The modern and the contemporary: dialogic relations between Poe and Vilela/O moderno e o contemporaneo: relacoes dialogicas entre Poe e Vilela.
de Almeida, Londina da Cunha Pereira ; Pereira, Maria da Luz Alves ; Rodrigues, Rauer Ribeiro 等
Introducao
Edgar Allan Poe (1809-49), embora tenha lutado para deixar um
legado como poeta, ficou mais conhecido por sua prosa, particularmente
por suas narrativas insolitas, nas quais o suspense adiciona-se ao
terror sobrenatural. Entretanto, paralelo a essa producao, escreveu
quase mais contos do genero comico que do genero tragico. Pelo menos, um
terco de suas producoes, marco inicial do conto moderno, contem tom
humoristico, em que o autor aborda temas variados, apresentando facetas
do humor e da ironia, do sarcasmo e da satira.
Luiz Vilela, nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, em 1942, permanece
em plena atividade criadora, sendo autor de diversos romances, novelas e
contos. Apesar de seu variado universo ficcional, destaca-se pela
contistica, na qual retrata a complexidade do homem contemporaneo. Suas
coletaneas de contos mais recentes, A cabeca (2002) e Voce vera (2013),
apresentam historias de forte teor critico sob a arguta camada do riso
literario em gradacoes como humor, chiste, ironia e satira. Esses
procedimentos marcam uma poetica que contribui para o repensar de
valores da sociedade contemporanea.
A producao diversificada desses dois autores constitui o universo
do qual extraimos o corpus do presente artigo. Selecionamos os seguintes
contos: Nunca aposte sua cabeca com o diabo--conto moral, de Poe, e A
cabeca, de Vilela, conto da obra homonima. O conto do autor americano
foi publicado, pela primeira vez, em 1841, sob o titulo Never bet the
devil your head. A moral tale, e traduzido no Brasil por Oscar Mendes,
em 1965. Neste estudo, usamos a reimpressao de 2001.
O trabalho se propoe a identificar as relacoes dialogicas entre
esses contos, partindo da verificacao das convergencias, divergencias e
dos deslocamentos entre eles. Centrando no dizer dos textos e nos
efeitos de sentido produzidos, focamos no ponto em que eles se cruzam,
ao retomar a tematica da critica as normas de conduta em sociedade pelo
vies satirico, e no ponto em que eles se divergem, distinguindo um do
outro enquanto monofonico ou polifonico. Valemo-nos da polifonia e do
dialogismo bakhtinianos para proceder a este estudo, cuja base teorica
recai sobre A estetica da criacao verbal (2010), de Mikhail Bakhtin, bem
como de suas reflexoes, em Problemas da poetica de Dostoievski (1997).
Abordagem dialogica entre os contos
Nunca Aposte sua Cabeca com o Diabo--conto moral narra a historia
de um sujeito, Toby Dammit, que faz uma aposta com o diabo e, como
punicao, acaba perdendo a cabeca. Homem de 'bom-humor', ele
tem muitos vicios; o pior deles e ser afeito as apostas, pratica que o
leva a ruina. Certo dia, insistindo que consegue pular um torniquete,
pronuncia as palavras de costume: aposto minha cabeca com o diabo. De
repente, aparece o diabo, que o incentiva a realizar tal experiencia. Ao
pular, cai de costas, ao mesmo tempo em que o diabo enrola no seu
avental algo que desaba nele: a cabeca de Dammit.
A cabeca centra-se no dialogo entre varias personagens que discutem
acerca de uma cabeca encontrada no chao, em plena rua, sob o sol, numa
manha de domingo. Sem identificarem a quem ela pertence, grupos de
curiosos a rodeiam e passam a fazer especulacoes sobre a causa da morte.
Surgem, entao, dialogos aparentemente triviais, porem carregados de
subtextos que revelam preconceito, sexismo, descrenca religiosa e
indiferenca diante da morte.
Considerando que as fabulas dos contos giram em torno de
personagens que perdem a moral e a cabeca, podemos entrever, pela
aproximacao semantica, um dialogo entre eles, dado que [...] dois
enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados em um plano de sentido
[...] acabam em relacao dialogica. Mas essa e uma forma especial de
dialogismo nao intencional. (BAKHTIN, 2010, p. 323).
