Conversa com Helder Macedo com a participacao de Laura Cavalcanti Padilha (07/06/2013).
Souza, Adalberto de Oliveira ; Silva, Marisa Correa ; Teles, Marco Antonio Hruschka 等
Transcricao
ADALBERTO: Queria agradecer a presenca de voces aqui em Maringa,
acho interessante isso porque poucas pessoas puderam ter a honra de
ouvi-los, entao atraves desta entrevista espero que possamos alcancar
mais pessoas. Vamos comecar, separei aqui alguma coisa para perguntar.
Conhecendo os dados biograficos do senhor: nascimento na Africa do Sul,
viveu em outros lugares do mundo, quer dizer, num entre-lugar, morando
em Londres, escrevendo em portugues, haveria algo que o senhor gostaria
de falar sobre si mesmo?
HELDER MACEDO: Isso e uma pergunta? A resposta e impossivel.
Ficamos aqui mais uma semana ou entao ...
HELDER MACEDO: Sintetizando: estou em Maringa e estou gostando.
Viajo, tenho viajado, nasci em Krugersdorp na Africa do Sul, mas
basicamente seria mocambicano, porque meu pai estava trabalhando para o
governo de Mocambique naquela altura, estava em viagem diplomatica pela
Africa do Sul. A minha ligacao com a Africa do Sul e meramente
acidental, passei minha infancia em Mocambique, vivi na Zambezia,
finalmente em Lourenco Marques, como era chamada entao. Fui para
Portugal com 12 anos, estive em Portugal com algumas interrupcoes, ia a
Guine, Sao Tome, durante ferias ate os 22 anos. Nessa altura tive que
sair de Portugal por razoes politicas, estava cursando Direito, e a
partir dai moro em Londres. Desde a Revolucao de 25 de abril posso ir a
Portugal com facilidade, com frequencia, mantendo esse contato. Escrevo
em lingua portuguesa sempre, essa e a minha opcao, publico em Portugal e
no Brasil. A minha carreira universitaria foi inglesa, em Londres, no
King's College onde me aposentei e me tornei emerito ha 5, 6 anos,
por ai, e continuo morando em Londres, indo a Portugal e vindo ao Brasil
com uma certa frequencia.
ADALBERTO: Muito bem, a sua atividade profissional influenciou na
sua criacao artistica?
HELDER MACEDO: Qual a minha atividade profissional, escrever ou
ensinar?
ADALBERTO : Eu digo de professor, em primeiro lugar.
HELDER MACEDO: Eu sou um professor tardio, tinha um passado e
espero ter um futuro antes e depois do meu tempo universitario. Eu ja
sou velho, tive 33 anos de atividade universitaria, mas antes disso ja
tinha publicado varios livros e continuo publicando depois; de algum
modo, a minha atividade universitaria e um sucedaneo da minha atividade
de escritor e nao o contrario. Eu sou um escritor que ensina e nao um
professor que escreve.
ADALBERTO: Na sua opiniao, para que serve a literatura no mundo de
hoje ou no mundo de antigamente?
HELDER MACEDO: Se vais perguntar no mundo de hoje ou no mundo de
antanho, e ja agora pode acrescentar o mundo futuro, porque serve sempre
para a mesma coisa: para desinquietar. Uma literatura que nao agrida, no
melhor sentido do termo, que nao tire as pessoas da sua zona de
conforto, nao vale a pena faze-la. So vale a pena escrever quando se tem
alguma coisa a dizer, que daquela maneira nao foi dita e tentar viver de
um modo que va contra o status quo, va contra a rotina, va contra a
aquiescencia e a banalidade da vida. Nao e que a pessoa tenha que viver
coisas excepcionais, mas tem que viver as coisas de modo que nao seja
facilmente dito por outras pessoas. Porque se alguem diz
'nos', entao nao vale a pena dizer, e e melhor ficarmos
sossegados, ouvindo musica, fumando um cigarrinho, indo a praia,
qualquer coisa simpatica desse genero.
ADALBERTO: A poesia o acompanhou sempre, mesmo que o senhor tenha
se dedicado aos ensaios e, com mais frequencia, a narrativa, eu gostaria
que o senhor me falasse sobre isso, se for possivel.
HELDER MACEDO: Comecei por escrever poesia, lembro-me de ter feito
meus primeiros versos quando tinha 11 anos, por ai, escrevia meus
versozinhos nos intervalos de jogar futebol. Alias, minha carreira
deveria ter sido futebolistica, que estaria muito mais rico do que estou
agora, mas olha, nao deu, pronto. Ainda joguei, quando era guri, com o
grande Euzebio, o Coluna, com essa gente. Mas sempre escrevi poesia, e
nao que a minha ficcao seja uma ficcao poetica, longe disso, nao e de
forma nenhuma, porque cada forma literaria tem o seu metodo proprio, mas
o tipo de escrita que eu faco e uma escrita que tem a ver com a
capacidade de sintese que, geralmente, a poesia tem mais do que
narrativa. Minha atividade ensaistica comecou muito antes de pensar em
ir para a Universidade. Interessei-me a entender outros escritores,
estava eu ainda no ensino secundario e lembro-me de ter escrito sobre
Cesario Verde, que acabou por ser, duas decadas depois, ou mais ainda, a
minha tese de doutorado. Todos nos temos as nossas afinidades eletivas
em relacao a outros escritores. Eu procurei sempre, na medida do
possivel, dar aula sobre escritores de quem gosto, escrever sobre
escritores de quem gosto. E uma forma de convivio, de troca, de
recebimento de licoes que estao contidas nas coisas ... Poesia,
narrativa, critica, tudo vem da mesma pessoa e e uma maneira de lidar
com o mundo. Alias, sao tres maneiras diferentes de lidar com o mundo, o
que nao se pode e confundir: um critico literario que faca ensaios
poeticos ou um ficcionista que faca ficcoes ensaisticas sao uns chatos e
nao valem a pena, e ai a gente desiste. Cada coisa tem o seu metodo
proprio.
ADALBERTO: Entao o senhor poderia dizer como se processa a sua
criacao, escreve diariamente, uma vez por semana, ha alguma coisa assim,
algum metodo?
HELDER MACEDO: Nao, de forma nenhuma. Passo dias sem escrever, nao
sou escritor que anda com um bloco, anotando, de forma nenhuma.
Transformo dentro da minha cabeca as coisas, como ai dizem, tudo e
baseado na nossa experiencia, na nossa observacao, no nosso contato com
os outros. Mas nao sou o escritor que escreve a sua meia hora, ou quatro
horas, ou o que for, diariamente. Agora, quando entro em uma obra, seja
ela poesia ou ficcao, ou ate ensaistica, depois de ter entrado, ai
torno-me obsessivo, ai posso me levantar as 4 da manha, pensando em uma
palavra, ou em uma frase. Mas depois prossigo ouvindo musica, que e
muito mais agradavel do que estar ali agarrado ao computador.
