazare, que descia.

--O Evaristo vai para cima, hem?

--O Evaristo? Ignoro, respondi. De que se trata?

--Secretario do Interior. Creio que vao fazer dele secretario.

--Secretario? Nao sei. Quem lhe contou?

--Os fatos. Voce nao le a Gazeta? Esta-me palpitando que o Evaristo entra na secretaria.

--Um sujeito que se meteu na politica ha um ano!

--Nao senhor. Meteu-se nela desde que lhe nasceram os dentes. E o chefe local que mais trabalha. Veja como este velhaco organizou isto. E aqui para nos, a telegrafista me mostrou um telegrama em segredo. Peguei umas coisas por alto. Aquilo trepa, e se nao for para a secretaria, dao-lhe outro lugar bom, que e de elementos assim que o governo precisa.

--Safadezas! Murmurei despeitado, porque nao possuo o talento do Evaristo. Que sorte! (Ramos, 2006, p. 149).

Mais uma vez, a descricao do carater de Evaristo Barroca e os sentimentos que tal figura suscita em Joao Valerio permitem o mergulho em profundidade por parte do escritor na alma do narrador da historia. A ressonancia dos fatos e dos personagens no espirito de Joao Valerio compoe, horizontalmente, o panorama social em que vive. A tacanhez e um elemento atuante na esfera de acao de todos os personagens que flutuam no romance e, fundamentalmente, na de seu personagem principal. Outro fator de destaque na composicao de Caetes e a sensacao de certo ar de cronica da vida cotidiana, impressao que, para Graciliano Ramos, era motivo de aborrecimento. Em suas palavras: "Varias pessoas se julgaram retratadas nele e supuseram que eu havia feito cronica, o que muito me aborreceu" (Ramos, 1979, p. 194-195).

E verdade que a descricao dos encontros na casa de Luisa e Adriao, de festas religiosas e de conversas entre os amigos no bar do Bacurau, na mesa da sala da pensao onde morava Joao Valerio ou na redacao do jornal A Semana, 'folha catolica' dirigida por padre Atanasio, focaliza elementos que enformam a narrativa e lhe conferem ritmo. Contudo, mais uma vez retornando a caracteristica fundamental da literatura de Graciliano Ramos repisada por Luis Bueno (2006) linhas atras, a fusao do olhar individual do narrador personagem com a trama social narrada por esse Eu que tudo contamina nao credencia o romance ao formato da cronica. Pelo menos, nao como pretenderam certos romancistas da epoca, interessados diretamente na documentacao --temperada com arroubos partidarios--da vida cotidiana. Considerando-se que um minimo de constancia e coerencia com a materia narrada por parte daquele que escreve sao as ancoras que permitem ao cronista a realizacao de um retrato de seu tempo, seria demais exigir de um observador tal como Joao Valerio essas caracteristicas. Antes, pode-se dizer que a cor dos personagens e o quadro pintado das cenas nas quais participa variam ao sabor do humor do narrador da historia.

Aquem da palavra, aquem do humano

Um dos principios hermeneuticos nos quais se baseia este estudo consiste em pensar a obra de arte em termos de uma relacao circular entre as partes (personagens, acoes, imagens, situacoes etc.) e o todo formado pelas mesmas (unidade de sentido). Essa relacao caracteriza-se por uma mutua determinacao entre o todo e as partes singulares, de modo que o processo de compreensao da obra caminha na direcao de uma busca ininterrupta por uma unidade de sentido. Contudo, esse movimento que constitui o processo de compreensao resultaria em atividade completamente esteril se, da parte do interprete, nao houvesse um sentido anterior, um projeto a partir do qual o sentido da obra se encontraria lancado previamente sob o seu olhar. Nao ha ponto zero a partir do qual se da o surgimento da obra em pleno significado, independentemente da expectativa lancada pelo interprete.

A partir desse principio, nao se pretende anular a qualidade especifica das coisas em si mesmas. Antes, pretende-se ressaltar a natureza dialogica do encontro presente em toda interpretacao, assim como sua historicidade irredutivel. Diante do exposto, pretende-se desenvolver, neste estudo sobre o romance Caetes, uma leitura da obra baseada na constatacao de que a fraqueza moral, a desnutricao intelectual e a corrupcao do carater do personagem principal, narrador personagem, ensejam o desenho narrativo, assim como conferem sentido a obra como um todo. Nesse jogo de mutua contaminacao entre o carater do narrador personagem e a materia por ele narrada e que se pretende investigar o 'sentido da palavra' como chave interpretativa do romance.

