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文章基本信息

  • 标题:The modern and the contemporary: dialogic relations between Poe and Vilela/O moderno e o contemporaneo: relacoes dialogicas entre Poe e Vilela.
  • 作者:de Almeida, Londina da Cunha Pereira ; Pereira, Maria da Luz Alves ; Rodrigues, Rauer Ribeiro
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2015
  • 期号:July
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Edgar Allan Poe (1809-49), embora tenha lutado para deixar um legado como poeta, ficou mais conhecido por sua prosa, particularmente por suas narrativas insolitas, nas quais o suspense adiciona-se ao terror sobrenatural. Entretanto, paralelo a essa producao, escreveu quase mais contos do genero comico que do genero tragico. Pelo menos, um terco de suas producoes, marco inicial do conto moderno, contem tom humoristico, em que o autor aborda temas variados, apresentando facetas do humor e da ironia, do sarcasmo e da satira.
  • 关键词:Autores;Cuentos cortos;Satira

The modern and the contemporary: dialogic relations between Poe and Vilela/O moderno e o contemporaneo: relacoes dialogicas entre Poe e Vilela.


de Almeida, Londina da Cunha Pereira ; Pereira, Maria da Luz Alves ; Rodrigues, Rauer Ribeiro 等


Introducao

Edgar Allan Poe (1809-49), embora tenha lutado para deixar um legado como poeta, ficou mais conhecido por sua prosa, particularmente por suas narrativas insolitas, nas quais o suspense adiciona-se ao terror sobrenatural. Entretanto, paralelo a essa producao, escreveu quase mais contos do genero comico que do genero tragico. Pelo menos, um terco de suas producoes, marco inicial do conto moderno, contem tom humoristico, em que o autor aborda temas variados, apresentando facetas do humor e da ironia, do sarcasmo e da satira.

Luiz Vilela, nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, em 1942, permanece em plena atividade criadora, sendo autor de diversos romances, novelas e contos. Apesar de seu variado universo ficcional, destaca-se pela contistica, na qual retrata a complexidade do homem contemporaneo. Suas coletaneas de contos mais recentes, A cabeca (2002) e Voce vera (2013), apresentam historias de forte teor critico sob a arguta camada do riso literario em gradacoes como humor, chiste, ironia e satira. Esses procedimentos marcam uma poetica que contribui para o repensar de valores da sociedade contemporanea.

A producao diversificada desses dois autores constitui o universo do qual extraimos o corpus do presente artigo. Selecionamos os seguintes contos: Nunca aposte sua cabeca com o diabo--conto moral, de Poe, e A cabeca, de Vilela, conto da obra homonima. O conto do autor americano foi publicado, pela primeira vez, em 1841, sob o titulo Never bet the devil your head. A moral tale, e traduzido no Brasil por Oscar Mendes, em 1965. Neste estudo, usamos a reimpressao de 2001.

O trabalho se propoe a identificar as relacoes dialogicas entre esses contos, partindo da verificacao das convergencias, divergencias e dos deslocamentos entre eles. Centrando no dizer dos textos e nos efeitos de sentido produzidos, focamos no ponto em que eles se cruzam, ao retomar a tematica da critica as normas de conduta em sociedade pelo vies satirico, e no ponto em que eles se divergem, distinguindo um do outro enquanto monofonico ou polifonico. Valemo-nos da polifonia e do dialogismo bakhtinianos para proceder a este estudo, cuja base teorica recai sobre A estetica da criacao verbal (2010), de Mikhail Bakhtin, bem como de suas reflexoes, em Problemas da poetica de Dostoievski (1997).

Abordagem dialogica entre os contos

Nunca Aposte sua Cabeca com o Diabo--conto moral narra a historia de um sujeito, Toby Dammit, que faz uma aposta com o diabo e, como punicao, acaba perdendo a cabeca. Homem de 'bom-humor', ele tem muitos vicios; o pior deles e ser afeito as apostas, pratica que o leva a ruina. Certo dia, insistindo que consegue pular um torniquete, pronuncia as palavras de costume: aposto minha cabeca com o diabo. De repente, aparece o diabo, que o incentiva a realizar tal experiencia. Ao pular, cai de costas, ao mesmo tempo em que o diabo enrola no seu avental algo que desaba nele: a cabeca de Dammit.