ADALBERTO: Como o senhor ve a recepcao da literatura em lingua
portuguesa no exterior?
HELDER MACEDO: Varia muito, de um modo geral nao suficientemente
bem. As nossas literaturas nao sao suficientemente prestigiadas e
conhecidas nos mercados editoriais dominantes, que sao os de lingua
inglesa. Hoje em dia, a lingua inglesa tornou-se de tal maneira
prevalecente que quem nao esteja a ser publicado no mercado
anglo-saxonico, na Inglaterra ou nos Estados Unidos etc. tem uma
carreira precaria. Em Franca, dao uma certa atencao a literatura
portuguesa mas, com algumas excecoes, e mais ou menos marginalizada. No
caso da lingua inglesa, Fernando Pessoa entrou muitissimo, nao so
atraves de varias traducoes da poesia, mas sobretudo ultimamente, pelo
Livro do Desassossego, que foi um livro que pegou extraordinariamente em
termos de perspeccao. Mas o escritor portugues de longe mais conhecido e
mais apreciado e o Jose Saramago.
MARCO: Houve algum acontecimento marcante na sua vida a ponto de
influenciar diretamente a sua obra?
HELDER MACEDO: Tudo influencia, como eu disse ha pouco, eu comecei
a escrever com 11, 12 anos. Portanto, escrever, para mim, era uma forma
natural de expressao: eu jogava futebol, escrevia, tomava sorvete, quer
dizer, atividades normais. E evidente que fui influenciado por varias
coisas, mas tenho uma para dizer: quando sai de Portugal, tentei de
algum modo escrever em termos de liberdade. Escrevi fundamentalmente
poesia, escrevi ficcao, que pude escrever como homem livre que estava me
sentindo, como um jovem livre de vinte e poucos anos, mas que nao podia
ser publicado em Portugal, porque se fosse publicado em Portugal era
banido e quem seriam perseguidos eram os editores, logo nao era
possivel. Isso me fez adiar a escrita em prosa. Voltei a escrever prosa
muito tardiamente, mas nao foi a minha primeira obra em prosa. Ja tinha
escrito um romance e uma duzia de contos, que nao puderam ser publicados
em Portugal. Quando houve uma mudanca politica em Portugal e podia ser
publicado, ja nao queria publicar, porque era juvenilia. Tinha os
defeitos de suas qualidades, e as qualidades dos seus defeitos, e a
pessoa nao pode voltar ao passado, ja nao escreveria aquilo, escrevi
outra coisa. Portanto, nesse sentido, minhas circunstancias biograficas
e evidente que me influenciaram. Outro lado tambem implicito na sua
pergunta: pode estar ai a ideia de que estar eu a morar ha mais de meio
seculo na Inglaterra, tendo tido uma carreira universitaria de
consideravel sucesso, dirigi instituicoes universitarias britanicas, nao
por ser portugues, ou lusofono, mas por ser um catedratico de uma
universidade inglesa, por que razao nunca escrevi em ingles quando
evidentemente certos mercados editoriais em ingles sao muito mais
faceis? Simplesmente porque a minha identidade esta em escrever em
portugues, quer dizer: nao escrevo para ter carreira, escrevo para dizer
coisas que so na minha lingua materna consigo dizer. Portanto, o
marcante para mim foi a propria pratica literaria. Exemplos: certamente
ter sido influenciado pela cultura anglo-saxonica, mas antes disso tinha
sido influenciado pela cultura francesa. Como qualquer portugues da
minha geracao, a minha segunda lingua e o frances. Atualmente e o ingles
... enfim, as culturas chamadas perifericas tem uma grande vantagem
sobre as culturas chamadas centrais, nos somos capazes de ler a eles, e
eles nao sao capazes de ler a nos. E ai a gente ganha.
ADALBERTO: Portugal nao foi pioneiro em valorizar a Africa, no
ambito da literatura e da cultura?
HELDER MACEDO: Nao, os portugueses se curvaram muito tardiamente
para as culturas, depende do angulo. Por um lado, como disse aqui em
Maringa, Camoes foi o primeiro poeta europeu que teve a experiencia
direta de outras culturas e a manifestou nos estamos a falar em termos
recentes. Portugal culturalmente era um pais isolado. Um pais cujas
elites recebiam influencia de Franca. Eca de Queiroz dizia que a
civilizacao nos chega de caixotes vindos do Occident Express, que e
comprada de segunda mao e fica-nos curta nas mangas. Isso por um lado. E
portanto, o olhar do intelectual portugues--estou falando do seculo 20,
a partir de 26, portanto num tempo de salazarismo em diante--os
intelectuais portugueses olhavam para a Franca e para a cultura francesa
e queriam ser europeus essencialmente. E havia um profundo
desconhecimento das colonias portuguesas em Africa. Os intelectuais se
recusavam, nao estavam interessados. O que acontecesse culturalmente em
Mocambique ou Angola era geralmente ignorado em Portugal. Duas obras,
que escritores portugueses sao pioneiros, em relacao a Africa: Castro
Soromenho, que escreveu Terra morta, publicado em 1949, e Jose Augusto
Franca, que as pessoas esquecem muitas vezes. Os portugueses descobriram
a Africa com a guerra, e descobriram o amor pela Africa depois da guerra
acabada. Ha muitos mais intelectuais portugueses interessados agora em
Angola e Mocambique do que estavam quando era colonia. A ditadura e o
que torna as mentalidades provincianas e fechadas. E foi isso que
aconteceu em Portugal. Essa abertura para outras culturas que esta
havendo agora em Portugal e fenomeno recente, fenomeno puramente devido
a democracia.
ADALBERTO: E o que o senhor poderia dizer sobre as relacoes
luso-brasileiras? Sao cordiais, ha um entrelacamento entre as duas
literaturas?
HELDER MACEDO: Eu acho que ha, basicamente, um grande amor, e com
os grandes amores ha equivocos, de varia ordem, que a minha geracao--eu
estou a falar do meio dos anos 50 do seculo passado--ha bastante tempo,
a literatura brasileira era fundamental para os portugueses. Nos,
jovens, em meados dos anos 50, tinhamos descoberto Fernando Pessoa, como
voce sabe. A obra foi sistematicamente publicada depois dos anos 40,
depois dos anos 45, tardia. Fernando Pessoa e sem duvida fundamental, e
o Carlos Drummond de Andrade, e o Manoel Bandeira, nos sabiamos de cor o
Drummond. A poesia brasileira era de uma importancia fundamental.
Lembro-me de um ensaio em que digo que o segundo modernismo portugues
foi Carlos Drummond de Andrade, porque foi o homem que simultaneamente
era capaz de ser experimental na poesia, tendo a heranca do modernismo
da geracao do Pessoa, e politico, o que era extremamente importante,
reivindicativo, politico, falava do medo, e nos nao conheciamos o medo.