Ja foi dito linhas atras que a concisao e a parcimonia da palavra nos romances de Graciliano Ramos transbordam a dimensao propriamente estilistica de sua escrita, preenchendo (ou esvaziando) de sentido a esfera existencial de seus personagens e historias. Caetes sinaliza o caminho percorrido por Graciliano Ramos em seus demais romances, na medida em que o fracasso da palavra aponta justamente para uma sucessao de outros fracassos. Palavra enquanto registro ontologico que sustem o acontecimento a partir do qual o homem realiza sua humanidade, ou entao, enquanto fenomeno capaz de conduzir o homem a um conjunto de possibilidades existenciais, ao 'como' do mundo no qual se encontra lancado.

Nesse sentido, Caetes pode ser lido como uma historia sobre incapacidades multiplas. No centro dessas incapacidades, figura, na pessoa de Joao Valerio, um fracasso duplo: a escrita de um romance estacionado no segundo capitulo e a paixao por Luisa subitamente esfriada logo apos um breve periodo de significativo sucesso amoroso, chama que se apaga no momento em que o desejo murcha, enfraquece. Atraves de uma historia comum, sem alarde, sobre o modo de vida e conflitos internos de um sujeito inexpressivo, morador da pequena cidade de Palmeira dos Indios, interior do estado de Alagoas, esse primeiro romance de Graciliano revela a condicao de impossibilidade de realizacao do homem ou de sua quase realizacao, sendo o fracasso e a resignacao alguns dos elementos que sobressaem na tonalidade geral da obra.

Nos dois primeiros capitulos, anunciam-se os dois eixos centrais que tomam conta da vida interior de Joao Valerio e conferem dinamica a historia por ele narrada. Nas primeiras linhas, Joao Valerio entra em cena, dando um beijo no 'cachaco' de Luisa. Com esse gesto subito e inconsequente, o narrador chega, logo no inicio da historia, ao ponto mais alto de sua atracao pela mulher de Adriao. Nesse momento, inicia-se um lento processo amoroso em cujo final se encontram o desejo e o amor completamente esmorecidos.

Adriao, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de uma forte dor de cabeca. Fui colocar a xicara na bandeja. E dispunha-me a sair, porque sentia acanhamento e nao encontrava assunto para conversar.

Luisa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Nao me contive e dei-lhe dois beijos no cachaco. Ela ergueu-se, indignada:

--O senhor e doido? Que ousadia e essa? Eu ...

Nao pode continuar. Dos olhos, que deitavam faiscas, saltaram lagrimas. Desesperadamente perturbado, gaguejei tremendo:

--Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice.

--E bom que se va embora, gemeu Luisa com o lenco no rosto.

--Foi uma tentacao, balbuciei sufocado, agarrando o chapeu. Se a senhora soubesse ... Tres anos nisto! O que tenho sofrido por sua causa ... Nao volto aqui, Adeus.

Retirei-me aniquilado. Na rua considerei com assombro a grandeza do meu atrevimento. Como fiz aquilo? Deus do ceu! Lancar em tamanha perturbacao uma criatura delicada e sensivel! Tive raiva de mim. Animal estupido e lubrico (Ramos, 2006, p. 9-10).

Apos revelar seu amor a Luisa, Joao Valerio conquista o coracao da moca numa sucessao de encontros entremeados pela crescente desconfianca que toma conta das mas linguas da cidade.

A animalizacao do homem e um elemento central na escrita de Graciliano Ramos. O escritor problematiza o homem ao fundir sua condicao com a do animal. Nesse trecho, alem do fato de o narrador considerar sua atitude como a de um 'animal estupido e lubrico', chama a atencao tambem o uso da palavra 'cachaco' para designar a nuca de Luisa. Uma das definicoes do dicionario Houaiss (2001) para essa palavra e a seguinte: 'corte de carne de boi de segunda, correspondente a parte posterior do pescoco do animal'.

O fracasso do amor de Joao Valerio por Luisa ilustra-se pela trajetoria descendente desse sentimento. Se no inicio o narrador passa a impressao de que usa as vestes de um jovem romantico, capaz de trocar o mundo todo pelo amor de sua amada, ao longo da trama, tal como foi apontado anteriormente, o desejo de Valerio caminha em passos regressivos, entremeado por anseios e angustias concernentes a sua posicao na sociedade palmeirense. No ultimo encontro, o desanimo de Valerio contrasta com a tristeza e o desapontamento de Luisa:

--Adeus, balbuciou Luisa com uma lagrima na palpebra.

