Interpreting hegemonic themes in the electronic forro/Interpretando tematicas hegemonicas no forro eletronico.
Costa, Jean Henrique
Introducao
O fato de nao podermos demonstrar com precisao como essas coisas
funcionam naturalmente nao significa uma contraprova desse efeito, mas
apenas que ele funciona de modo imperceptivel, muito mais sutil e
refinado, sendo por isto provavelmente muito mais danoso (ADORNO, 2006,
p. 88).
O conteudo tematico dominante das musicas de forro eletronico, em
geral, utiliza-se do trinomio 'festa, amor e sexo' em suas
cancoes (TROTTA, 2008; 2009a; 2009c; 2010). No tocante a festa,
metalinguisticamente aponta-se para o proprio fenomeno musical do evento
forrozeiro, criando uma especie de propaganda dos shows e dos ambientes
criados (divulgadamente 'diferenciais'). Referente ao amor e
ao sexo, o proprio dancar 'agarradinho', as letras das cancoes
e o ambiente extremamente sensual promovido nos palcos favorecem a
paquera e a formacao de casais, potencializando diversas possibilidades
de encontros amorosos. Desta forma, novamente, segundo Trotta (2008, p.
8; 2009a, p. 109), a "[...] simbiose entre o proprio show (festa),
os desejos (sexo) e os estados afetivos do casal (amor) [...]"
constitui a tematica dominante das cancoes do forro eletronico. Nao
obstante, reforca o autor, apesar de algumas musicas reforcarem mais um
aspecto do que outro, o conjunto total do repertorio e os padroes
recorrentes terminam tornando tais categorias tematicas intercambiaveis.
Alem das letras propriamente ditas, "[...] o estribilho
malicioso e as intervencoes faladas [dos cantores e cantoras], com
risadas e expressoes coloquiais entre os versos" (LEME, 2003, p.
97) tornam ainda mais sensuais os shows e reforcam o conteudo sexual das
letras.
Certamente, o repertorio dominantemente sentimental que
caracterizou o forro dos anos 1990 permanece ainda muito forte com os
grupos de forro eletronico atuais, contudo, dividindo espaco com outros
temas, ou seja, objetos substancialmente mais urbanizados e mais ligados
aos mercados de consumo modernos. De acordo com Feitosa (2008, p. 07),
[...] sao frequentes as referencias de 'imaginarios'
construidos nos simbolos de consumo desse publico (carros, equipamentos
de som, bebidas alcoolicas), nas suas relacoes afetivas, ou no uso de
expressoes contemporaneas.
Estes objetos nao estavam ausentes nos anos 1980 e 1990, mas a
industria cultural vem reforcando-os.
Nesse sentido, o presente ensaio objetivou tecer uma analise
compreensiva das tematicas dominantes no mercado musical do forro
eletronico. Recorrendo, de forma plural, tanto a contribuicao da teoria
critica de Theodor W. Adorno quanto aos Estudos Culturais, efetivou-se o
exercicio de se perceber: a) os principais cliches e padroes tematicos
do genero; b) os esquemas de significados dessas tematicas e c) algumas
hipoteticas implicacoes referentes ao consumo, desembocando, portanto,
na possibilidade de determinadas relacoes de dominacao serem reforcadas
no (e pelo) consumo do forro eletronico.
Logo, como possibilidade estrutural de analise, e mister tornar
compreensivel saber em que medida o forro eletronico atualmente
hegemonico, essencialmente no Nordeste, serve para estabelecer e
sustentar relacoes de dominacao nos contextos sociais em que e
produzido, transmitido e recebido. Esse e o intento maior deste escrito
que, embora preliminar, ja ilustra uma primeira exploracao no campo
empirico do forro eletronico a partir da conjuncao teorica entre Theodor
Adorno e os Estudos Culturais. Trata-se essencialmente de um ensaio mais
provocativo do que substancialmente concreto do ponto de vista do rigor
empirico.