O caso em analise e exemplo desse modo singular de dialogismo, em
que ha a retomada de um tema, nao partindo necessariamente de um
discurso especifico, mas se valendo de um dialogo com a tradicao
literaria, porque, segundo Bakhtin (2010), as relacoes dialogicas
abarcam todas as experiencias na comunicacao discursiva.
Para Bakhtin, o dialogismo e um fenomeno constitutivo da linguagem,
porque os enunciados se mostram concretos e unicos e constituem a base
da lingua. Ele argumenta que "[...] toda compreensao plena real e
ativamente responsiva [...]" (BAKHTIN, 2010, p. 272) e explica que,
seja em qual forma aconteca, o falante nao espera do seu ouvinte uma
compreensao passiva, porem ativa: "[...] uma concordancia, uma
participacao, uma objecao, uma execucao, etc." (BAKHTIN, 2010, p.
272). Assim, a responsividade e a reacao que um individuo pode ter
diante de uma determinada situacao.
Considerando o papel do outro como fundamental, o teorico russo
enfatiza que
[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado
(linguistico) do discurso, ocupa simultaneamente em relacao a ele uma
'ativa posicao responsiva': concorda ou discorda dele (total
ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usa-lo, etc.
(BAKHTIN, 2010, p. 271, grifos nossos).
A seguir, conclui que todo esse raciocinio se refere "[...] ao
discurso escrito e ao lido" (BAKHTIN, 2010, p. 272). Portanto, ele
diz respeito tanto ao dialogo do dia a dia quanto ao dialogo entre
enunciados e outros textos literarios.
Retomando os contos, nota-se que Vilela colocase como o
'outro' no processo de comunicacao com o discurso de Poe.
Ainda que de forma inconsciente, o autor brasileiro ocupa, em relacao ao
primeiro, uma 'ativa posicao responsiva'. A respeito dessas
relacoes, Bakhtin esclarece que
[...] 'dois enunciados distantes um do outro, tanto no tempo
quanto no espaco, que nada sabem um sobre o outro, no confronto dos
sentidos revelam relacoes dialogicas' se entre eles ha ao menos
alguma convergencia de sentidos (ainda que seja uma identidade
particular do tema, do ponto de vista, etc.). Qualquer resenha da
historia de alguma questao cientifica (independente ou incluida no
trabalho cientifico sobre determinada questao) realiza confrontos
dialogicos (entre enunciados, opinioes, pontos de vista) entre
enunciados de cientistas que nao sabiam nem podiam saber nada uns sobre
os outros. 'O ponto comum gera aqui relacoes dialogicas'.
(BAKHTIN, 2010, p. 331, grifos nossos).
Se essa acao e de concordancia ou discordancia, se completa ou
aplica suas estruturas, e o que nos propomos a analisar. Desde o titulo,
o texto de Luiz Vilela dialoga com o texto de Poe ao enfatizar parte do
corpo humano--a cabeca--, elemento significativo no desenrolar das
narrativas. Esse destaque nos faz, inicialmente, refletir a respeito de
seu valor simbolico. A cabeca nao e apenas o centro do funcionamento
fisico do corpo e do pensamento; na visao biblica, por exemplo, esta
fortemente relacionada as experiencias do homem.
Segundo o ponto de vista cristao, sua posicao adquire diversos
significados: por a mao sobre a cabeca supoe vergonha (2 SAMUEL 13: 19);
inclinala indica tristeza (ISAIAS, 58: 5); menea-la denota desprezo
(MARCOS 15: 29); elevar a cabeca de alguem e dar-lhe reconhecimento
(GENESIS 40: 20). Sao possiveis, ainda, outras significacoes: o sangue
sobre a cabeca imputa culpabilidade a alguem sobre algum fato (JOSUE 2:
19); ferir o inimigo na cabeca significa vitoria sobre ele (SALMOS 68:
21).
Dentre as varias simbologias, ter a cabeca cortada e um grande
infortunio (MARCOS 6: 14-28). Essa percepcao e a destacada nos contos,
dado o destino das personagens. O discurso presente nos textos leva o
enunciatario a identificar uma conduta inadequada por parte das vitimas,
visto que elas figuram a violacao dos preceitos de moralidade e, em cada
texto, articulam-se diferentes mecanismos narrativos para elucidar a
postura delas.