--Adeus, gemi.

Apertei-lhe a mao, fria, mas os dedos dela permaneceram inertes sob a pressao dos meus. Quis beija-los--faltou-me o animo.

--Adeus.

Fui ate a porta da saleta, voltei-me ainda uma vez. Luisa solucava, caida para cima do piano. Vacilei um instante e depois sai (Ramos, 2006, p. 244).

No segundo capitulo, enquanto Joao Valerio observa com espanto a naturalidade com que Adriao leva a cabo as atividades comerciais que compunham a rotina do escritorio no interior do armazem, sem nenhum reflexo do atrevimento cometido na vespera por Valerio, o projeto da escrita de um romance encalhado no segundo capitulo vem a tona:

E eu, em mangas de camisa, a estragar-me no escritorio dos Teixeira, eu, moco, que sabia metrificacao, vantajosa prenda, colaborava na Semana de padre Atanasio e tinha um romance comecado na gaveta. E verdade que o romance nao andava, encrencado miseravelmente no segundo capitulo. Em todo o caso sempre era uma tentativa (Ramos, 2006).

A mesquinhez de Joao Valerio se expressa, dentre outras coisas, pela forma com que o ressentimento de sua posicao inferiorizada na sociedade de Palmeira dos Indios perturba e intercede em seu projeto amoroso e literario. O amor por Luisa sustenta-se nao somente nos atributos fisicos e intelectuais da moca, mas muito mais na posicao social imaginada por Joao Valerio, caso pudesse substituir o patrao e em seu lugar desposa-la. Dois acontecimentos exteriores ao sentimento do narrador por Luisa acabarao por dissipa-lo completamente. Um deles diz respeito a morte do patrao em decorrencia de um suicidio provocado apos a descoberta da traicao cometida pela esposa. O outro, nao menos importante tendo em conta o fator de ascensao social que confere a Joao Valerio uma nova posicao entre as pessoas de seu circulo de convivencia, e a sociedade conquistada na empresa com o irmao de Adriao, Vitorino, apos a morte do primeiro.

Os indios Caetes

No que diz respeito ao projeto de escrita de um romance sobre os indios caetes, ha que se considerar a expectativa alimentada por Joao Valerio em torno de um possivel exito literario.

Tambem aventurar-me a fabricar um romance historico sem conhecer historia! Os meus caetes realmente nao tem verossimilhanca, porque deles apenas sei que existiram, andavam nus e comiam gente. Li, na escola primaria, uns carapetoes interessantes no Goncalves Dias e no Alencar, mas ja esqueci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperanca de poder transformar esse material arcaico numa brochura de cem a duzentas paginas, cheias de lorotas em bom estilo, editada no Ramalho (Ramos, 2006, p. 23-24).

O que acontece e que a principal motivacao do narrador consiste em ver sua obra publicada e aclamada entre os poucos leitores da pequena cidade. O valor literario que a escrita porventura pudesse expressar nao estava propriamente em jogo nos seus sonhos de sucesso. Ao contrario, passava principalmente pela cabeca do pretenso escritor a repercussao da obra em termos de ganho estatutario.

Talvez eu pudesse tambem, com exigua ciencia e aturado esforco, chegar um dia a alinhavar os meus caetes. Nao que esperasse embasbacar os povos do futuro. Oh! nao! As minhas ambicoes sao modestas. Contentava-me um triunfo caseiro e transitorio, que impressionasse Luisa, Marta Varejao, os Mendonca, Evaristo Barroca. Desejava que nas barbearias, no cinema, na farmacia Neves, no cafe Bacurau, dissessem: 'Entao ja leram o romance do Valerio?'. Ou que, na redacao da Semana, em discussoes entre Isidoro e padre Atanasio, a minha autoridade fosse invocada: 'Isto de selvagens e historias velhas e com o Valerio' (Ramos, 2006, p. 56).

Nao se deve esquecer que, na cabeca de Joao Valerio, a proximidade com as letras aparece primeiramente como trunfo nas relacoes sociais nas quais se encontra em significativa desvantagem economica e de poder. Quando se torna 'socio da casa', passados tres meses da morte de Adriao, Joao Valerio abandona os caetes e o semanario de padre Atanasio.

Decorreram mais tres meses. Passei a socio da casa, que Vitorino nao pode dirigi-la so; Luisa e hoje comanditaria; a razao social nao foi alterada.