Padroes e cliches tematicos
'Abra a Mala e Solte o Som'
Em muitas letras de forro eletronico tem sido significativamente
substancial a alusao, por exemplo, aos chamativos 'paredoes de
som' em automoveis que, hoje em dia no Rio Grande do Norte, sao
marcas distintivas em muitas festas e cidades, alem de divulgados em
varias cancoes de sucesso. A listagem das musicas abaixo e prova desse
fascinio pela sub-triade 'festa, automovel e aparelhagem de
som'. Trata-se de cinco dentre muitas outras cancoes que expressam
indicios da representacao de um mercado de consumo conspicuo, conforme
denominou Thorstein Veblen (1988), isto e, um consumo que corresponde
cada vez mais, relacionalmente, a busca por status. Para ele,
"[...] nenhuma classe da sociedade, nem mesmo a mais abjetamente
pobre, abre mao da totalidade do consumo conspicuo costumeiro
[...]", pois, "[...] o consumo de bens valiosos e um
instrumento de respeitabilidade" (VEBLEN, 1988, p. 38-42). As
cancoes que deliberadamente enfocam o consumo dos 'paredoes de
som' em automoveis sao sinais muito intensos dessa tendencia
conspicua, ou seja, dessa necessidade demasiada de evidencia, justamente
em realidades na qual o capital economico e forte indutor de prestigio.
Os trechos das cinco letras abaixo exemplificam tal extase pelos
pujantes sons automotivos:
Playboy da vez: [...] To sempre com meu carro na maior animacao. So
ando com a galera porque eu sou da curticao. O som ta nas alturas, meu
som e paredao. Meu som e estourado, vou fazer tremer o chao [...]
Playzinho: [...] Mas nao tem jeito nao, eu solto o meu sonzao. Se
liga ai galera e pura curticao. Vou sair pra beber ate o amanhecer. Eu
tenho o meu estilo de badalacao ... Sou feliz assim, me chamam de
'playzim'. Meu carro e 'tunado', ta beijando o chao.
Cheio de mulher, vou pra onde eu quiser. Comecou a festa no meu paredao
[...].
Carro de playboy: [...] Sente o som, olha o 'pancadao'.
Carro de playboy e a nova sensacao. Eu to de 'role' com a
mulherada. Eu to pegando todas nao quero saber de nada. Som e DVD, toca
o que quiser. Carro de playboy ta lotado de mulher. E cabare, cabare,
cabare. Carro de playboy, ta lotado de mulher [...].
Estilo namorador: [...] Aonde eu chego, a mulherada encosta. Eu
ligo o som do paredao e a galera gosta. To badalado, to pipocado (pow!
pow!). Eu sou estilo, estilo desmantelado [...].
Liguei meu paredao: Parei meu carrao lotado de menina. Liguei meu
paredao no posto de gasolina. Botei o CD que a mulherada gosta. Que
swing e esse que essa banda toca. Que swing e esse que essa banda toca e
quando bota o cd a mulherada encosta [...](LETRAS.MUS, 2012a) (1).
Nessa representacao conspicua, o "[...] sujeito desloca a sua
afetividade das pessoas para objetos" (PEREIRA NETO et al., 2010,
p. 8). Logo, as maquinas passam a ser fortes fontes de identificacao,
exaltando os sentimentos de poder e autossuficiencia. Entrementes, o que
tem importado
[...] e a aparencia das pessoas, e nao o que elas sao. A ideia de
que tudo e um meio para um fim acaba com qualquer vestigio de coisas que
existem por si mesmas (ADORNO, 2008, p. 122).
Sincronico ao tema do 'paredao de som', e importante
realcar tambem seus artificios simbioticos, isto e, farras, conquistas
amorosas, aquisicao de bebidas alcoolicas em postos de gasolina (2),
cabares (bordeis) e, estrategicamente, a autopromocao das bandas de
forro. Esses temas, produzidos para um publico numericamente dilatado,
sao condicionados 'pelo' e condicionantes 'do'
contexto musical dominante. Assim, dentre os lamentos amorosos, a
exaltacao da virilidade (3) (expressa pelo tipico homem namorador e
festeiro), a propria valorizacao do forro como espaco distintivo de
diversao; o incentivo ao consumo de bebidas alcoolicas, a busca
incessante por acometidas sexuais e a apologia a determinados padroes de
consumo e muitas letras de forro eletronico, atualmente em sucesso,
veiculam uma concepcao de mundo que cria, ate certo ponto distante de
qualquer hedonismo, tambem certos valores e representacoes sociais.