O comportamento de Dammit e mais explicito. Ele e um apostador
inveterado, nao da importancia ao que as regras sociais determinam em
relacao a apostas, conforme o comentario do narrador: "Era
desaprovado pela sociedade--e aqui nao disse senao a verdade. Era
proibido por um decreto do Congresso" (POE, 2001, p. 525). Por mais
que seu amigo tente salva-lo, porque "[...] a alma de Dammit
achava-se em perigosissimo estado" (POE, 2001, p. 525), a
persistencia de suas atitudes leva-o ao fatal desfecho.
No conto de Vilela, a vitima e desconhecida das demais personagens.
A suposta causa de sua morte, o adulterio, aparece nos dialogos
estabelecidos entre os transeuntes. Para alguns, essa conduta impropria
teria sido o motivo de sua mutilacao:
'Sou capaz de apostar um milhao', disse o gordo. 'A
mulher estava chifrando o cara, e ai ele: sssp! ...', e o gordo fez
o gesto de cortar o pescoco. (VILELA, 2002, p. 129) (1).
Para outros, ela poderia ser inocente. Cada qual busca, calcado em
suas idiossincrasias, expor aos outros o seu ponto de vista.
Alem de uma convergencia de sentidos pela retomada tematica, os
contos encadeiam outras relacoes dialogicas. Os textos estao proximos
pelo veio comico, num flagrante deboche a sociedade. Observa-se, no
entanto, que tomam contornos diferenciados.
Satira moral e satira civilizatoria
Em Nunca Aposte sua Cabeca com o Diabo--conto moral, a propria
situacao da personagem e suas acoes poderiam desencadear um drama, mas
por mecanismos textuais, transformam o elemento tragico--morte--em
comedia. No conto de Vilela, a cabeca rente ao chao e um quadro lugubre,
que combina morte e horror, porem ruma para a mesma tendencia comica ao
apresentar as personagens em atitudes contraditorias ao esperado para a
situacao. Apesar de os textos possuirem estrategias narrativas
diferentes, eles se cruzam no ponto em que os autores expressam, de modo
satirico, sua visao de mundo.
Por meio da satira, obtem-se o riso mais escarnecedor, mais
derrisorio de todos, o riso do sarcasmo. Conforme Propp, o riso
provocado pela satira "[...] e um riso ideologicamente
significativo, valioso e necessario" (PROPP, 1992, p. 185). Para o
teorico, a satira e um fim, e nao um conjunto de procedimentos pelos
quais se alcanca um objetivo, ela e capaz de ter valor pedagogico, e
procedimento de importancia social e educativa. As faltas nocivas a
sociedade devem ser alvo da derrisao, ainda que sejam de materia
restrita, como o nosso comportamento cotidiano ou nossos defeitos
pessoais.
Na visao de Propp (1992), a satira, por si so, nao e o remedio que
cura os males daqueles a quem ela se dirige. O seu valor esta em atingir
os que permanecem indiferentes ou que sao condescendentes com os vicios
que nos circundam, ou ainda aqueles que realmente ignoram a existencia
deles, pois ela propicia uma reacao diante do inadmissivel. E preciso
observar que qualquer que seja a forma por ela apresentada, a essencia e
a consciencia aguda.
Na esteira do pensamento proppiano, Georges Minois, em Historia do
riso e do escarnio (2003, p. 511), aponta ser a satira um "[...]
riso de combate [...]". Qualquer que seja a forma do riso, ele vai
suscitar uma reacao nos homens; pode provocar desde a colera ate a
admiracao. Para uns, ele da sentido a existencia; para outros, e objeto
de estudo e, mesmo que de formas tao diversas--irritante ou sedutor--e
elemento que incorpora conhecimento e constitui visao de mundo. Mas, por
tras de toda zombaria, essa gradacao do riso e a que vai ao encontro do
homem consciente de seu tempo, o qual se coloca distante criticamente em
relacao ao mundo, a vida, aos valores, a tudo o que o circunda.
Conforme Arthur H. Quinn (1998), a narrativa de Poe e uma divertida
satira as coisas em geral, aos costumes, aos moralistas de periodos
anteriores, em particular, ao Transcendentalismo, movimento cultural
surgido na Nova Inglaterra em 1836, cujas ideias pregavam a existencia
de um estado espiritual ideal, e contem a defesa de Poe contra os que o
acusavam de nunca haver escrito um conto moral.