Abandonei definitivamente os caetes: um negociante nao se deve meter em coisas de arte. As vezes desenterro-os da gaveta, revejo pedacos da ocara, a matanca dos portugueses, o morubixaba de enduape (ou canitar) na cabeca, os destrocos do galeao de d. Pero. Vem-me de longe em longe o desejo de retomar aquilo, mas contenho-me. E perco o habito. Vou quase todas as noites a redacao da Semana, nao para escrever, e claro, julgo inconveniente escrever (Ramos, 2006, p. 245).

As ultimas paginas do livro, no ultimo capitulo, consolidam a nocao de que, para Graciliano Ramos, estar aquem do humano e estar aquem da palavra se equivalem. Com a erosao da palavra verdadeira, escorre tambem o mundo no interior do qual a humanidade dos homens busca afirmar-se. Joao Valerio narra as vicissitudes de sua vida, enquanto, noutro plano, aferra-se na tentativa de compor uma historia de indios canibais que nao termina. O romance de Graciliano Ramos faz confluir a vida dos homens da pequena cidade de Palmeira dos Indios com a vida dos supostos caetes em cuja historia se afogou o narrador:

Nao ser selvagem! Que sou eu senao um selvagem, ligeiramente polido, com uma tenue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilizacao, outras racas, outros costumes. E eu disse que nao sabia o que se passava na alma de um caete! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferencas. Um caete de olhos azuis, que fala portugues ruim, sabe escrituracao mercantil, le jornais, ouve missas. E isto, um caete. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente ... Esta inconstancia que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que nao posso acabar ... O habito de vagabundear por aqui, por ali, por acola, da pensao para o Bacurau, da Semana para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes; e depois dias extensos de preguica e tedio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado ... Esta inteligencia confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem ... A timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora, torcendo as maos com angustia ... Explosoes subitas de dor teatral, logo substituidas por indiferenca completa ... Admiracao exagerada as coisas brilhantes, ao periodo sonoro, as micangas literarias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco ... (Ramos, 2006, p. 250).

A figura selvagem do caete com sua pratica canibal representa a outra face de seres humanos que fracassam em seu projeto civilizatorio, seres ligeiramente polidos, 'com uma tenue camada de verniz por fora'. Estas ultimas linhas do romance sao decisivas: elas revelam a vulnerabilidade da condicao humana diante das possibilidades de realizacao que a vida oferece. No entanto, nao se trata de qualquer realizacao. O tipo de realizacao humana referida por Graciliano Ramos atraves do exemplo negativo de seu misero personagem e aquela que possui em seu amago o carater de ser compartilhada, tal como somente a linguagem comprometida com a verdade pode ser em sua essencia. Dai o sentido fundamental deste romance ser o de que a palavra, sempre tomada em sua condicao de estar lancada entre os homens, abrindo-lhes possibilidades na concessao de um sentido para a existencia, e a medida da propria condicao humana.

Nesse sentido, a ultima frase do periodo citado, na qual o autor revela a inutilidade da 'admiracao exagerada as coisas brilhantes, ao periodo sonoro, as micangas literarias' e aos adjetivos cujo papel se restringe unicamente ao enfeite esvaziado de sentido, nao faz mais do que confirmar a conclusao de que, nestas condicoes, o homem habita em duplicata a esfera que configura a vida selvagem de um indio canibal, de um caete.

A alma do caete, tanto buscada por Joao Valerio durante a confeccao malograda de seu romance--labuta preguicosa dos eventos e personagens em torno de uma historia na qual o bispo nascido em Portugal, d. Pero Sardinha e aprisionado e devorado pelos indios caetes apos naufragar na foz do rio Coruripe, localizado na costa alagoana--, ainda sem saber que esta mesma alma o habita, porem simulada, traduz-se na dimensao negativa que o discurso humano e capaz de conter. O dizer verdadeiro encontra-se sob um processo de ocultamento, de simulacao, de engano.

Neste momento, vale a pena reter as implicacoes propriamente eticas de uma discussao proposta por Hans-Georg Gadamer em Verdade e Metodo II, na qual o autor se pergunta: o que e a verdade? A dimensao humana da linguagem, em seu papel de dizer a verdade, assume um lugar central:

As coisas mantem-se por si proprias em estado de ocultacao; 'a natureza ama esconder-se', teria dito Heraclito. Mas tambem o velamento pertence a acao e ao falar proprios aos seres humanos, pois o discurso humano nao transmite apenas a verdade, mas conhece tambem a aparencia, o engano e a simulacao. Ha um nexo originario, portanto, entre ser verdadeiro e discurso verdadeiro. A desocultacao do ente vem a fala no desvelamento da proposicao (Gadamer, 2011, p. 60).