Celebrava Stalingrado, e nos, certo ou erradamente, como estavamos sendo
reprimidos por fascistas, idealizavamos os comunistas tambem. Quer
dizer, era portanto, em termos literarios e termos politicos. O
Graciliano era lido como um de nos, Angustia e um livro que se podia
passar em Lisboa. Jorge Amado, carismatico, em Portugal e nas colonias.
O mocambicano reconhecia-se no romance de Jorge Amado. E extremamente
importante a literatura brasileira para a formacao dos portugueses. E a
partir do inicio das guerras coloniais que houve uma enfase diferente da
parte dos intelectuais portugueses, e, sobretudo, e a partir da ditadura
no Brasil. E a partir de 61 em Portugal, 64 aqui, com uma grande
possibilidade, que a literatura portuguesa deixou de estar tao ligada a
literatura brasileira, os intelectuais portugueses deixaram de estar tao
atentos a literatura brasileira. Por varias razoes, entre as quais,
voces aqui com a censura e com a ditadura, houve um empobrecimento da
literatura brasileira. Nao ha duvida que houve. A melhor poesia passou
para a cancao. Isso eu digo: a coisa da cancao manteve-se. Mas deixou de
haver um transito da literatura brasileira para a portuguesa, porque
houve uma bifurcacao de interesse. No entanto, uma coisa que noto e que
nas universidades brasileiras dao muito mais atencao a literatura
portuguesa do que nas universidades portuguesas dao atencao a literatura
brasileira. Voces nisso sao muito mais receptivos, muito mais generosos,
aqui e frequente em todas as universidades, um autor portugues que tenha
publicado um, dois, tres livros, dar origem a uma dissertacao de
mestrado ou tese de doutorado, coisa que nao aconteceria com um aluno em
Portugal. Em Portugal, exceto por acidentes pessoais, geralmente
desconhecem o fundamento da literatura brasileira. Esta melhorando. Ha
um intercambio maior entre portugueses e brasileiros, ha mais
portugueses no Brasil do que brasileiros em Portugal--estamos falando de
escritores em todo caso--ha um certo intercambio maior, mas nao o
suficiente. O que e exatamente por politicas editoriais, quer dizer, eu
nunca entendi muito bem porque diabo de razao nao ha acordo entre as
editoras para publicarem simultaneamente em Lisboa e Sao Paulo. Em
termos excepcionais, o Saramago publicava em simultaneo e eu tive sorte
de ter um editor permanente em Portugal e ter tido, ate esse ultimo
livro que escrevi, a Record, e a partir de agora mudei para a Rocco,
excelentes editoras, mas sao poucos os escritores portugueses que tem um
editor fixo no Brasil. E o preco de um livro portugues no Brasil e
ridiculo, e carissimo. Em vez de estarem a perder tempo com festas de
ministros, se usassem o dinheiro para subsidiar edicoes e torna-las
acessiveis, teriam uma politica cultural muitissimo mais frutuosa em
termos de relacoes culturais e, portanto, politicas tambem, entre os
dois paises.
ADALBERTO: Voltando a aula inaugural sobre Camoes, o senhor da uma
nova identificacao a Camoes, um outro olhar, um novo olhar. E em seguida
na palestra da professora Laura Cavalcanti Padilha, o senhor falou sobre
canone, o senhor rechacou o canone dizendo que se tem que fugir
totalmente dele. Como o senhor explica a escolha do grande canonico da
lingua portuguesa, para fazer essa conferencia? O senhor acentuou a
importancia de Camoes, usou o canone. E o senhor depois disso sugere que
o canone tem que ser banido ou desconfiar-se dele.
HELDER MACEDO: Nao, nao disse que o canone tem que ser banido, o
canone tem que ser permanentemente revisto, o que e inteiramente
diferente. Se voce quiser, em relacao ao canone, nao sou nem trotkista,
nem stalinista: revolucao permanente, deve ser revisto sempre. E na sua
pergunta esta a resposta que lhe posso dar. Escolhi o Camoes que puseram
no canone por razoes diferentes, se e que nao opostas, aquelas pelas
quais o puseram, ou seja, o Camoes que me interessa nao e o canonico. O
Camoes que os "arrumadores das aulas", os criticos literarios
que fazem o canone colocaram em cima de uma estatua, e ao faze-lo,
castraram-no. No entanto, a mim interessa o Camoes vivo, um Camoes que
fala comigo, diz coisas a todas as geracoes de maneira diferente. Nao e
em respeito ao canone, pelo contrario, e em respeito ao Camoes e a
diversidade que o Camoes tem, e se quiseres, e desrespeito aos fazedores
de canones. Agora, nao vou deixar que os neutralizadores de Camoes me
tirem o Camoes, porque o Camoes e mais meu do que deles; porque o Camoes
sempre se renovou e eles nao se renovam. Dito isso, o canone tem que ser
alargado consoante os tempos, as prioridades, sucessivamente. Ha uns que
vao ficando sempre. Na lingua portuguesa, Camoes, Bernadim Ribeiro, as
cantigas de amigo, Fernao Lopes, ha um grande time, uma grande linha. No
caso do Brasil, sem duvida, o maior romancista da lingua portuguesa do
seculo XIX, Machado de Assis, depois a gente vai procurar ver outra
gente que exista. Quando estudei, Florbela Espanca era considerada em
uma poetisa meio louca. Foi gracas ao Jose Regio que comecou uma certa
reabilitacao; devido ao feminismo, a valorizacao da mulher, e que as
pessoas notam muito mais a grandeza extraordinaria da sua poesia. Ela
tornou-se canonica e no entanto nao era. O mesmo certamente estara
acontecendo com o tempo as literaturas africanas, ha escritores
africanos que estao entrando no canone, pela qualidade literaria e nao
pelo fato de serem africanos. Quer dizer, e uma festa movel.
ADALBERTO: E os trabalhos criticos que fizeram sobre o senhor,
excetuando o da Professora Marisa, ha algum que o impressionou muito,
algum trabalho de algum critico que ...
HELDER MACEDO: Meu caro, tenho tido muita sorte, os melhores
estudos sobre a minha obra tem sido feitos no Brasil. Logo apos a
publicacao de Partes de Africa em Portugal, saiu na Unicamp a Revista
Remate de Males, na qual havia dois ensaios sobre o meu romance, de modo
que tive esse grande privilegio. Posso enumerar nomes: Laura Cavalcanti
Padilha escreveu sobre minhas coisas de forma extremamente iluminadora.