A cabeca centra-se no dialogo entre varias personagens que discutem acerca de uma cabeca encontrada no chao, em plena rua, sob o sol, numa manha de domingo. Sem identificarem a quem ela pertence, grupos de curiosos a rodeiam e passam a fazer especulacoes sobre a causa da morte. Surgem, entao, dialogos aparentemente triviais, porem carregados de subtextos que revelam preconceito, sexismo, descrenca religiosa e indiferenca diante da morte.

Considerando que as fabulas dos contos giram em torno de personagens que perdem a moral e a cabeca, podemos entrever, pela aproximacao semantica, um dialogo entre eles, dado que [...] dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados em um plano de sentido [...] acabam em relacao dialogica. Mas essa e uma forma especial de dialogismo nao intencional. (BAKHTIN, 2010, p. 323).

O caso em analise e exemplo desse modo singular de dialogismo, em que ha a retomada de um tema, nao partindo necessariamente de um discurso especifico, mas se valendo de um dialogo com a tradicao literaria, porque, segundo Bakhtin (2010), as relacoes dialogicas abarcam todas as experiencias na comunicacao discursiva.

Para Bakhtin, o dialogismo e um fenomeno constitutivo da linguagem, porque os enunciados se mostram concretos e unicos e constituem a base da lingua. Ele argumenta que "[...] toda compreensao plena real e ativamente responsiva [...]" (BAKHTIN, 2010, p. 272) e explica que, seja em qual forma aconteca, o falante nao espera do seu ouvinte uma compreensao passiva, porem ativa: "[...] uma concordancia, uma participacao, uma objecao, uma execucao, etc." (BAKHTIN, 2010, p. 272). Assim, a responsividade e a reacao que um individuo pode ter diante de uma determinada situacao.

Considerando o papel do outro como fundamental, o teorico russo enfatiza que

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguistico) do discurso, ocupa simultaneamente em relacao a ele uma 'ativa posicao responsiva': concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usa-lo, etc. (BAKHTIN, 2010, p. 271, grifos nossos).

A seguir, conclui que todo esse raciocinio se refere "[...] ao discurso escrito e ao lido" (BAKHTIN, 2010, p. 272). Portanto, ele diz respeito tanto ao dialogo do dia a dia quanto ao dialogo entre enunciados e outros textos literarios.

Retomando os contos, nota-se que Vilela colocase como o 'outro' no processo de comunicacao com o discurso de Poe. Ainda que de forma inconsciente, o autor brasileiro ocupa, em relacao ao primeiro, uma 'ativa posicao responsiva'. A respeito dessas relacoes, Bakhtin esclarece que

[...] 'dois enunciados distantes um do outro, tanto no tempo quanto no espaco, que nada sabem um sobre o outro, no confronto dos sentidos revelam relacoes dialogicas' se entre eles ha ao menos alguma convergencia de sentidos (ainda que seja uma identidade particular do tema, do ponto de vista, etc.). Qualquer resenha da historia de alguma questao cientifica (independente ou incluida no trabalho cientifico sobre determinada questao) realiza confrontos dialogicos (entre enunciados, opinioes, pontos de vista) entre enunciados de cientistas que nao sabiam nem podiam saber nada uns sobre os outros. 'O ponto comum gera aqui relacoes dialogicas'. (BAKHTIN, 2010, p. 331, grifos nossos).

Se essa acao e de concordancia ou discordancia, se completa ou aplica suas estruturas, e o que nos propomos a analisar. Desde o titulo, o texto de Luiz Vilela dialoga com o texto de Poe ao enfatizar parte do corpo humano--a cabeca--, elemento significativo no desenrolar das narrativas. Esse destaque nos faz, inicialmente, refletir a respeito de seu valor simbolico. A cabeca nao e apenas o centro do funcionamento fisico do corpo e do pensamento; na visao biblica, por exemplo, esta fortemente relacionada as experiencias do homem.

Segundo o ponto de vista cristao, sua posicao adquire diversos significados: por a mao sobre a cabeca supoe vergonha (2 SAMUEL 13: 19); inclinala indica tristeza (ISAIAS, 58: 5); menea-la denota desprezo (MARCOS 15: 29); elevar a cabeca de alguem e dar-lhe reconhecimento (GENESIS 40: 20). Sao possiveis, ainda, outras significacoes: o sangue sobre a cabeca imputa culpabilidade a alguem sobre algum fato (JOSUE 2: 19); ferir o inimigo na cabeca significa vitoria sobre ele (SALMOS 68: 21).