Tristemente, o romance de Graciliano Ramos parece confirmar o tambem escritor George Steiner, quando este diz, numa entrevista sobre 'As doencas da linguagem', que "[...] ser homem e dizer ao outro aquilo que nao e". (Jahanbegloo, 2003, p. 139). A historia contada por Joao Valerio e tambem a historia da impossibilidade de comunidade resultante deste processo de dissolucao de valores eticos e de sentimentos genuinos que so a palavra fundante e capaz de edificar. A postura na qual os individuos parecem negar-se na presenca do outro resulta numa negacao maior da dimensao humana que se caracteriza por ser essencialmente dialogica (4).

A sociedade num baile de mascaras

Joao Valerio, mergulhado no universo interiorano de cartas marcadas, como num monotono baile de mascaras onde tudo e previsivel, danca capenga no seu ritmo proprio, feito os demais, e nao consegue entregar-se ao que escapa a si mesmo. Excecao feita ao amigo Isidoro Pinheiro; este, sim, um 'santo', capaz de sentir as miserias do outro, partilhando sua verdade. Joao Valerio e incapaz para o amor, entrega que ofende os limites de suas capacidades e aspiracoes mesquinhas, e tambem inapto em captar a verdade da vida daqueles outros que ele julga distantes de si mesmo, os indios caetes. A alma distante, incapacidade extrema de sair de si mesmo em direcao ao outro, 'voltar-se-ao-outro' (5), configura um universo social dissimulado.

Os demais personagens do romance tambem se encontram enclausurados em individualidades frustradas: as barreiras fundadas sobre o sentimento de indiferenca e desejos egoistas impedem um verdadeiro encontro com o Outro. Nesse contexto, e a historia pessoal de Joao Valerio reflete muito bem, a diferenca entre o sucesso e o fracasso e insignificante, tendo em vista que a outra face da vida dos homens, representada aqui pela figura dos indios caetes, esta sempre presente na condicao de denominador comum.

De um lado, no polo do sucesso, encontra-se a figura de Evaristo Barroca, homem astucioso que atraves da palavra interessada alcanca exito na politica e, consequentemente, a admiracao e o reconhecimento social ('o Barroca tem inteligencia, tem cultura' (6)); por outro lado, o fracassado Nicolau Varejao, sujeito de carater miseravel, renegado pela filha, que dele se envergonha, encontra na mentira uma forma nao menos infame de habitar o mundo. A bondade de Pinheiro, um santo que e tambem um 'monstro', visto que seu carater e de uma anormalidade radical, e contrabalancada por um estado marcante de limitacao intelectual (principalmente no trato com a palavra). A limitacao intelectual de Isidoro Pinheiro nao deixa de ser, ainda, sintoma de que Graciliano Ramos nao pretende fazer concessoes nesse romance, no qual esboca um retrato do homem profundamente dilacerado pelas proprias limitacoes.

A impossibilidade de narrar em tracos minimamente verossimeis a vida dos indios por meio da escritura de um romance historico por parte de Joao Valerio denuncia, por outro lado, o grau de envolvimento do narrador com a materia narrada, no sentido de que, no fundo, e de si mesmo que esta dizendo. De tal modo imerso na alma e no carater do indio, o narrador nao e capaz de desprender-se, de nao espelhar-se. A escrita da historia tambem aqui nao pode impedir, sob as vestes da imparcialidade, a erupcao dos afetos a contaminar o discurso. Esse fato esta claramente explicitado na conclusao do livro. Aquem do humano, aquem da palavra, e sobre a situacao na qual esta imersa a condicao do homem o primeiro romance de Graciliano Ramos.

O triunfo da alma caete se desenha, portanto, em tres recortes possiveis da obra: o arrefecimento do desejo de Joao Valerio por Luisa; o fracasso do projeto de escrita do romance; e, como uma especie de pano de fundo, a impossibilidade de comunidade de uma sociedade para a qual o sucesso pessoal e a admiracao publica estao fundados num discurso que, no fundo, a exemplo do discurso de Evaristo Barroca, nao vale nada.