Vilma Areas, que era professora na Unicamp, tambem. Tereza Cristina
Cerdeira tornou-me o seu segundo autor. Ela escreve fundamentalmente
sobre Saramago e passou a escrever muitissimo sobre mim. Maria Lucia Dal
Farra, grande especialista em Florbela Espanca, tem escrito sobre mim,
Regina Zilberman fez resenhas sobre as minhas coisas, Jane Tutikian em
Porto Alegre, quer dizer, eu tenho tido um grande privilegio, sobretudo
na critica academica, na critica universitaria. Um numero de mestrados e
doutorados sobre obras minhas, so num pais como o Brasil poderia
acontecer, ha mais de 100, por ai, quer dizer ... Muitas delas pessimas,
a maior parte assimassim e, de vez em quando, uma duzia ou coisa que o
valha, notaveis, brilhantes, como sempre acontece nas coisas academicas.
A Marisa fez a primeira tese de doutorado sobre a minha obra no Brasil,
quer dizer que surgiram estudos de colegas, desde sempre, universitarios
e ela era doutoranda a altura e fez a tese. Em Portugal a minha obra e
apreciada, nao e uma obra popular no sentido de ser best seller, mas
best reading, e este ultimo romance teve uma visibilidade e uma
repercussao ainda maiores, bastante maiores do que os outros livros,
quer dizer, fotos na capa de varias revistas, algumas entrevistas ...
mas eu nao sou um escritor, nem em termos do que se produz no Brasil,
nem em termos dos que se produz em Portugal, nem--ja agora arrogante em
todos os niveis--do que e produzido na Inglaterra ou em Franca. Eu nao
simpatizo com ninguem, escrevo a minha maneira. E ha quem entenda o que
faco, ha quem goste do que faco, mas a minha escrita nao e julgada pela
moda, nem e contra a moda, e outra coisa. Nao sou de dificil leitura, ou
seja, meu vocabulario nao e dificil. Mas nao sou um escritor que
necessariamente transporte o leitor distraido.
ADALBERTO: Muito bem, agora a Professora Laura teria alguma
pergunta a fazer ao Professor Helder?
HELDER MACEDO: Escritor Helder eu aceito, nao professor.
ADALBERTO: Ha alguma pergunta?
LAURA: Eu penso que essa entrevista cobriu aquilo que e necessario
que nos conhecamos mais sobre o Helder Macedo, que aqui no Brasil, em
termos de recepcao, e realmente um dos autores, hoje, mais estudados.
Mas e claro que sim, como ele diz, sao 100 dissertacoes, sao 100 teses,
esta falando em dissertacoes e teses, mas sao os artigos, sao os
ensaios, as comunicacoes em congressos. A unica coisa que talvez eu
perguntasse ao Helder e como e que voce hoje ve a sua geracao, a geracao
dos anos 50, que eu chamaria de uma geracao meio apertada. Como e que
voce ve essa sua geracao, sua participacao como sujeito? Como sujeito de
escrita tudo bem, mas como sujeito politico como e que voce viu seu
grupo, que nos chamamos de Grupo do Gelo?
HELDER MACEDO: Curiosamente, e muito interessante, logo voce fazer
essa pergunta, porque esta a haver agora, de momento, em Portugal, um
grande interesse de redescoberta dessa geracao. Porque foi gente que se
juntou mais ou menos por acaso, nunca se e fora de moda em Lisboa,
porque os pintores conseguiam alugar umas aguas furtadas, onde tinham um
vago atelie, uns se juntaram, alguns nao eram ainda nem pintores nem
poetas: aspirantes a pintores e aspirantes a poetas. O que descobrimos
em meados dos anos 50, 55. O que nos tinhamos em comum? Era uma profunda
recusa do status quo. Nos tinhamos, nessa altura, sei la, 18, 19 anos
por ai. Isto dez anos depois de ter terminado a guerra, de todas as
expectativas que havia em Portugal de democratizacao terem sido
frustradas, nos eramos uma geracao traida, uma geracao a quem foi negada
a liberdade. Ao mesmo tempo, e claro que eramos privilegiados, sabiamos
ler, sabiamos escrever, nao morriamos a fome, embora alguns convergiram
para esse espaco--ja com 18, 19 anos tivessemos passado por cadeias
politicas--em todo caso, liamos em lingua estrangeira e, quando
descobrimos, todos nos, que a unica coisa que tinhamos em comum era a
capacidade de dizer 'nao', de recusar ... nao sabiamos o que
queriamos ser, sabiamos que nao queriamos ser aquilo que nos queriam
obrigar a ser. Eu nao queria ser um aluno da faculdade de Direito e um
futuro ministro, que estava--como foi dito pelo meu professor Marcelo
Caetano--que estava destinado a ser. O Herberto Helder nao queria ser
proprietario madeirense, ou la o que estava reservado para ele. Todos
nos passavamos pelas universidades, para recusar e, sobretudo
recusavamos a politica, os costumes, as atitudes anti-homossexuais que
havia, desde sempre, em Portugal. Nao e por acaso que o Mario Cesariny,
bem mais velho do que nos, buscou refugio entre nos, entre os jovens do
Cafe Gelo. Mario Cesariny, que era autentico e possivelmente o melhor
poeta vivo portugues da altura, como acontecia de ser homossexual,
extremamente discreto- e que nao fosse era la com ele--da maneira como
era, ele tinha que semanalmente apresentar-se na policia para dizer que
estava tudo bem. Nos sabiamos o que nao queriamos, era a atitude da
recusa. Ha um preco ha pagar, por que varias das pessoas que estavam por
faze-lo, que se reuniam nesse cafe--que chamava Gelo porque, quando foi
na altura da fundacao, no tempo do Rei Joao Carlos, ia um bloco de gelo
nas serras, e era a primeira bebida refrigerada que serviam em Lisboa. O
que e um negocio meio bizarro, porque para levarem blocos de gelo tinha
de ser no inverno, quando nao e necessario refrigeracao, mas enfim. Mas
de qualquer maneira, viviamos de noite, e nao de dia. Se tinhamos algum
medo de fazer alguma coisa, faziamos, recusavamos todas as politicas
quaisquer que elas fossem. Alguns de nos estivemos envolvidos em
tentativas revolucionarias, era uma geracao suicida em alguns aspectos.
MARCO: O senhor foi preso, nao foi?