Dentre as varias simbologias, ter a cabeca cortada e um grande infortunio (MARCOS 6: 14-28). Essa percepcao e a destacada nos contos, dado o destino das personagens. O discurso presente nos textos leva o enunciatario a identificar uma conduta inadequada por parte das vitimas, visto que elas figuram a violacao dos preceitos de moralidade e, em cada texto, articulam-se diferentes mecanismos narrativos para elucidar a postura delas.

O comportamento de Dammit e mais explicito. Ele e um apostador inveterado, nao da importancia ao que as regras sociais determinam em relacao a apostas, conforme o comentario do narrador: "Era desaprovado pela sociedade--e aqui nao disse senao a verdade. Era proibido por um decreto do Congresso" (POE, 2001, p. 525). Por mais que seu amigo tente salva-lo, porque "[...] a alma de Dammit achava-se em perigosissimo estado" (POE, 2001, p. 525), a persistencia de suas atitudes leva-o ao fatal desfecho.

No conto de Vilela, a vitima e desconhecida das demais personagens. A suposta causa de sua morte, o adulterio, aparece nos dialogos estabelecidos entre os transeuntes. Para alguns, essa conduta impropria teria sido o motivo de sua mutilacao:

'Sou capaz de apostar um milhao', disse o gordo. 'A mulher estava chifrando o cara, e ai ele: sssp! ...', e o gordo fez o gesto de cortar o pescoco. (VILELA, 2002, p. 129) (1).

Para outros, ela poderia ser inocente. Cada qual busca, calcado em suas idiossincrasias, expor aos outros o seu ponto de vista.

Alem de uma convergencia de sentidos pela retomada tematica, os contos encadeiam outras relacoes dialogicas. Os textos estao proximos pelo veio comico, num flagrante deboche a sociedade. Observa-se, no entanto, que tomam contornos diferenciados.

Satira moral e satira civilizatoria

Em Nunca Aposte sua Cabeca com o Diabo--conto moral, a propria situacao da personagem e suas acoes poderiam desencadear um drama, mas por mecanismos textuais, transformam o elemento tragico--morte--em comedia. No conto de Vilela, a cabeca rente ao chao e um quadro lugubre, que combina morte e horror, porem ruma para a mesma tendencia comica ao apresentar as personagens em atitudes contraditorias ao esperado para a situacao. Apesar de os textos possuirem estrategias narrativas diferentes, eles se cruzam no ponto em que os autores expressam, de modo satirico, sua visao de mundo.

Por meio da satira, obtem-se o riso mais escarnecedor, mais derrisorio de todos, o riso do sarcasmo. Conforme Propp, o riso provocado pela satira "[...] e um riso ideologicamente significativo, valioso e necessario" (PROPP, 1992, p. 185). Para o teorico, a satira e um fim, e nao um conjunto de procedimentos pelos quais se alcanca um objetivo, ela e capaz de ter valor pedagogico, e procedimento de importancia social e educativa. As faltas nocivas a sociedade devem ser alvo da derrisao, ainda que sejam de materia restrita, como o nosso comportamento cotidiano ou nossos defeitos pessoais.

Na visao de Propp (1992), a satira, por si so, nao e o remedio que cura os males daqueles a quem ela se dirige. O seu valor esta em atingir os que permanecem indiferentes ou que sao condescendentes com os vicios que nos circundam, ou ainda aqueles que realmente ignoram a existencia deles, pois ela propicia uma reacao diante do inadmissivel. E preciso observar que qualquer que seja a forma por ela apresentada, a essencia e a consciencia aguda.

Na esteira do pensamento proppiano, Georges Minois, em Historia do riso e do escarnio (2003, p. 511), aponta ser a satira um "[...] riso de combate [...]". Qualquer que seja a forma do riso, ele vai suscitar uma reacao nos homens; pode provocar desde a colera ate a admiracao. Para uns, ele da sentido a existencia; para outros, e objeto de estudo e, mesmo que de formas tao diversas--irritante ou sedutor--e elemento que incorpora conhecimento e constitui visao de mundo. Mas, por tras de toda zombaria, essa gradacao do riso e a que vai ao encontro do homem consciente de seu tempo, o qual se coloca distante criticamente em relacao ao mundo, a vida, aos valores, a tudo o que o circunda.