Novamente conforme Trotta (2009a), o publico jovem
[...] tambem se identifica e frequenta com assiduidade as
apresentacoes de forro eletronico, absorvendo elementos identitarios e
construindo estrategias de pertencimento atraves dos valores,
pensamentos e perfil ideologico do forro (TROTTA, 2009a, p. 112).
Do mesmo modo,
[...] possivelmente nesses locais, o imaginario da juventude e o
trinomio festa-amor-sexo prevalecam nas estrategias de construcao de
sentido e nos fluxos de interpretacoes e de gosto musical (TROTTA,
2009a, p. 112).
Evidentemente, o fenomeno Luiz Gonzaga (figura instituidora do
baiao/forro nos anos 1940) ja nao se insere modernamente nas paisagens
forrozeiras atuais. Do velho Gonzagao basicamente homenagens lhe
restaram. O ambiente nem e mais rural, nem sofrido pela seca--alias, os
jovens nascidos e educados nas capitais e cidades medias nunca
conheceram uma 'seca'. Nesse sentido, as letras atuais
obedecem mais a uma logica de consumo moderno do que a demandas por uma
'terra' que, em si, nao e almejada e que so existe no
saudosismo. Gonzagao funciona mais como um simbolo do genero,
principalmente para certos setores populares que escutam
fundamentalmente os hits mais atuais da semana passada. Para os que
ascenderam socialmente no Nordeste, Gonzagao poderia significar muita
coisa: saudosismo, memoria, status por nao se render ao forro
eletronico, parametro de comparacao estetica etc. As possibilidades de
uso sao diversas, mas, de toda forma, nao existe em plenitude consumo de
massa do velho Lua num contexto em que todo dia diversos hits de forro
nascem e morrem pelas radios e carrinhos de Cds piratas. O forrozao
estilo 'risca a faca' e 'lapada na rachada', para
uma populacao semiformada (conceito adorniano de Halbbildung) e que tem
seu tempo livre preenchido ora pela industria cultural, ora por mais
trabalho, termina sendo hegemonico. A competicao e desigualmente
assimetrica para Luiz Gonzaga. O Assum preto gonzagueano, nesse sentido,
bateu asas e voou.
O publico gonzagueano de decadas passadas em sua plenitude mudou
fundamentalmente: muitos dos emigrantes nordestinos ja se adaptaram ao
Centro-Sul por meio de outros modus operandi e/ou ja retornaram. Os que
nunca sairam do Nordeste desejam fundamentalmente nao ter que passar
pelos espinhos da 'macambira'. Destarte, o capitalismo ja se
encarregou de alterar tal dinamica e mudar padroes de consumo. Como
afirma David Harvey: "[...] para onde quer que va o capitalismo,
seu aparato ilusorio, seus fetichismos e o seu sistema de espelhos nao
demoram a acompanha-lo" (HARVEY, 1994, p. 308).
Logo, a aridez da caatinga e os aboios dos vaqueiros foram
substituidos pela frieza do asfalto e pelo som eletronico das pistas de
danca. Evidentemente, trata-se de um mundo vivido em dissolucao que se
deve tanto a fatores da propria modernizacao, quanto as novas
sensibilidades dos atores sociais que colocam em marcha a recepcao desse
novo mundo e seus novos (e redefinidos significados).
Se nos anos 1990 muitas bandas de forro eletronico
'ainda' cantavam algumas durezas do sertao e tematicas do
cotidiano nordestino, tal como o exemplo abaixo, era porque ainda havia
uma autonecessidade de afirmacao. Com certo desprendimento, as bandas
que atualmente fazem sucesso dentre o grande publico praticamente
desampararam (das gravacoes) (4) os temas regionais. O 'suor do
meio dia', o 'gole da cabaca', o 'querosene da
cozinha' e 'a seca e a enchente' ja nao fazem mais parte
do chavao forrozeiro-eletronico do seculo XXI.
'Meio Dia'--Mastruz com Leite
Luis Fidelis e Danilo Lopes
Escorro o suor do meio dia
Assobiando a melodia
Eu tento saciar
Com o gole da cabaca
Passa a sede, mas nao passa
O jejum o jejum ha
O sol esquenta minha cabeca
Vixe Maria nao se esqueca
Tambem de esquentar
Com seus beijos minha vida
E o sobejo da comida
Que sobrou do jantar
Joao acabou-se a farinha
E o querosene da cozinha
No feijao 'gurgui' ja deu
Pai traz um vestido de chita
Que eu quero ficar bonita
Bonita que nem um mateu
Tenha paciencia minha gente
Foi a seca e a enchente
E o culpado nao sou eu. (LETRAS.MUS, 2012b).