HELDER MACEDO: Nada. Isso nao e serio, eu sai em tempo de nao ser
... Houve quem fosse preso, eu sai de Portugal bem a tempo de nao ser
preso, nao tenho esses heroismos. Tinha loucura, o que e inteiramente
diferente. Grandes talentos, gente de extraordinario talento foi
destruida, alguem que poderia estar de par com o Herberto Helder, um dos
grandes poetas portugueses, Manuel de Castro, morreu com trinta e poucos
anos, alcoolizado, com o pancreas calcificado. Alguem que poderia ter
sido um dos grandes pintores, Joao Rodrigues, atirou-se pelas janela,
matou-se. O Jose Escada, que ainda assim deixou uma obra muito notavel,
fez a sua evolucao, (era o unico catolico praticante que estava conosco)
para o diabolismo, e acabou sendo destruido, descobriu-se tardiamente
homossexual, mas o desejo destrutivo e autodestrutivo, terminou por
leva-lo a se destruir. O poeta Jose Sabag, um talento perfeitamente
extraordinario, publicou pequenas coletaneas, e as queimou. Esse, alias,
gostava de se suicidar uma vez por semana para nao ter morrido dessa
vez. Ate que um dia que nao se suicidou e morreu, pronto. Sabe, e uma
geracao que nao se interpretava como uma geracao de utopia. Em um texto
que escrevi recentemente, porque estou a redescobrir essa geracao, falei
na utopia da negacao, ou seja, como se fosse possivel negar, recusar,
nos recusavamos sim senhor, houve uma mortandade enorme, uma destruicao
de tudo isso. Atualmente, mais perto da atividade literaria, ha dois
sobreviventes: Herberto Helder, que esta fechado em sua casa em Cascais,
nao ve ninguem, nao recebe ninguem, e eu, que moro em Londres.
ADALBERTO: E a Professora Marisa, tem alguma pergunta que gostaria
de fazer neste momento?
MARISA: Projetos para um proximo romance? Muitos?
HELDER MACEDO: Voce sabe que eu so comeco a pensar em um romance
tempos depois de ter terminado o ultimo. Embora, claramente, seja o
mesmo autor que esta escrevendo um livro, nao penso na atividade futura,
ao contrario dos escritores que, quando estao terminando um romance, ja
pensam em outro. Eu nunca sei, ate por que nao quero estar sempre a
escrever o mesmo livro. Acho que o momento psicologico que eu me sinto
livre para escrever outro romance e depois de sair a edicao brasileira,
porque sai a portuguesa, depois de uns meses depois sai a edicao
brasileira e ai pronto, o assunto esta arrumado, e posso pensar na
escrita de qualquer outra coisa.
MARISA: O senhor sabe que eu e a Professora Laura Cavalcanti
Padilha concordamos que esse novo romance, Tao longo amor, tao curta a
vida representa um marco na sua carreira de romancista. E um romance, se
possivel for, ainda mais extraordinario do que os que o precederam, e
assim, como e que o senhor ve sua carreira de romancista?
HELDER MACEDO: Nao vejo, Marisa, eu vou escrevendo, nunca pensei em
termos de carreira, alias, e muito parte dessa atitude da minha Geracao
do Gelo, a ideia de carreira e uma coisa que me repugnava. Vamos
escrevendo porque sim, eu nao vou aos extremos do querido amigo Herberto
Helder que, nao vivendo com riqueza, alias com dificuldades, quando lhe
deram um grande premio nacional, O Premio Pessoa, com o qual teria com o
que viver bem largos anos, recusou. Recusou por motivos que eu nao sei,
e a minha reacao para o Herberto foi dizer "pois e, levas premios
demasiadamente a serio". Recusar e levar a serio, mas cada um tem a
sua maneira de defender. Aquilo que eu me disponho socialmente,
pessoalmente, profissionalmente no sentido de professor universitario,
ao mundo, nao e aquilo que me torna escritor. Sao compartimentos
separados, de modo que a ideia de carreira nao surgiu. Escrevo por
necessidade interna. Olha, poupo dinheiro em psiquiatras, em hospitais,
em mortes, ja podia ter morrido varias vezes, e a tentar fazer sentido,
tanto quanto consigo fazer, dum universo que nao faz o menor sentido,
quer dizer, cada livro e um projeto de organizacao do caos. Se voce acha
que estou organizando melhor que os outros fico contente, mas o autor
tambem nao pode ter palpite nessas coisas, porque acha sempre que o
ultimo livro e aquele que fica mais presente. Nao sei se e melhor ou
pior ...
MARISA: Eu nao diria melhor, diria que ele e um marco.
HELDER MACEDO: Isso, escreva voce sobre isso, querida.
LAURA: Eu perguntaria a voce se, por algum motivo, voce tivesse que
escolher dos livros todos que voce escreveu um para levar para uma ilha,
qual seria?
HELDER MACEDO: Nao levaria o meu livro.
LAURA: Nao levaria?
HELDER MACEDO: Levaria o Dom Casmurro de Machado de Assis. (risos)
LAURA: Eu jurava que ele ia fazer isso ai, eu sabia que ele ia
dizer isso, que nao ia levar nenhum dele, tinha certeza, mas jurava que
ele diria que ia levar os Lusiadas, ou o Camoes inteiro.
HELDER MACEDO: Podia levar Camoes, nao, mas e que ...
LAURA: Voce levaria Dom Casmurro?
HELDER MACEDO: Sabe por que? Por que tem gente.
MARCO: Eu gostaria de saber o que o senhor acha da ideia de um
romance seu vir a ser adaptado para o cinema?
HELDER MACEDO: Adoraria, voce arranja um cineasta que faca isso, eu
vou logo.
ADALBERTO: Professora Laura, na entrevista dada para a Revista
Crioula no. 11 da USP a senhora diz que tudo e muito diverso e que ha
muita diversidade na Africa. A diversidade e o elemento mais importante
no tocante aos estudos das literaturas africanas?
LAURA: E, em primeiro lugar eu gostaria de saber o que voce esta
chamando de diversidade? Gostaria deixar aqui claro o que eu chamo de
diversidade. E porque ha uma tendencia a se falar, eu vim de Africa, eu
fui para a Africa, eu estudo literatura africana. E o que me parece que
nao se pode fazer, ai ja nem estou pensando em termos do colonizador,
estou pensando em termos das populacoes que estavam la. Entao o que me
incomoda um pouco e que se pense, que por exemplo, Nago e a mesma coisa
que Yorubama. Dentro da etnia Nago, ha varias etnias, eu falo nos
bantos. Eu vou falar dos bantos, os portugueses percorrem a Africa, mas
e onde eles, na verdade, param. Ate talvez por causa da proximidade
daqui. Pensando em Angola, por exemplo. Ha uma tendencia de voce dizer
assim: "O povo nativo angolano", como se fosse uma coisa. Um
Kovale nao e um Konhama, e nao e tambem um Umbundo, que tambem nao e um
Quimbundo, a grande confusao, que ainda existe no continente, vamos
chamar de continente, e que nao se levou em conta o que havia ali, e se
estabeleceram fronteiras, entao separaram povos. E juntaram povos que
nao deviam se juntar. Penso nisso quando falo na diversidade. Que nos
vejamos isso como um multiplo, porque isso em termos de America, de
certa maneira aconteceu. Pense na America, nos povos americanos: o Inca
era um Maia? Nao era. Um Tupinamba era um Tupiniquim? Nao era. Agora, a
grande perversidade da colonizacao, e ai para mim nao ha diferenca, e
nao ter percebido o que esses agentes colonizadores estavam vendo. O que
diz Caminha? O que ele viu? Silviano Santiago tem razao: dentro daqueles
barcos havia tantos analfabetos, gente que nao conhecia a letra, que nao
sabia escrever, como havia na terra aqui ... Entao o que se faz?