Conforme Arthur H. Quinn (1998), a narrativa de Poe e uma divertida satira as coisas em geral, aos costumes, aos moralistas de periodos anteriores, em particular, ao Transcendentalismo, movimento cultural surgido na Nova Inglaterra em 1836, cujas ideias pregavam a existencia de um estado espiritual ideal, e contem a defesa de Poe contra os que o acusavam de nunca haver escrito um conto moral.

O autor faz do narrador o seu porta-voz ao afirmar que "[...] toda obra de ficcao 'deveria' ter uma moral" (POE, 2001, p. 524, grifo do autor); ou ainda,

[...] nao ha razao, por consequencia, para o ataque contra mim lancado por certos ignorantes, por eu nunca ter escrito um conto moral ou, em termos mais precisos, um conto com uma moral (POE, 2001, p. 524).

Por isso, escreve uma historia cujo titulo comporta a propria moral. Acrescenta que por isso "[...] mereceria aplausos por esse arranjo, bem mais inteligente que o de La Fontaine e de outros, [...]" (POE, 2001, p. 524). Essas palavras confirmam que "[...] a 'satira' em Poe e sempre 'desprezo'" (CORTAZAR, 2004, p. 110, grifo nosso), como ja afirmara Cortazar, ao analisar os textos humoristicos do contista.

Ana Maria Zanoni da Silva, em Humor e satira: a outra face de Edgar Allan Poe (2006), observa que Poe nao participa pacificamente do ambiente no qual esta inserido, mas que o inquieta e o anima, tanto com a critica quanto com a ficcao. Ao estabelecer relacoes entre a satira expressa nos contos e o pensamento critico social do autor, ela pretende demonstrar que ha, na obra dele, um compromisso com o seu tempo e o meio social revelado pela face humoristica que captou e, de modo satirico, reapresentou ao mundo a ficcao do sonho americano, ja patente no seculo XIX.

Para a estudiosa, Poe revela-se nao um contista alienado, mas um critico e ficcionista que atua e agita o momento social, por meio da critica e da satira, firmando-se como "[...] um dos grandes humoristas da modernidade" (SILVA, 2006, p. 167). Ainda reforca que

[...] atraves da satira aos costumes sociais, ele [Poe] expressa na trama ficcional, fatos velados, reprimidos e latentes da sociedade norte-americana, [...] revelando que a vida social esta embasada em regras hipocritas e na ostentacao de falsos valores (SILVA, 2006, p. 167).

O conto A cabeca poe em cena as relacoes humanas por meio de personagens desumanizadas, indiferentes ao horror da mutilacao, em dialogos chocantes e preconceituosos. O carater satirico da narrativa e fundamental para provocar reflexao acerca do individualismo e do esfacelamento de valores. Sao homens e mulheres que expoem a perversidade da sociedade atual, exibida por meio de um cotidiano caotico e violento a que estao destinados os seus convivas. Da passividade de acao diante do corpo mutilado, irrompem dialogos que revelam insensibilidade, preconceito e desmistificacao do sagrado:

'O que a gente faz com essa cabeca?'

'Leva pra voce', sugeriu um gordo.

'Se fosse da sua mae, eu levava', respondeu [o morador do bairro].

'Deus faz tudo certo', sentenciou um magrinho, de barbicha, com uma surrada Biblia debaixo do braco [...].

'Quer dizer entao que isso ai e certo?...', o gordo provocou. [...]

'O homem e a maior criacao de Deus', disse o barbicha.

'O homem e a maior cagada de Deus, isto sim', o de oculos disse. [...]

'Inocente? Mulher inocente? ...', e o gordo olhou para os outros da turma, quase todos homens. 'Voces ja viram alguma mulher inocente? ...' (VILELA, 2002, p. 126-130).