Por fim, ha que se considerar ainda o significado da carta anonima enviada a Adriao, causa direta da suspeita levantada sobre os encontros amorosos de Joao Valerio e Luisa, resultando em tragico desfecho para o marido traido, que se mata ao atirar no proprio peito. A autoria da carta e atribuida ao farmaceutico Neves, um personagem que aparece na historia como um sujeito causador de intrigas e sabedor de tudo o que acontece na cidade. Para Joao Valerio, o farmaceutico, vasculhador do infame, nao passa de um 'caluniador', 'canalha', 'maldizente', 'miseravel', uma 'pustula'. Eis a carta:

Prezado Amigo:

Nao tenho animo de assinar esta carta nem de escreve-la com a minha letra. Venho participar-lhe um ingente infortunio. Prepare-se para receber a noticia mais infausta que um homem de brio pode receber. Sabera que servem de assunto a boateiros desocupados as relacoes pecaminosas que existem entre sua esposa e o guarda-livros da firma Teixeira e Irmao. Envidei sumos esforcos para reprimir comentarios desabonadores. Inutilmente. O indigno auxiliar do estabelecimento que o amigo dirige, com muita competencia, esqueceu beneficios inestimaveis e, mordendo a mao caridosa que o protegeu, acao negra, condenada em estrofes imortais pelo nosso imperador, ousou levantar olhos impudicos para aquela que sempre reputamos um modelo de virtudes. E os sentimentos libidinosos do celerado foram bem acolhidos. Alguem viu esse ingrato passeando com a amante pelos arrabaldes, na aprazivel companhia de uma respeitavel matrona e duas gentis meninas, ignorantes das maldades que pululam neste mundo de provacoes. Tambem se julga com fundamento que o nefando par esteve uma tarde no Tanque, a sombra frondosa das mangueiras, como diz o poeta. Enfim, meu caro, o seu nome esta sendo atassalhado, vilmente atassalhado em todos os recantos da urbe. Ha poucos dias, num bilhar, o sedutor teve discussao acalorada com o digno orgao da justica publica. Foram quase as vias de fato, e no decurso da contenda surgiram referencias prejudiciais a honra de sua excelentissima consorte. Penalizado em extremo, trago-lhe estas informacoes lamentaveis. Peca ao Divino Mestre coragem e resignacao. Sou um dos seus amigos mais sinceros (Ramos, 2006, p. 201-202).

Mais do que em todos os demais romances de Graciliano, em Caetes o arranjo social atraves do qual se debatem os personagens caracteriza-se por uma forte demarcacao de papeis sociais vincados num conjunto de profissoes tradicionalmente presentes no ambito das cidades brasileiras do seculo passado. Nesse romance, sao caracterizados o comerciante, o farmaceutico, o prefeito, o medico, o promotor, o politico, o tabeliao etc. A consequencia desse forte apelo a dimensao profissional dos sujeitos retratados e a fusao ou encarnacao de principios que regem a atividade profissional especifica a personalidade deles. Sob esse ponto de vista, nao deixa de ser sintomatico o fato de que o farmaceutico Neves detenha, alem da funcao que lhe compete em sua profissao, qual seja, a de proporcionar a cura por meio da manipulacao quimica de substancias as mais diversas, o conhecimento das enfermidades morais que se abatem sobre os sujeitos da pequena cidade. O farmaceutico Neves, sabedor do caso extraconjugal de Luisa, faz valer a mais generosa amizade para com Adriao ao lhe lancar as maos uma especie de remedio cujo objetivo e curar o engano no qual o marido traido se acha metido. A palavra-remedio, neste caso, e fatal por tambem constituir, como um duplo inevitavel, a palavra-veneno: a carta leva Adriao a cometer o ato suicida.

Consideracoes finais

Como num jogo de luz e sombra, a palavra que cura, ou dizer verdadeiro, se apaga e da lugar ao engano, reino das sombras. Esse olhar, que prima pelo contorno negativo da existencia, parece tentado a acomodar-se no estado de sombra onde a condicao humana insiste habitar. Mais uma vez, vem a tona a constatacao de Valerio: 'Que sou eu senao um selvagem ...'. Contudo, se e verdade que a palavra curativa se mostra como tarefa fracassada, isso nao quer dizer que a sua nao realizacao constitua um mal absoluto do qual nao se possa jamais escapar. Ao lancar-se o desafio, que consiste em fazer da arte da escrita um local do dizer verdadeiro ('entre a gramatica e a lei, ainda nos podemos mexer'), o romance de Graciliano Ramos testemunha nao somente o absurdo em que esta imersa a existencia humana. Debater-se no limite em que o dizer verdadeiro depara com a imperfeicao dos homens revela tambem esse amanha possivel que mesmo o mais profundo fracasso nao pode evitar.