O autor faz do narrador o seu porta-voz ao afirmar que "[...]
toda obra de ficcao 'deveria' ter uma moral" (POE, 2001,
p. 524, grifo do autor); ou ainda,
[...] nao ha razao, por consequencia, para o ataque contra mim
lancado por certos ignorantes, por eu nunca ter escrito um conto moral
ou, em termos mais precisos, um conto com uma moral (POE, 2001, p. 524).
Por isso, escreve uma historia cujo titulo comporta a propria
moral. Acrescenta que por isso "[...] mereceria aplausos por esse
arranjo, bem mais inteligente que o de La Fontaine e de outros,
[...]" (POE, 2001, p. 524). Essas palavras confirmam que
"[...] a 'satira' em Poe e sempre
'desprezo'" (CORTAZAR, 2004, p. 110, grifo nosso), como
ja afirmara Cortazar, ao analisar os textos humoristicos do contista.
Ana Maria Zanoni da Silva, em Humor e satira: a outra face de Edgar
Allan Poe (2006), observa que Poe nao participa pacificamente do
ambiente no qual esta inserido, mas que o inquieta e o anima, tanto com
a critica quanto com a ficcao. Ao estabelecer relacoes entre a satira
expressa nos contos e o pensamento critico social do autor, ela pretende
demonstrar que ha, na obra dele, um compromisso com o seu tempo e o meio
social revelado pela face humoristica que captou e, de modo satirico,
reapresentou ao mundo a ficcao do sonho americano, ja patente no seculo
XIX.
Para a estudiosa, Poe revela-se nao um contista alienado, mas um
critico e ficcionista que atua e agita o momento social, por meio da
critica e da satira, firmando-se como "[...] um dos grandes
humoristas da modernidade" (SILVA, 2006, p. 167). Ainda reforca que
[...] atraves da satira aos costumes sociais, ele [Poe] expressa na
trama ficcional, fatos velados, reprimidos e latentes da sociedade
norte-americana, [...] revelando que a vida social esta embasada em
regras hipocritas e na ostentacao de falsos valores (SILVA, 2006, p.
167).
O conto A cabeca poe em cena as relacoes humanas por meio de
personagens desumanizadas, indiferentes ao horror da mutilacao, em
dialogos chocantes e preconceituosos. O carater satirico da narrativa e
fundamental para provocar reflexao acerca do individualismo e do
esfacelamento de valores. Sao homens e mulheres que expoem a
perversidade da sociedade atual, exibida por meio de um cotidiano
caotico e violento a que estao destinados os seus convivas. Da
passividade de acao diante do corpo mutilado, irrompem dialogos que
revelam insensibilidade, preconceito e desmistificacao do sagrado:
'O que a gente faz com essa cabeca?'
'Leva pra voce', sugeriu um gordo.
'Se fosse da sua mae, eu levava', respondeu [o morador do
bairro].
'Deus faz tudo certo', sentenciou um magrinho, de
barbicha, com uma surrada Biblia debaixo do braco [...].
'Quer dizer entao que isso ai e certo?...', o gordo
provocou. [...]
'O homem e a maior criacao de Deus', disse o barbicha.
'O homem e a maior cagada de Deus, isto sim', o de oculos
disse. [...]
'Inocente? Mulher inocente? ...', e o gordo olhou para os
outros da turma, quase todos homens. 'Voces ja viram alguma mulher
inocente? ...' (VILELA, 2002, p. 126-130).
Dessas passagens, observamos inicialmente o tratamento escarnecedor
das personagens ao pensarem no destino a ser dado a vitima. O que
aparenta ser uma preocupacao logo se torna motivo de troca entre eles.
Em seguida, o conflito entre a fe e a descrenca culmina num chiste que
expressa postura divergente de tudo o que tradicional e historicamente
esta vinculado aos ideais de religiosidade: "'O homem e a
maior cagada de Deus'" (VILELA, 2002, p. 127). A religiao nao
mais fica indene, sofre o atentado dessacralizador do sarcasmo. Esse
confronto entre as personagens, com suas interrogacoes, desfaz as
interdicoes com as quais o religioso por muito tempo foi revestido. A
ultima, por meio do comentario debochado da personagem masculina, mostra
que a emancipacao sexual feminina, que desalojou conhecimentos e
praticas anteriores sobre o lugar da mulher na sociedade, nao foi
portadora do fim da repressao sexual, agora revestida de novas
variacoes. As praticas sociais revelam que a diferenca sexual no
interior da nossa sociedade e tratada com preconceito no que tange ao
papel feminino.