Dessas passagens, observamos inicialmente o tratamento escarnecedor das personagens ao pensarem no destino a ser dado a vitima. O que aparenta ser uma preocupacao logo se torna motivo de troca entre eles. Em seguida, o conflito entre a fe e a descrenca culmina num chiste que expressa postura divergente de tudo o que tradicional e historicamente esta vinculado aos ideais de religiosidade: "'O homem e a maior cagada de Deus'" (VILELA, 2002, p. 127). A religiao nao mais fica indene, sofre o atentado dessacralizador do sarcasmo. Esse confronto entre as personagens, com suas interrogacoes, desfaz as interdicoes com as quais o religioso por muito tempo foi revestido. A ultima, por meio do comentario debochado da personagem masculina, mostra que a emancipacao sexual feminina, que desalojou conhecimentos e praticas anteriores sobre o lugar da mulher na sociedade, nao foi portadora do fim da repressao sexual, agora revestida de novas variacoes. As praticas sociais revelam que a diferenca sexual no interior da nossa sociedade e tratada com preconceito no que tange ao papel feminino.

O conteudo das discussoes entre as personagens converge para a futilidade com que tratam o acontecido, chegando a um grau elevado com o dialogo entre dois meninos. Os garotos, na iminencia de uma disputa de campeonato, dao outro sentido a cena da cabeca no chao: "'Da vontade de correr e encher o pe' [...] 'Da vontade de dar um balao', disse o outro" (VILELA, 2002, p. 132).

Ernst Fischer, em A necessidade da arte (1987, p. 105), observa que
   [...] em um mundo alienado, no qual unicamente as coisas possuem
   valor, o homem se torna um objeto entre objetos: o mais impotente,
   o mais desprezivel dos objetos.


Essa postura advem da perda de alguns referenciais: a objetividade cientifica toma lugar do misticismo religioso, mais tarde o sistema capitalista de producao mecaniza as relacoes sociais e aliena o homem.

Imersas em uma sociedade capitalista, as relacoes pessoais perdem valor e tornam-se relacoes sociais entre objetos, conduzindo os homens a "[...] objetificacao [...]" (FISCHER, 1987, p. 96), uma vez que o mais importante sao os bens de producao, desvalorizando o ser humano. Se pertencente a um mundo em que apenas as coisas possuem valor, o homem recrudesce, desumaniza-se e torna-se indiferente.

A banalizacao da violencia torna-se ponto forte na narrativa de Luiz Vilela com as personagens considerando a morte violenta algo trivial: a morte faz parte do cotidiano e ja nao surpreende, a vida humana aparece tao insignificante que a realidade nao choca mais, mistura-se a paisagem e a rotina de todos. Por vezes, essa banalizacao assume um carater de espetaculo: "'E o picolezeiro?', perguntou o homem de terno" (VILELA, 2002, p. 131).

Ernst Fischer observa que a arte e a literatura nao apenas representam a 'diminuicao ou deformacao do homem' e a 'adulteracao do Eu', como tambem "[...] a atitude anti-humanista que, as vezes, assume o carater de critica social brutalmente aspera" (FISCHER, 1987, p. 106). Nessa perspectiva, podemos considerar os contos como representativos de uma arte que mostra a realidade social, apela a razao e desaliena o homem. O constructo da satira contribui sobremaneira para esse olhar.

No conto de Vilela, temos uma satira que visa atingir a coletividade, uma vez que as personagens sao expoentes das imperfeicoes humanas. A satira atinge os desvios as normas, aos valores morais e sociais; quanto mais o individuo se distancia desses valores, mais propenso esta a ser alvo dela. Dessa forma, ela torna-se elemento reformador da conduta social, configurando-se como instrumento civilizatorio que aponta para os padroes sociais vigentes. Quanto ao conto de Poe, o padrao de conduta social estabelecido pelo grupo e seguido e, quando Dammit quebra esse paradigma, advem, consequentemente, a morte. A satira ressalta o aspecto moralizante: punicao para quem infringe as normas impostas pela sociedade.

Diferentes olhares

Partindo da compreensao bakhtiniana de que o dialogo entre objetos pode se configurar por uma ressalva, uma controversia, uma refutacao, pois esses "[...] 'cruzam', 'convergem' e 'divergem' diferentes pontos de vista, visoes de mundo, correntes" (BAKHTIN, 2010, p. 299, grifos nossos), Vilela diverge de Poe ao contestar modelos classicos do genero conto.