Interessante notar que o ideal de romance expressado por Valerio, escrita composta por 'lorotas em bom estilo', e nesse trecho avultam os exemplos de Goncalves Dias e Jose de Alencar, representa para o escritor Graciliano Ramos exatamente o oposto daquilo que a escrita ou dizer verdadeiro deve buscar. (7) Ao lado de personagens que se tornaram classicos na literatura de Graciliano, como Evaristo Barroca, Juliao Tavares do romance Angustia e o 'soldado amarelo' de Vidas Secas, Joao Valerio encarna alguns dos aspectos odiosos que povoam o ser dos homens, cuja repulsa fora confessada por Graciliano entre amigos e tambem no trabalho de critico. E por que nao reconhecer tambem, no engajamento politico do escritor, um posicionamento ante a sociedade capitalista e seus produtos mais perversos? A repeticao com que certas perversoes de carater entram em cena na pele de personagens despreziveis e uma marca do escritor. O egoismo proveniente de sociedades divididas entre exploradores e explorados, a crueldade e violencia despejadas sobre sujeitos (ou quase sujeitos) incapazes de se defender sao uma especie de ferida que o escritor insiste em manter viva.

Pode-se dizer que o modo quase obsessivo com que Graciliano Ramos sustenta repetidas vezes em sua obra esse quadro repulsivo fundamenta-se numa tentativa incansavel de achar uma resposta para este enigma, que e a propria condicao humana. A principal pergunta lancada por Caetes e que, por sua vez, insiste em lancar-se tambem ao olhar do interprete e aquela, nao menos perversa, da palavra extraviada, corrompida.

E exatamente por se apresentar em seu uso corrompido que esse primeiro romance de Graciliano faz da palavra o enigma a ser decifrado. A presenca constante da palavra humana em estado de imperfeicao, fundada na mentira e no engano, como o brilho de um ouro falso, engana tambem aquele que se apressa em taxar esta obra como simples expressao de um pessimismo inegociavel. Arriscando-se um passo alem no conjunto de possibilidades interpretativas que a obra tem a oferecer, e possivel vislumbrar, ao inves da negacao, a chama acesa da pergunta pela condicao humana. A grande virtude desse romance consiste no fato de que o autor nao oferece o fracasso da palavra como resposta pronta e acabada a essa chama que perscruta a condicao humana; a resposta de Graciliano Ramos, em toda a sua riqueza e cuidado com a possibilidade que o dizer verdadeiro confere a forma literaria do romance, transmuta-se tambem em pergunta aberta pelo ser do homem.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.25826

Referencias

Andrade, C. D. (2007). O avesso das coisas. Rio de Janeiro, RJ: Editora: Record.

Buber, M. Eu e Tu (2001). Sao Paulo, SP: Centauro.

Buber, M. (2007). Do dialogo e do dialogico. Sao Paulo: Perspectiva.

Bueno, L. (2006). Posfacio a 31a edicao. In G. Ramos. Caetes (31a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record.

Gadamer, H.-G. (2011). Verdade e metodo II: complementos e indice (6a ed.). Petropolis, RJ: Vozes; Braganca Paulista, SP: Editora Universitaria Sao Francisco.

Houaiss, A., & Villar, M. S. (2001). Dicionario Houaiss da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.

Jahanbegloo, R. George Steiner: a luz de si mesmo (2003). Sao Paulo, SP: Perspectiva.

Lebensztayn, I. (2010). Graciliano Ramos e a novidade: o astronomo do inferno e os meninos impossiveis. Sao Paulo, SP: Hedra.

Ramos, G. Linhas tortas (1979). (7a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record.

Ramos, G. Memorias do Carcere (1994). (Vol. 2, 28a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record.

Ramos, G. Caetes (2006). (31a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record.

Received on November 25, 2014.

Accepted on June 16, 2015.

Joao Paulo Ayub

Universidade Federal de Goias, Av. Dr. Lamartine Pinto de Avelar, 1120, 75704-020, Catalao, Goias, Brasil. E-mail: joaoayub@gmail.com

(1) Em Graciliano Ramos e a Novidade: o astronomo do inferno e os meninos impossiveis, importante trabalho de pesquisa e interpretacao da obra de Graciliano Ramos, Ieda Lebensztayn resgata diversos textos de escritores alagoanos publicados na revista Novidade, de 1931. Dentre eles, esta o cap. XXIV do romance Caetes.