O conteudo das discussoes entre as personagens converge para a
futilidade com que tratam o acontecido, chegando a um grau elevado com o
dialogo entre dois meninos. Os garotos, na iminencia de uma disputa de
campeonato, dao outro sentido a cena da cabeca no chao: "'Da
vontade de correr e encher o pe' [...] 'Da vontade de dar um
balao', disse o outro" (VILELA, 2002, p. 132).
Ernst Fischer, em A necessidade da arte (1987, p. 105), observa que
[...] em um mundo alienado, no qual unicamente as coisas possuem
valor, o homem se torna um objeto entre objetos: o mais impotente,
o mais desprezivel dos objetos.
Essa postura advem da perda de alguns referenciais: a objetividade
cientifica toma lugar do misticismo religioso, mais tarde o sistema
capitalista de producao mecaniza as relacoes sociais e aliena o homem.
Imersas em uma sociedade capitalista, as relacoes pessoais perdem
valor e tornam-se relacoes sociais entre objetos, conduzindo os homens a
"[...] objetificacao [...]" (FISCHER, 1987, p. 96), uma vez
que o mais importante sao os bens de producao, desvalorizando o ser
humano. Se pertencente a um mundo em que apenas as coisas possuem valor,
o homem recrudesce, desumaniza-se e torna-se indiferente.
A banalizacao da violencia torna-se ponto forte na narrativa de
Luiz Vilela com as personagens considerando a morte violenta algo
trivial: a morte faz parte do cotidiano e ja nao surpreende, a vida
humana aparece tao insignificante que a realidade nao choca mais,
mistura-se a paisagem e a rotina de todos. Por vezes, essa banalizacao
assume um carater de espetaculo: "'E o picolezeiro?',
perguntou o homem de terno" (VILELA, 2002, p. 131).
Ernst Fischer observa que a arte e a literatura nao apenas
representam a 'diminuicao ou deformacao do homem' e a
'adulteracao do Eu', como tambem "[...] a atitude
anti-humanista que, as vezes, assume o carater de critica social
brutalmente aspera" (FISCHER, 1987, p. 106). Nessa perspectiva,
podemos considerar os contos como representativos de uma arte que mostra
a realidade social, apela a razao e desaliena o homem. O constructo da
satira contribui sobremaneira para esse olhar.
No conto de Vilela, temos uma satira que visa atingir a
coletividade, uma vez que as personagens sao expoentes das imperfeicoes
humanas. A satira atinge os desvios as normas, aos valores morais e
sociais; quanto mais o individuo se distancia desses valores, mais
propenso esta a ser alvo dela. Dessa forma, ela torna-se elemento
reformador da conduta social, configurando-se como instrumento
civilizatorio que aponta para os padroes sociais vigentes. Quanto ao
conto de Poe, o padrao de conduta social estabelecido pelo grupo e
seguido e, quando Dammit quebra esse paradigma, advem, consequentemente,
a morte. A satira ressalta o aspecto moralizante: punicao para quem
infringe as normas impostas pela sociedade.
Diferentes olhares
Partindo da compreensao bakhtiniana de que o dialogo entre objetos
pode se configurar por uma ressalva, uma controversia, uma refutacao,
pois esses "[...] 'cruzam', 'convergem' e
'divergem' diferentes pontos de vista, visoes de mundo,
correntes" (BAKHTIN, 2010, p. 299, grifos nossos), Vilela diverge
de Poe ao contestar modelos classicos do genero conto.
Para elucidarmos como se realiza essa contestacao, observamos como
e trabalhado o foco narrativo nos contos. Poe faz uso do tipo "
[...] eu testemunha [...]" (FRIEDMAN, 2002, p. 175-176), aquele que
conduz o leitor pela narrativa, dando-lhe os fatos por seu angulo de
visao, de forma periferica. Vilela utiliza-se do modo dramatico
(FRIEDMAN, 2002), em que o narrador e eliminado da narrativa,
limitando-se a poucas entradas, apontando o que as personagens falam ou
fazem. Nessa construcao, quanto as personagens, "[...] suas
aparencias e o cenario devem ser dados pelo autor como que em direcoes
de cenas [...]" (FRIEDMAN, 2002, p. 178), mas a percepcao, os
sentimentos e as reflexoes devem ser da conta delas. Ainda assim, e
possivel que "[...] os estados mentais [...] possam ser inferidos a
partir da acao e do dialogo." (FRIEDMAN, 2002, p. 178).