Para elucidarmos como se realiza essa contestacao, observamos como e trabalhado o foco narrativo nos contos. Poe faz uso do tipo " [...] eu testemunha [...]" (FRIEDMAN, 2002, p. 175-176), aquele que conduz o leitor pela narrativa, dando-lhe os fatos por seu angulo de visao, de forma periferica. Vilela utiliza-se do modo dramatico (FRIEDMAN, 2002), em que o narrador e eliminado da narrativa, limitando-se a poucas entradas, apontando o que as personagens falam ou fazem. Nessa construcao, quanto as personagens, "[...] suas aparencias e o cenario devem ser dados pelo autor como que em direcoes de cenas [...]" (FRIEDMAN, 2002, p. 178), mas a percepcao, os sentimentos e as reflexoes devem ser da conta delas. Ainda assim, e possivel que "[...] os estados mentais [...] possam ser inferidos a partir da acao e do dialogo." (FRIEDMAN, 2002, p. 178).

Friedman (2002) observa que a escolha da tecnica e crucial para se alcancar os efeitos pretendidos pelo autor, pois dela se percebe a estrutura de valores incorporados a narrativa. Presenciando os fatos, o narrador de Poe busca convencer o enunciatario de que se a amizade que nutre por Dammit e verdadeira, igualmente seu relato torna-se a expressao da mais pura verdade, pois mentir seria trair o amigo. O uso dessa estrategia garante mais autenticidade ao enunciado se partirmos do pressuposto de que em todo ato comunicativo, oral ou escrito, o enunciador tem a intencao de manipular e convencer o enunciatario de que seu discurso e veridico, fazendo crer como verdade tudo aquilo que diz.

Ja em Vilela, o modo dramatico, pelo afastamento do narrador e pela palavra dada as personagens, busca criar a impressao de que a historia se conta por si mesma. Os fatos que estao ocorrendo, assim como quem sao as personagens, o que pensam e sentem nos sao dados a conhecer a medida que os dialogos se desenrolam. Ha uma rapida descricao cenica inicial e depois predominam os dialogos, com raras e breves observacoes do narrador. Tais dialogos constroem uma trama na qual o todo e segmentado, formando blocos textuais, como se fossem quadros, e que sobrepostos apresentam uma sequencia, mas nao de forma rigida, podendo ser lidos de maneira independente da unidade que os contem, resultando numa escrita que permite construir uma totalidade a partir de fragmentos. Na concepcao de Lauro Zavala (2000, p. 54), a escrita fragmentaria
   [...] es producto de lo que llamamos fractalidad, es
   decir, la idea de que un fragmento no es un detalle,
   sino un elemento que contiene una totalidad que
   merece ser descubierta y explorada por su cuenta.


Enquanto a narrativa de Poe segue os moldes tradicionais, o texto de Vilela--sem romper com a estetica poeana do efeito unico--propoe uma forma diferenciada de estrategia discursiva. No primeiro, ha um motivo unico que norteia o conto; no segundo, um acontecimento deflagra diversos motivos. E, se em Poe, temos um desfecho que se anuncia desde o principio, a partir do titulo, em Vilela nada fica definido, pois o que importa e o corpo do relato, e nao o desfecho dos acontecimentos--alias, nao ha propriamente inicio ou desfecho: o conto se da como um recorte semialeatorio entre outras possibilidades narrativas.

As vozes em confronto

Ao discutir a obra de Dostoievski, Bakhtin (1997) observa que as personagens do romancista revelam uma independencia notoria em relacao ao seu criador, apresentando uma multiplicidade de vozes cujos discursos se confrontam, de modo que nao ha a superacao dialetica dos conflitos desenvolvidos na trama. Dotado de consciencia propria, o heroi deixa de figurar como objeto, tornando-se condutor de sua palavra. Isso nao significa, porem, que o enunciador renuncia a sua consciencia; ele deve amplia-la, aprofundando-a, reconstruindo-a, de forma que ela possa cingir as consciencias plenivalentes alheias.

Por essa escrita peculiar, Bakhtin considera Dostoievski o criador do romance polifonico. Nesse mesmo estudo, Bakhtin (1997) deixa entrever que ha generos dialogicos monofonicos, com a predominancia de uma voz sobre as outras, e os generos dialogicos polifonicos, os quais apresentam diferentes vozes sociais que embatem umas com as outras, expressando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto.