(2) Nas Memorias do Carcere, Caetes surge, mais uma vez, muito mal apreciado pelo seu autor: 'uma narrativa medonha'. Tentando matar o tempo a caminhar por entre os pequenos espacos da cadeia, Graciliano surpreende um de seus colegas de prisao com o romance nas maos: "Com um estremecimento de repugnancia, vi Sergio embrenhado na leitura do meu primeiro romance. '--Pelo amor de Deus nao leia isso. E uma porcaria.' Ingenuo, tentei explicar-me, em grande embaraco. A publicacao daquilo fora consequencia de uma leviandade. Escrita dez anos antes, a miseravel historia passara as maos do editor Schmidt e emperrara. Ja revistas as provas, tinham surgido obstaculos, demora, cartas, desavencas e a entrega dos originais a amigos meus do Rio. Em 1935 [na verdade, isso ocorreu dois ou tres anos antes] Jorge Amado me visitara em Alagoas, dissera que Schmidt queria editar o livro; mas nao me convinha o negocio: julgava-me entao capaz de fazer obra menos ruim, meses atras concluira uma novela talvez aceitavel [Sao Bernardo]. Jorge se conformara com a recusa. Deixando-me, apossara-se dos malditos papeis e dera-os ao livreiro. Essa justificacao nada valia--e era impossivel oferece-la a todos os leitores. Sergio teve o bom-senso de nao me atribuir falsa modestia. Com um riso frio, voltou a leitura; ia chegando ao fim do volume e ia acolhendo tacitamente a minha opiniao desalentada. O Coletivo organizara uma pequena biblioteca desordenada, brochuras circulavam nos cubiculos, entre elas a narrativa medonha que eu nao gostava de mencionar. (Ramos, 1994, p. 225)".

(3) Antigo nome dado ao profissional encarregado da contabilidade comercial.

(4) O teologo Martin Buber, autor do ensaio Eu e Tu, escrito em 1957, foi quem melhor compreendeu e expressou a natureza dialogica do homem. A dimensao inter-humana, a realidade do 'entre', faz-se presente em sua obra no instante em que o autor se dispoe a alcancar uma ontologia da relacao, lugar sagrado a partir do qual o mundo se abre aos homens em suas multiplas possibilidades existenciais. Duas atitudes, no entanto, revelam a natureza dual do homem: uma de carater dialogica e outra monologica. Tais atitudes sao forjadas atraves das palavras-principio 'Eu-Tu' e 'Eu-Isso'. Sao ditas palavras principio devido ao fato de que e a partir delas, e de tudo o que tornam possivel enquanto categorias fundamentalmente existenciais, "uma vez proferidas elas fundamentam uma existencia", que o mundo se abre e se configura de forma singular aos sujeitos, ou sujeito, em relacao. A dualidade do homem a que se refere Buber esta contida na dupla possibilidade do Eu quando relacionado ora ao Tu, ora ao Isso (Buber, 2001, p. 55).

(5) Como contraponto a condicao existencial de 'voltar-se-ao-outro', Buber desenvolve a situacao em que o homem se encontra dobrado sobre si mesmo: "O dobrar-se-em-si-mesmo e diferente do egoismo ou mesmo do 'egotismo'. Nao e que o homem se ocupe de si mesmo, se contemple, se apalpe, se saboreie, se adore, se lamente; tudo isto pode ser-lhe acrescentado, mas nao e parte integrante do dobrar-se-em-si-mesmo--assim como, ao ato de voltar-se-ao-outro, completando-o, pode ser acrescentado o tornarmos o outro presente, na sua existencia especifica, mesmo englobarmo-lo, de forma que as situacoes comuns a ele e a nos mesmos sejam por nos experienciadas tambem do seu lado, do lado do Outro" (Buber, 2007, p. 58).

(6) Grifo nosso.

(7) Por meio de uma caracterizacao negativa desses romancistas que o romance de 30 tanto ousou superar, este primeiro romance de Graciliano Ramos pode ser lido tambem como genuina expressao de seu tempo. Carlos Drummond de Andrade, outro grande escritor do periodo, condensou numa frase a dinamica estrutural do campo literario: "Uma geracao literaria procura devorar a anterior antes que a proxima a devore" (Andrade, 2007, p. 94).
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