Assim, sobretudo apos o final dos anos 1990, as cancoes passam a
falar com mais concretude--com certa dominancia--, conforme ja lembrado,
de amor, sexo e festa, e suas letras, via de regra, obedecem a tres
criterios basicos:
a) tematicas que exploram acentuadamente a diversao e as relacoes
intimo-pessoais;
b) estruturas internas de grande simplicidade conceitual,
objetivando evitar temas confusos e/ou incompreensiveis;
c) reprodutibilidade dos hits da moda: o que esta dando certo tem
que ser copiado.
Destarte, como a maioria dos generos musicais populares, o forro
possui, consequentemente, significativa padronizacao tematica de suas
cancoes, o que resulta em forte previsibilidade nas letras das cancoes e
forte estandardizacao do material sonoro: o sucesso copia o sucesso,
ciclicamente.
O fermento de uma 'sociabilidade etilica'
Para alem da condenacao de uma possivel falta de imaginacao
artistica, interessa, por conseguinte, destacar que nao se produz
determinada musica acreditando plenamente que se esta criando uma perola
de tempos idos, mas sim, um produto para agradar em um mercado
competitivo muito paradoxal: deve-se ser igual e diferente
concomitantemente. Dai que se deve agradar ao publico renovando sempre
com cancoes que "[...] evocam um mundo imaginario bem
conhecido" (HOGGART, 1973b, p. 59).
As tematicas hegemonicas no forro eletronico hoje, que tem como
nomes de grande destaque bandas como 'Avioes do Forro' e
'Garota Safada', por exemplo, apresentam exatamente esse mundo
da diversao e das investidas amorosas, regado por musicas basicamente
encaixadas na caracterizacao acima realizada: amor, sexo, festa e suas
possiveis concatenacoes para o entretenimento de massa.
Segundo Trotta e Monteiro (2008, p. 9-10),
[...] danca, festa, desilusoes amorosas, encontros
sexuais [...] e bebida formam um conjunto de
tematicas que constroem o ambiente afetivo do forro
eletronico enderecado aos jovens em festa.
Prontamente, considerando que algumas cancoes podem ser modelos
exemplares de representacao da reflexao acima, uma letra que pode
expressar a tematica da valorizacao do trinomio
'show-festabebedeira' e, por exemplo, a letra de 'Eu vou
curtir a vida' interpretada pela banda 'Garota Safada':
Eu Vou Curtir A Vida--Garota Safada
Eu to chegando
Fazendo aquela badalacao
Bebendo tudo
Zuando com meu carro e o som ta detonando
Eu vou curtir a vida
Hoje eu quero ficar bebo com 14 raparigas ...
Quando eu chego no forro
A mulherada encosta
Ligo o som do paredao
E todo mundo gosta
Eu sou cabra desmantelado o bom da vida e viver
Por isso que nao vivo sem beber...
Eu viro quatro noites
Biritando por ai
A procura de gatas
Pra poder me divertir
Junto com os amigos
Vou fazer tremer o chao
Se liga ai galera
Hoje vai ter curticao [...] (LETRAS.MUS, 2012a).
O ideal de uma vida festeira e de intenso entretenimento tem sido
acentuadamente trabalhado pela industria cultural. Nas palavras de
Hoggart (1973b, p. 53), "[...] todos os processos de divertir o
publico sao considerados validos". Assim, conforme a letra acima,
'juntar os amigos; com quatorze raparigas; bebendo tudo ate o
amanhecer; num carro tunado; fazendo tremer o chao', expressa todo
esse imaginario de estilo de vida.
No forro eletronico tem sido forte a vinculacao da diversao a todo
custo com a nocao de felicidade. Parte expressiva das cancoes de maior
sucesso veicula a ideia de que a verdadeira felicidade acontece 'no
meio da putaria', ou seja, nos momentos de encontros com os amigos
nas festas de forro--consumindo bebida alcoolica--, nos relacionamentos
'amorosos' sem nenhum compromisso e nos momentos em que o
sujeito se entrega totalmente a diversao (PEREIRA NETO et al., 2010, p.