Na otica monologica, o foco do processo de criacao recai sobre o enunciador, ele e o centro irradiador da consciencia, das vozes, dos pontos de vista do texto, ocasionando a coisificacao dos elementos dispostos na tessitura da escrita, os quais ficam sob rigido controle, nao admitindo a existencia da consciencia responsiva e isonoma do outro. O 'eu' tudo controla e o 'outro' e apenas objeto do primeiro. Caracteriza-se, assim, o monologico como aquele discurso que ignora a resposta do outro, que o rejeita como participe vivo e representativo da sociedade.

Nao se deve ignorar que um discurso monologico defende uma verdade; no entanto, essa verdade e unilateral, pois esse discurso nao reconhece a isonomia das outras consciencias, obliterando-as do texto. O enunciador, em posicao privilegiada, falara pelas personagens porque nao credita a elas capacidade para se expressarem por si mesmas; ele as ve como objetos os quais molda as suas proposicoes. E o discurso do acabamento, do autoritarismo.

As vozes e as consciencias do discurso polifonico sao respostas a sociedade capitalista de tentar reificar, coisificar o ser humano. Um texto que se propoe polifonico deve colocar suas personagens em conflitos ideologicos que permitam a elas constituirse como sujeitos de um processo social ativo. Dessa forma, no discurso, o 'eu' tem o mesmo valor que o 'outro', visto que o sujeito so reconhece a si ao confrontar-se com o outro, e desse processo de reconhecimento instaura-se uma comunicacao dialogica em que as

[...] vozes nao se fecham nem sao surdas umas as outras. Elas sempre se escutam mutuamente, respondem umas as outras e se refletem reciprocamente (BAKHTIN, 1997, p. 75).

Em essencia, a dialogia, como principio inerente a linguagem, e condicao para todo e qualquer texto; no entanto, se houver a interacao de "[...] consciencias independentes e imisciveis [...]" (BAKTHIN, 1997, p. 4), teremos a polifonia.

Imbuidos do pensamento bakhtiniano, percebemos como monofonico o discurso de Poe. Nele, ha uma representacao objetiva do meio, dos costumes ou das coisas, de tudo que possa tornar-se ponto de apoio para a construcao da narrativa. O narrador, por exemplo, tem uma ideia formada, conclusiva a respeito das personagens e nao da autonomia a voz delas. O mundo no qual vive e morre o protagonista e o mundo do enunciador, que e objetivo em relacao as consciencias das personagens, incluindo o narrador. Todos os acontecimentos sao retratados conforme seu campo de visao e sua onisciencia. Desse modo, o enunciador se configura como uma voz autoritaria que manipula as outras, com uma ideia dominante.

No universo monologico, nao se conhece o pensamento ou a ideia do outro como representacao. Por isso, o narrador de Poe, que se inscreve como escritor, ao anunciar que "[...] nenhum homem pode sentar-se a escrever sem uma profundissima intencao [...]" (POE, 2001, p. 524), traz a tona a discussao acerca da moral. E impoe seu ponto de vista ao afirmar que "[...] um romancista, por exemplo, nao precisa ter cuidado com a sua moral" (POE, 2001, p. 524), porque

[...] chegado o tempo proprio, tudo o que o cavalheiro tenciona, e tudo o que ele nao tenciona, sera trazido a luz [...] juntamente com tudo o que ele devia ter tencionado e o resto que ele claramente pretendia tencionar (POE, 2001, p. 524).

Essas ideias significantes, tidas como verdadeiras, se bastam e se afirmam, revelando a cosmovisao do autor.

Em A cabeca, presenciamos o discurso polifonico, pois--nos termos teoricos bakhtinianos--"[...] nao ha teses e ideias particulares [...]" (BAKHTIN, 1997, p. 96), no embate entre as personagens. Nessas interacoes, visualizamos vozes distintas, "[...] vozespontos de vista [...]" (BAKHTIN, 1997, p. 96), uma vez que nao se defende um posicionamento individual, os discursos das personagens refletem a visao compartilhada e dialogica. A voz feminina e simbolizada pela figura da mulher ruiva, para quem a atitude daqueles homens gera e mantem a violencia: "'Eu vou dizer uma coisa' [...] 'Escutem o que eu vou dizer!' [...] 'Voces e que mataram essa mulher!'" (VILELA, 2002, p. 131). Para um dos homens presentes ali, voz da coletividade masculina, a mulher tem conduta moral duvidosa:

'Mulher', disse o da bicicleta, acendendo mais um cigarro [...], 'pra ser sincero, a unica mulher por que eu ponho a mao no fogo e minha mae ... O resto ... Nem mesmo a minha irma eu ...' (VILELA, 2002, p. 130).