Friedman (2002) observa que a escolha da tecnica e crucial para se
alcancar os efeitos pretendidos pelo autor, pois dela se percebe a
estrutura de valores incorporados a narrativa. Presenciando os fatos, o
narrador de Poe busca convencer o enunciatario de que se a amizade que
nutre por Dammit e verdadeira, igualmente seu relato torna-se a
expressao da mais pura verdade, pois mentir seria trair o amigo. O uso
dessa estrategia garante mais autenticidade ao enunciado se partirmos do
pressuposto de que em todo ato comunicativo, oral ou escrito, o
enunciador tem a intencao de manipular e convencer o enunciatario de que
seu discurso e veridico, fazendo crer como verdade tudo aquilo que diz.
Ja em Vilela, o modo dramatico, pelo afastamento do narrador e pela
palavra dada as personagens, busca criar a impressao de que a historia
se conta por si mesma. Os fatos que estao ocorrendo, assim como quem sao
as personagens, o que pensam e sentem nos sao dados a conhecer a medida
que os dialogos se desenrolam. Ha uma rapida descricao cenica inicial e
depois predominam os dialogos, com raras e breves observacoes do
narrador. Tais dialogos constroem uma trama na qual o todo e segmentado,
formando blocos textuais, como se fossem quadros, e que sobrepostos
apresentam uma sequencia, mas nao de forma rigida, podendo ser lidos de
maneira independente da unidade que os contem, resultando numa escrita
que permite construir uma totalidade a partir de fragmentos. Na
concepcao de Lauro Zavala (2000, p. 54), a escrita fragmentaria
[...] es producto de lo que llamamos fractalidad, es
decir, la idea de que un fragmento no es un detalle,
sino un elemento que contiene una totalidad que
merece ser descubierta y explorada por su cuenta.
Enquanto a narrativa de Poe segue os moldes tradicionais, o texto
de Vilela--sem romper com a estetica poeana do efeito unico--propoe uma
forma diferenciada de estrategia discursiva. No primeiro, ha um motivo
unico que norteia o conto; no segundo, um acontecimento deflagra
diversos motivos. E, se em Poe, temos um desfecho que se anuncia desde o
principio, a partir do titulo, em Vilela nada fica definido, pois o que
importa e o corpo do relato, e nao o desfecho dos acontecimentos--alias,
nao ha propriamente inicio ou desfecho: o conto se da como um recorte
semialeatorio entre outras possibilidades narrativas.
As vozes em confronto
Ao discutir a obra de Dostoievski, Bakhtin (1997) observa que as
personagens do romancista revelam uma independencia notoria em relacao
ao seu criador, apresentando uma multiplicidade de vozes cujos discursos
se confrontam, de modo que nao ha a superacao dialetica dos conflitos
desenvolvidos na trama. Dotado de consciencia propria, o heroi deixa de
figurar como objeto, tornando-se condutor de sua palavra. Isso nao
significa, porem, que o enunciador renuncia a sua consciencia; ele deve
amplia-la, aprofundando-a, reconstruindo-a, de forma que ela possa
cingir as consciencias plenivalentes alheias.
Por essa escrita peculiar, Bakhtin considera Dostoievski o criador
do romance polifonico. Nesse mesmo estudo, Bakhtin (1997) deixa entrever
que ha generos dialogicos monofonicos, com a predominancia de uma voz
sobre as outras, e os generos dialogicos polifonicos, os quais
apresentam diferentes vozes sociais que embatem umas com as outras,
expressando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto.
Na otica monologica, o foco do processo de criacao recai sobre o
enunciador, ele e o centro irradiador da consciencia, das vozes, dos
pontos de vista do texto, ocasionando a coisificacao dos elementos
dispostos na tessitura da escrita, os quais ficam sob rigido controle,
nao admitindo a existencia da consciencia responsiva e isonoma do outro.