Destruir isso, que nao venham me dizer que o grande genocidio foi o
genocidio dos judeus, na ultima guerra, nao foi. Foi o genocidio da
colonizacao, acabaram com tudo de uma forma estupida. O Manuel Rui tem
um texto que eu gosto demais, que diz: "Quando chegaste os mais
velhos contavam historias, quem estava no seu lugar? Tu podias ter
pedido para ouvir essas historias que os mais velhos contavam. Mas nao,
preferistes disparar os canhoes". Entao foi o maior genocidio da
historia, voce ja imaginou quantos indios no Brasil morreram, foram
massacrados, perderam as suas terras, perderam os seus lugares sagrados?
Estao la, e os americanos, "Enterrem o coracao na curva do
rio". Isso e uma coisa que foi considerada natural, ninguem
discutiu e acho que, na verdade, esses estudos nao ganhavam
visibilidade, foi dificil discutir isso. Nao concordo que a colonizacao
francesa nao foi igual a inglesa, foi a mesma coisa.
HELDER MACEDO: Alias os mapas da Africa foram feitos em linha reta,
foram desenhados em gabinete. O que se diz de a colonizacao portuguesa
ter sido diferente, e verdade em alguns aspectos, mas nao
necessariamente naquilo que se diz que e diferente. Por exemplo, a
colonizacao francesa sempre teve a tendencia de usar as elites locais,
tornando as elites locais francesas. O mais possivel. Pegando os filhos
ou filhas mulheres dos chefes tradicionais e mandando-os para a Franca,
onde eram educados e depois voltavam dentro do regime colonial, sendo
ainda mais franceses do que os franceses. Conheci algumas pessoas, uma
negra belissima da Costa do Marfim que so comia peras e macas mandadas
de aviao da Normandia, que na comida dos indigenas ela nao tocava, nao
gostava de manga e papaia e achava estranho que eu gostasse. A diferenca
fundamental que ha da colonizacao portuguesa e que os portugueses eram
poucos, muito poucos, e tinham um imperio vasto demais, e tiveram que
delegar entre si. Ainda ontem falavamos nisso, Angola pendia para o
Brasil, quando Salvador de Sa foi salvar Angola dos holandeses, foi por
causa do trafico de escravos para o Brasil. A capital de Mocambique era
Goa ate o seculo XVIII. Quer dizer, a pequena burguesia da Guine era
caboverdiana, os portugueses que saiam de Portugal eram poucos. E isso
tambem ajuda a explicar o grande e, para mim, o mais criminoso paradoxo
da colonizacao portuguesa, qualquer pessoa minimamente interessada na
alteridade. E terrivel o que os europeus fizeram as culturas indias, as
culturas africanas e tudo isso. No caso portugues tambem ha outra
perversidade muito grande, que e que Portugal, tendo sido um dos paises
com um imperio maior, sobretudo em relacao ao seu tamanho europeu,
desproporcionalmente grande, com colonias riquissimas, o Brasil
primeiro. Angola, se queres, foi um pais que manteve um nivel de
pauperizacao de suas populacoes europeias mais alto da Europa ocidental.
Como ocorre com Angola, o Portugal nos anos 60, ate comecar a guerra, e
a nacao mais pobre da Europa ocidental. Quem se beneficiavam eram as
oligarquias, comecavam depois riquezas nos mercados internacionais, mas
nao se filtrava em terras portuguesas. A unica possivel justificacao que
pode haver do colonialismo, que nao acredito em missionismo e em missoes
sacrificiais de ajudar os indios, ou ajudar os africanos, ou ajudar quem
quer que seja, e o pais colonizador enriquecer, o grande paradoxo, em
Portugal, e que se empobreceu.
LAURA: Entao, mas ai sera que nos nao temos que pensar tambem, essa
questao fundamental da Peninsula Iberica? E temos que tentar tambem, a
cristandade. Cristandade quer dizer, o que eles fizeram, eles pegaram la
o filho do Manicongo e transformaram o filho do Manicongo em um bicho.
Houve uma projecao para fora, como Eduardo Lourenco ja disse. Mas nao
houve a mesma mentalidade de que se poderia criar alguma coisa nova fora
daquilo, nao se criou uma classe media...
HELDER MACEDO: ... So que na Holanda criaram ...
LAURA: ... Eu ia falar isso.
HELDER MACEDO: E os holandeses foram os piores colonizadores, mas
se beneficiaram e hoje em dia sao mais respeitados do que nos somos.
Alias, remando contra a mare, totalmente, isso que eu disse sobre as
consequencias negativas do Imperio Portugues, nao sei se pode, "ah,
frescura, esta querendo dizer paradoxo"... Nao, quem disse isso
muito bem dito, muito melhor do que eu poderia dizer foi o Antero de
Quental, quando escreveu sobre essas "Causas da decadencia dos
povos peninsulares". Em Espanha houve tambem isso, que foram o
catolicismo, o imperio, e a monarquia absoluta. Os tres fatores. O
catolicismo que, como reacao a grande abertura que houve no seculo XVI,
e o sincretismo judaico cristao que estava a acontecer em Portugal muito
clara e especificamente, usaram a grande repressao inquisitorial. E um
imperio que nao serviu para criar classes medias em Portugal, nao serviu
para beneficiar a agricultura, e essas coisas todas, pelo contrario,
criou oligarquias parasitarias. Os portugueses viviam bem as custas do
ouro que chegava do Brasil, que chegava do trafico de escravos, ou do
que fosse. Mas nao filtrava, como Swift diria, ilhas flutuantes que nao
tinham nada a ver com o resto do pais. Um pais com tao pouca gente ...
Se ao menos criassem alguma coisa nesses paises. Em Portugal tambem, de
maneira diferente, como ocorreu na Espanha, tambem nao criou uma classe
media, tinha campesinato e tinha aristocracia, quando a monarquia
portuguesa foi restaurada, em 1640 o pais restaurado nao tinha nada a
ver com o pais que foi anexado em 1580. Era um pais retrogrado, sem
cultura, a unica coisa que tinha era musica religiosa vagamente, sem
pintura, sem coisa nenhuma. Velasquez era meio portugues, Felipe II era
meio portugues ... provincializaram-se, e so a partir do seculo 19 houve
uma tentativa de redescoberta por parte do Garrett. Mais ou menos por ai
... E uma historia tragica, nao e?
LAURA: Eu acho que isso vai fazer essa diferenca. Voce nao se
beneficia, e ao mesmo tempo em que voce nao se beneficia, voce tambem
nao olha essas colonias como um lugar de ficar, um lugar para ficar.