A fala da ruiva esta impregnada das vozes de outros cuja opiniao e por ela simbolizada. A ruiva e o homem da bicicleta metaforizam diferentes vozes que se entrechocam, pontuando o conflito que permeia o assunto. Esses tons polifonicos projetados pelos dialogos sao condutores de opinioes conflitantes que apontam uma sociedade ambigua com relacao a identidade feminina.

Mulheres e homens discutem, questionam-se mutuamente, provocam-se, colocando suas "[...] verdades em luta [...]" (BAKHTIN, 1997, p. 75), em pe de igualdade, sem que o enunciador interfira. Assim, vale dizer que encontramos o que Bakhtin descreve como a exposicao de

[...] um mundo de consciencias que se elucidam mutuamente, um mundo de posicionamentos semanticos conjugados do homem. (BAKHTIN, 1997, p. 97).

A ausencia de voz marginal possibilita que as polemicas sejam elucidadas por meio de pontos de vista integrais em debate vigoroso, de forma que nao predomina a consciencia de uma ou outra personagem, nem o narrador procura se impor. Uma consciencia esta aberta a interacao de outras, caracterizando a inconclusibilidade como um aspecto relevante do discurso polifonico.

Consideracoes finais

Ao focarmos textos de autores geografica e temporalmente distantes, confirmamos que e totalmente possivel um dialogo entre eles, mesmo nao sendo um processo intencional. Ha pontos nos quais eles se tangenciam, instituindo convergencia e divergencia de sentido, como teorizado por Bakhtin (2010). No caso em estudo, percebemos que as relacoes dialogicas se estabelecem, principalmente, pelo carater satirico. Contudo, essa satira assume contornos dispares. Enquanto em Poe a satira tenciona corrigir os costumes do individuo, em Vilela denuncia o processo civilizatorio que gera homens e situacoes desumanas.

Partindo do pressuposto de que a satira consiste em "[...] uma alteracao ridicula do modelo [...]" (PIRANDELLO, 1996, p. 78), deduzimos que os autores a levam ao seu grau maximo ao por em evidencia a sociedade e ridiculariza-la. Em ambos os textos, a ridicularizacao acontece associada a expressao do horror, na medida em que ha um exagero do modelo, um exagero do exagero. Por isso, para atingir esse efeito, e inevitavel que se forcem os meios expressivos atraves da adulteracao dos valores do prototipo reproduzido.

Ao cotejarmos um texto moderno, escrito ha cerca de duzentos anos nos EUA por Edgar Allan Poe, com um texto contemporaneo, produzido no Brasil, no inicio do terceiro milenio, depreendemos que Luiz Vilela subverte o modelo canonico da contistica literaria, produzindo uma nova estetica. Tendo em mente que "[...] o enunciado nao esta ligado apenas aos elos precedentes, mas tambem aos subsequentes da comunicacao discursiva [...]" (BAKHTIN, 2010, p. 301), podemos inferir que o enunciado de Vilela trava um dialogo proficuo com o de Poe e pressupoe atitudes responsivas dos enunciados subsequentes, gerando ressonancias dialogicas.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v37i3.24827

Referencias

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Received on September 1, 2014.

Accepted on May 12, 2015.

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Londina da Cunha Pereira de Almeida [1] *, Maria da Luz Alves Pereira [2] e Rauer Ribeiro Rodrigues [3]

[1] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rua da Consolacao, 930, 01302-907, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil. [2] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rua da Consolacao, 930, 01302-907, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil. [3] Programa de Pos-graduacao em Letras, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus I, Avenida Cap. Olinto Mancini, 1662, 79603-011, Tres Lagoas, Mato Groso do Sul, Brasil. *Autor para correspondencia. E-mail: londinacpa@hotmail.com

(1) As aspas simples foram usadas pelo autor do conto A Cabeca (2002) como recurso de marcacao de dialogo.
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