O 'eu' tudo controla e o 'outro' e apenas objeto do
primeiro. Caracteriza-se, assim, o monologico como aquele discurso que
ignora a resposta do outro, que o rejeita como participe vivo e
representativo da sociedade.
Nao se deve ignorar que um discurso monologico defende uma verdade;
no entanto, essa verdade e unilateral, pois esse discurso nao reconhece
a isonomia das outras consciencias, obliterando-as do texto. O
enunciador, em posicao privilegiada, falara pelas personagens porque nao
credita a elas capacidade para se expressarem por si mesmas; ele as ve
como objetos os quais molda as suas proposicoes. E o discurso do
acabamento, do autoritarismo.
As vozes e as consciencias do discurso polifonico sao respostas a
sociedade capitalista de tentar reificar, coisificar o ser humano. Um
texto que se propoe polifonico deve colocar suas personagens em
conflitos ideologicos que permitam a elas constituirse como sujeitos de
um processo social ativo. Dessa forma, no discurso, o 'eu' tem
o mesmo valor que o 'outro', visto que o sujeito so reconhece
a si ao confrontar-se com o outro, e desse processo de reconhecimento
instaura-se uma comunicacao dialogica em que as
[...] vozes nao se fecham nem sao surdas umas as outras. Elas
sempre se escutam mutuamente, respondem umas as outras e se refletem
reciprocamente (BAKHTIN, 1997, p. 75).
Em essencia, a dialogia, como principio inerente a linguagem, e
condicao para todo e qualquer texto; no entanto, se houver a interacao
de "[...] consciencias independentes e imisciveis [...]"
(BAKTHIN, 1997, p. 4), teremos a polifonia.
Imbuidos do pensamento bakhtiniano, percebemos como monofonico o
discurso de Poe. Nele, ha uma representacao objetiva do meio, dos
costumes ou das coisas, de tudo que possa tornar-se ponto de apoio para
a construcao da narrativa. O narrador, por exemplo, tem uma ideia
formada, conclusiva a respeito das personagens e nao da autonomia a voz
delas. O mundo no qual vive e morre o protagonista e o mundo do
enunciador, que e objetivo em relacao as consciencias das personagens,
incluindo o narrador. Todos os acontecimentos sao retratados conforme
seu campo de visao e sua onisciencia. Desse modo, o enunciador se
configura como uma voz autoritaria que manipula as outras, com uma ideia
dominante.
No universo monologico, nao se conhece o pensamento ou a ideia do
outro como representacao. Por isso, o narrador de Poe, que se inscreve
como escritor, ao anunciar que "[...] nenhum homem pode sentar-se a
escrever sem uma profundissima intencao [...]" (POE, 2001, p. 524),
traz a tona a discussao acerca da moral. E impoe seu ponto de vista ao
afirmar que "[...] um romancista, por exemplo, nao precisa ter
cuidado com a sua moral" (POE, 2001, p. 524), porque
[...] chegado o tempo proprio, tudo o que o cavalheiro tenciona, e
tudo o que ele nao tenciona, sera trazido a luz [...] juntamente com
tudo o que ele devia ter tencionado e o resto que ele claramente
pretendia tencionar (POE, 2001, p. 524).
Essas ideias significantes, tidas como verdadeiras, se bastam e se
afirmam, revelando a cosmovisao do autor.
Em A cabeca, presenciamos o discurso polifonico, pois--nos termos
teoricos bakhtinianos--"[...] nao ha teses e ideias particulares
[...]" (BAKHTIN, 1997, p. 96), no embate entre as personagens.
Nessas interacoes, visualizamos vozes distintas, "[...] vozespontos
de vista [...]" (BAKHTIN, 1997, p. 96), uma vez que nao se defende
um posicionamento individual, os discursos das personagens refletem a
visao compartilhada e dialogica. A voz feminina e simbolizada pela
figura da mulher ruiva, para quem a atitude daqueles homens gera e
mantem a violencia: "'Eu vou dizer uma coisa' [...]
'Escutem o que eu vou dizer!' [...] 'Voces e que mataram
essa mulher!'" (VILELA, 2002, p. 131). Para um dos homens
presentes ali, voz da coletividade masculina, a mulher tem conduta moral
duvidosa:
'Mulher', disse o da bicicleta, acendendo mais um cigarro
[...], 'pra ser sincero, a unica mulher por que eu ponho a mao no
fogo e minha mae ... O resto ... Nem mesmo a minha irma eu ...'