Quer dizer, eu nao desculpo o que foi feito, a colonizacao la da America
do Norte, mas a verdade e que aquelas pessoas iam para ficar, era a
terra deles. Entao agora aqui, nessa terra, imagina uma terra aonde o
portugues chega, que hoje ha um ouro que ele encontrou, o ouro que se
encontrou foi uma coisa maluca. Eles nao possuiam a tecnologia de tirar
o ouro e os africanos ja tinham, ja sabiam fazer.
HELDER MACEDO: Muitos dos africanos aqui sabiam ler e escrever, e
os patroes e os donos nao sabiam.
LAURA: Nao sabiam. Quer dizer, entao nao houve aquela historia
assim: "eu estou tao entusiasmado com o que eu criei, foi tao
grande o que eu criei", e foi. Nao nos esquecamos disso, o que o
portugues fez foi igual a ida do homem para a lua. Uma loucura isso, nos
nao podemos tirar isso. Eles chegaram a lugares ... Camoes esta certo,
"Nunca dantes navegados". Nao entendiam, a meu ver, que havia
um povo, que havia gente naquela terra, que poderia se beneficiar disso.
HELDER MACEDO: E e diferente tambem, o Camoes aponta isso, quando
diz para o rei "Olha que ha essa gente que tu ignoras, que e quem
esta fazendo as coisas".
LAURA: Exatamente.
HELDER MACEDO: "nao sao as pessoas que estao no paco em
Lisboa, nao es tu o rei, sao esses anonimos, e tu so deves ser rei dessa
gente e nao dos outros" ...
ADALBERTO: Fiquei impressionado tambem quando a senhora disse que
foi aluna de Manoel Bandeira.
LAURA: O que eu disse ontem foi assim: quando a minha geracao, que
chega na segunda metade dos anos 50, o Bandeira era o catedratico, mas
ja estava se aposentando. Ele morava quase na frente da faculdade, no
Beco, e nos moravamos do outro lado da rua. No centro do Rio de Janeiro,
onde e hoje a Avenida Antonio Carlos, por que o predio que nos
ocupavamos tinha sido embaixada da Italia, hoje e o consulado da Italia.
Entao o Bandeira escolhe uma das alunas dele, a Bela Josef. Ele nao
deixa a universidade, ele esta la. E isso que nos possibilitou que ele
chegasse ate nos por artes e manhas do nosso professor de literatura
brasileira, o Alceu Amoroso Lima, entao nos tivemos esse contato. E o
Bandeira, de certa maneira, levou Nicolas Guillen (1902-1989), poeta
cubano. Nos lemos Songoro cosongo e outros poemas, sua obra mais
conhecida, nos liamos o homem negro, atraves da palavra de Guillen, ai o
Bandeira diz: "Nao, tenho um amigo o Solano Trindade, que esta
fazendo isso aqui". Foi um momento muito importante para mim. Eu
nao fui aluna dele direto, mas indiretamente, convivendo.
ADALBERTO: Ele tem um poema: Irene preta, Irene boa ...
LAURA: Irene sempre de bom humor.
ADALBERTO: Imagino Irene entrando no ceu:/Licenca, meu branco!
LAURA PADILHA CAVALCANTI: ... E Sao Pedro bonachao!.
ADALBERTO--Entra, Irene. Voce nao precisa pedir licenca ...
LAURA: E esse Entra Irene que eu acho otimo. Entra Irene, entra
Irene, voce nao precisa licenca, eu acho que Bandeira viu um Brasil
fantastico, fantastico, fantastico. Os dois, ele e o Mario de Andrade.
ADALBERTO: E o Antonio Candido?
LAURA PADILHA CAVALCANTI: Para todos nos, a nossa geracao, a
palavra do Candido foi aquele grande farol. E e claro que os alunos de
Sao Paulo se beneficiaram disso, mas nenhum de nos foi o mesmo depois de
o ler A Formacao, acho que nenhum, nenhum. Ele mudou tudo. Eu penso que
o Candido abriu portas, sabe? Ele nos fez pensar. Quando eu fazia a
minha tese de doutorado, alem do Silviano Santiago, Uma literatura nos
tropicos, que para mim e um livro fundamental, o entre lugar do discurso
latino americano, muito antes do Homi Bhabha falar do entre lugar o
Silviano ja estava falando sobre isso, o Silviano tambem e uma voz muito
antecipadora, ate pela vivencia nos Estado Unidos, a vivencia na Franca.
Ja estava quase terminando a escrita da tese, quando me chega a Educacao
pela noite, eu falei para professora Cleonice Berardinelli, minha
orientadora: "Dona Cleo, eu vou voltar, eu nao posso, eu nao vou
ficar aqui", e isso. Eu acho que ler o Candido e dizer assim:
"Ah, e isso", voce entende. Ha ainda aquele prefacio dele, da
Edicao de Raizes do Brasil de 1967 do Sergio Buarque de Hollanda: ali
esta a palavra do Candido, sempre com aquela mesma delicadeza.
MARISA: E o Candido ainda hoje ecoa. Fui aluna do Roberto Schwartz:
na minha geracao, somos netos espirituais do Antonio Candido, me
considero neta espiritual dele ... nao sei se estou a altura, mas me
considero.
ADALBERTO: Eu fui aluno tanto do Antonio Candido, na graduacao,
como na pos-graduacao ... Foi uma bencao, e do Silviano Santiago em
Paris.
LAURA: Isso e magnifico, dos dois. (risos) Entao, voce sabe que os
dois, alem de tudo, sao excelentes professores. Maravilhosos. Conheci o
Silviano quando fazia o meu mestrado porque, ao contrario de muita
gente, nunca tive pressa. E nisso acho que sou um pouquinho africana,
nao tenho pressa. Interessava-me o meu trabalho, os meus alunos das
escolas estaduais e depois as escolas experimentais. Era disso que eu
gostava, nao era da universidade, a universidade nao me dizia nada. Eu
acho que se posso dizer que fui aluna de alguem, depois de ser aluna de
Cleonice Berardinelli obviamente, fui aluna de Hamilton Teixeira, um
professor que me ensinou que era possivel mudar.
ADALBERTO: O continente africano foi marcado pela colonizacao,
assim como o continente americano. Por que essa diferenca no processo
emancipatorio?
LAURA: No caso do Brasil por exemplo conheco mais de perto a
America Latina--se apostou mais nisso aqui. Eu nao vou nunca esquecer
que nos fomos a metropole, Dom Joao veio para ca, nos fomos metropole,
nos nos esquecemos disso, nos so lembramos que somos ex-colonizados, e
fomos sim, mas a metropole saiu da Europa, veio para a America e ficou
aqui. No que fica aqui, mudou tudo. Claro que a questao dos Estados
Unidos foi outra, quer dizer, cada lugar teve a sua particularidade.
HELDER MACEDO: Mas os indios foram dizimados.
LAURA: Mas foram dizimados pela loucura de alguns.
HELDER MACEDO: Eles foram dizimados enquanto que os negros, e
portanto, os escravos foram vitimados, foram maltratados, essa coisa
toda. Mas o processo de criacao desse pais que se chama Brasil foi por
um lado, o processo das vinditas dos que vieram da Europa, e se tornaram
os imperialistas dentro desse pais. Ai entra a aristocracia e a
escravidao, quer dizer, o negro foi tao fundamental para a construcao
desse pais quanto a aristocracia que tornou isso capital do imperio. O
indio nao entra na historia, entra na poesia.
LAURA: A Africa nao estava isolada, mas a America estava.
HELDER MACEDO: Na Africa havia imperialismo negro, havia conquista
de etnias, tal como havia guerras dentro da Europa, havia os arabes,
havia trafico de escravos feitos por arabes e por africanos uns com
relacao aos outros. Quer dizer, nao foram os europeus que descobriram
isso. Usaram, usaram, desenvolveram etc.
LAURA: Voce tambem nao acha que entre os indios havia guerra? Havia
guerra.
HELDER MACEDO: E claro que havia. Pelo continente mais ao norte,
claro que haviam racas que conquistaram etnias, racas que conquistaram
outras. Havia formas diferentes, mas semelhantes de escravatura, que
alias, a escravatura nao e apenas um fenomeno colonial, os gregos
praticavam isso e nos os consideramos um modelo de democracias. As
fantasias humanistas e tal.
LAURA: Para a Europa so sobrou a Africa, so isso, praticamente,
mais nada, entao eles precisavam preservar aquilo ali a qualquer preco,
nao e? Agora claro que a questao portuguesa ja vai passar por outros
lugares. Quer dizer, eles tinham o mundo inteiro e vao perdendo, ate
pelas elites que eles proprios criaram. Repare que eu estou falando da
Africa subsaariana.
HELDER MACEDO: No norte da Africa e outro assunto.
LAURA: E outro assunto, e outra historia. Va ao Louvre, voce entra
por onde? Voce entra pelo espolio egipcio. Entao e uma coisa essa Africa
que esta abaixo do Sahel e do Saara e outra coisa aquela Africa que esta
la em cima. Pensa-se que nao havia ligacao. Havia. Claro que havia. O
quase fim do mundo, para mim, o Artur Carlos Mauricio Pestana dos
Santos, nascido em Angola de ascendencia portuguesa, conhecido pelo
pseudonimo de Pepetela vai falar disso de uma forma magnifica. Quem ja
leu O quase fim do mundo viu aquela coisa meio hollywoodiana, uma coisa
muito "acabou! Acabou o mundo!". E fica uma regiao la, aquele
centrinho da Africa, e algumas pessoas sobrevivem. Enfim, e uma historia
que vale a pena ler, elas decidem entao saber o que houve no norte, e
interessantissimo, quando chegam dentro daquilo que foi o mundo, em cima
do Saara, os templos de Karnak, ai ninguem conhece, ninguem sabe essa
historia. E eles vao chegar ate a Franca, enfim...
HELDER MACEDO: porque a gente esquece disso um bocadinho, nao so a
Europa estava sendo encurralada pelo imperio otomano, como a Africa, o
grande rival do imperialismo europeu e islamico.
LAURA: Sem brincar com Helder, mas se voce chegar a partes de
Africa, voce sai do aviao, esta todo mundo vestido a moda arabe, sabe? E
normal, as mulheres estao de cabeca tampada, os homens estao de tunica.
E eles todos param para saudar Meca, isso acontece em Mocambique.
HELDER MACEDO: No norte de Mocambique.
LAURA PADILHA CAVALCANTI: E muito complexo, muito complexo mesmo.
ADALBERTO: Ao final, qual receita voces dariam para a gente
consertar, se e que ha conserto?
LAURA: Olha, eu sou pessima, nao sei cozinhar, nao sei dar receita.
Eu nao sei fazer arroz, entao eu acho que nao ha receita. Ha que se
esperar o tempo, o Helder fala isso tao bem, Tao longo amor, tao curta a
vida, as coisas estao se repetindo de uma maneira... precisamos prestar
atencao, saber que primaveras sao essas, o que e que esta acontecendo
naquela parte do mundo, se ja nao e o comeco de uma outra coisa. Nao
podemos esquecer do numero de filhos mortos. Nao podemos achar que e uma
bobagem o que esta acontecendo agora, nessa ultima semana, na Turquia.
Quando no romance do Helder, ele faz tudo isso para que nos paremos e
pensemos. Voce tem o islamita, um personagem brasileiro, mas a origem
dele e arabe ...
HELDER MACEDO: Libanes.
LAURA: Libanes. Porque atras de tudo isso, sempre houve e sempre
havera o desejo de homens de enriquecerem mais que outros. Enquanto
houver isso, eu nao sei.
HELDER MACEDO: Nao ha receita, mas ha uma recomendacao de dialogo.
E fundamental que as pessoas conversem umas com as outras e que ninguem
queira impor pela forca a sua verdade. Respeito todas as religioes, nao
adoto nenhuma delas e odeio qualquer religiao que procure impor a sua
veracidade absoluta. Religioes que haja muitas, mas tudo respeitado. E
claro que o governo da Siria e um governo horrendo, que esta destruindo
a populacao. Mas as alternativas que se oferecem nao sao necessariamente
muito melhores. As primaveras arabes, sim senhor, e otimo que tenham
derrubado aquelas vastas ditaduras, mas se vao criar outras ditaduras,
tambem nao quero isso.
LAURA: Ja se criaram.
HELDER MACEDO: Exatamente. Se os americanos em nome da democracia e
da exportacao da democracia vao destruir civilizacoes, eu nao quero a
democracia que assim e entendida.
LAURA: Eu tambem nao.
HELDER MACEDO: Portanto, a humildade do dialogo e do reconhecimento
da alteridade, voltando a nossa conversa anterior, e nao haver donos de
ninguem.
ADALBERTO: Eu quero agradecer muitissimo o trabalho de voces, que
foi magnifico, realmente emocionante, uma honra para mim, para a Marisa
e para o Marco, e acho que nos so temos que agradecer, nao ha palavras
mais.
HELDER MACEDO: Obrigado, foi um prazer. LAURA PADILHA CAVALCANTI:
Nos e que temos que agradecer, foi um otimo momento para estarmos
juntos.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v36i1.22004
Received on September 29, 2013.
Accepted on October 10, 2013.
Adalberto de Oliveira Souza *, Marisa Correa Silva e Marco Antonio
Hruschka Teles
Universidade Estadual de Maringa, Av. Colombo, 5790, 87020-900,
Maringa, Parana, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail:
adalberto@teracom.com.br