(VILELA, 2002, p. 130).
A fala da ruiva esta impregnada das vozes de outros cuja opiniao e
por ela simbolizada. A ruiva e o homem da bicicleta metaforizam
diferentes vozes que se entrechocam, pontuando o conflito que permeia o
assunto. Esses tons polifonicos projetados pelos dialogos sao condutores
de opinioes conflitantes que apontam uma sociedade ambigua com relacao a
identidade feminina.
Mulheres e homens discutem, questionam-se mutuamente, provocam-se,
colocando suas "[...] verdades em luta [...]" (BAKHTIN, 1997,
p. 75), em pe de igualdade, sem que o enunciador interfira. Assim, vale
dizer que encontramos o que Bakhtin descreve como a exposicao de
[...] um mundo de consciencias que se elucidam mutuamente, um mundo
de posicionamentos semanticos conjugados do homem. (BAKHTIN, 1997, p.
97).
A ausencia de voz marginal possibilita que as polemicas sejam
elucidadas por meio de pontos de vista integrais em debate vigoroso, de
forma que nao predomina a consciencia de uma ou outra personagem, nem o
narrador procura se impor. Uma consciencia esta aberta a interacao de
outras, caracterizando a inconclusibilidade como um aspecto relevante do
discurso polifonico.
Consideracoes finais
Ao focarmos textos de autores geografica e temporalmente distantes,
confirmamos que e totalmente possivel um dialogo entre eles, mesmo nao
sendo um processo intencional. Ha pontos nos quais eles se tangenciam,
instituindo convergencia e divergencia de sentido, como teorizado por
Bakhtin (2010). No caso em estudo, percebemos que as relacoes dialogicas
se estabelecem, principalmente, pelo carater satirico. Contudo, essa
satira assume contornos dispares. Enquanto em Poe a satira tenciona
corrigir os costumes do individuo, em Vilela denuncia o processo
civilizatorio que gera homens e situacoes desumanas.
Partindo do pressuposto de que a satira consiste em "[...] uma
alteracao ridicula do modelo [...]" (PIRANDELLO, 1996, p. 78),
deduzimos que os autores a levam ao seu grau maximo ao por em evidencia
a sociedade e ridiculariza-la. Em ambos os textos, a ridicularizacao
acontece associada a expressao do horror, na medida em que ha um exagero
do modelo, um exagero do exagero. Por isso, para atingir esse efeito, e
inevitavel que se forcem os meios expressivos atraves da adulteracao dos
valores do prototipo reproduzido.
Ao cotejarmos um texto moderno, escrito ha cerca de duzentos anos
nos EUA por Edgar Allan Poe, com um texto contemporaneo, produzido no
Brasil, no inicio do terceiro milenio, depreendemos que Luiz Vilela
subverte o modelo canonico da contistica literaria, produzindo uma nova
estetica. Tendo em mente que "[...] o enunciado nao esta ligado
apenas aos elos precedentes, mas tambem aos subsequentes da comunicacao
discursiva [...]" (BAKHTIN, 2010, p. 301), podemos inferir que o
enunciado de Vilela trava um dialogo proficuo com o de Poe e pressupoe
atitudes responsivas dos enunciados subsequentes, gerando ressonancias
dialogicas.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v37i3.24827
Referencias
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Received on September 1, 2014.
Accepted on May 12, 2015.
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permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium,
provided the original work is properly cited.
Londina da Cunha Pereira de Almeida [1] *, Maria da Luz Alves
Pereira [2] e Rauer Ribeiro Rodrigues [3]
[1] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Rua da Consolacao, 930, 01302-907, Sao Paulo, Sao Paulo,
Brasil. [2] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, Rua da Consolacao, 930, 01302-907, Sao Paulo,
Sao Paulo, Brasil. [3] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Campus I, Avenida Cap. Olinto Mancini,
1662, 79603-011, Tres Lagoas, Mato Groso do Sul, Brasil. *Autor para
correspondencia. E-mail: londinacpa@hotmail.com
(1) As aspas simples foram usadas pelo autor do conto A Cabeca
(2002) como recurso de marcacao de dialogo.