09). Dai que as musicas transmitem a representacao de que o consumo de
determinados produtos, tais como cervejas, uisques, carros
'tunados' etc, alem da sucessao desenfreada de dias festivos,
e o pleno caminho para a felicidade. Portanto, no forro eletronico
"[...] encontra-se, sobretudo, o conselho monotonamente reiterado:
'seja feliz'" (ADORNO, 2008, p. 104).
Vale enfatizar que a "[...] propria sexualidade e
dessexualizada ao se tornar divertida" (ADORNO, 2008, p. 105). Para
a industria cultural, tudo tem que ser divertido, ate mesmo a vida
intimo-pessoal. Nao e por acaso que as relacoes sexuais sao tao
exploradas pelas cancoes de maior apelo comercial a ponto de se tornarem
coisificadas a maneira de cliches industriais.
Em via de mao unica com a apologia da diversao sem freios, vem o
consumo de bebidas alcoolicas. A defesa do consumo de bebidas etilicas
e, dentro de algumas sociedades, marca de virilidade. Como oportunamente
destaca Veblen (1988, p. 36), inclusive as "[...] enfermidades
provenientes de seu abuso entre muitos povos sao tidas como atributos de
masculinidade". No forro eletronico, seja nas letras de muitas
cancoes, seja na propria dinamica das festas, tem se tornado frequente a
ocorrencia desse tipo de equacao 'homem + alcool =
virilidade'. Todo um modelo de sociabilidade etilica e proposto por
muitas musicas, alem do proprio ambiente do show que coopera bastante
com tal investimento. Logo, a formula do 'bebendo tudo' parece
vir se divulgando fortemente pelas maos do forro eletronico. O consumo
desses produtos passa, certamente, pela reproducao do capital. Ha toda
uma estrutura de comercializacao de bebidas ligadas ao forro, o que
demonstra o carater empresarial dessa cultura festiva. Nao se consome
simplesmente por tradicao ou por preferencia pessoal, mas pelos
caprichos dos produtores industriais do 'prazer' alcoolico.
'Amor x Obstaculo = Amor'
Prosseguindo na descricao, uma letra que pode exemplificar a
tematica das conquistas e dos lamentos amorosos e a moda de caso
tipico-ideal, 'Tentativas em vao' (LETRAS.MUS, 2012a):
Tentativas em Vao--Garota Safada
Se eu soubesse o que fazer pra tirar voce da minha
cabeca
Um lado diz que quer ficar com voce, o outro diz
esqueca
Mas acontece que o meu coracao nao e de papel
A chuva molha e as palavras se apagam
A minha mente gira feito um carrossel
Tentando buscar a saida
Pra tirar voce da minha vida
Tentativas em vao, tentar tirar voce do coracao
Igual querer viver sem respirar
E como querer apagar a chama de um vulcao
(LETRAS.MUS, 2012a).
O apego aos temas sentimentais e comum na musica popular e no forro
eletronico nao seria diferente. De acordo com Hoggart (1973a, p. 197),
[...] a maioria das cancoes mais apreciadas sao
cancoes sentimentais, tristes e nostalgicas [...] e a
afirmacao e muito pertinente, em relacao a muitas
outras pessoas que nao apenas as das classes
proletarias.
Esse carater sentimental nao e fenomeno recente, como poderia
alegar algum critico cultural conservador. Para Adorno,
[...] o fascinio da cancao da moda, do que e melodioso, e de todas
as variantes da banalidade, exerce a sua influencia desde o periodo
inicial da burguesia (ADORNO, 1991, p. 83).
Dai que a incapacidade de amar no mundo administrado (verwaltete
Welt) e o paradoxal desejo de amor enchem, diariamente, as paradas de
sucesso com as cancoes de cunho afetuoso.
Regadas por uma boa carga de previsibilidade musical e de conteudo,
as musicas sentimentais do forro eletronico oscilam fundamentalmente
entre a dimensao do entretenimento de massa e a extensao emocional. Nada
mais inteligente a ser pensando pelos propagandistas da industria
fonografica, isto e, o apelo a diversao e ao amor numa populacao que, de
fato, torce ansiosamente pelo amor e pela diversao em suas vidas:
[...] a deficiencia de amor, repito, e uma deficiencia de todas as
pessoas, sem excecao [...], pois as pessoas que devemos amar sao elas
proprias incapazes de amar e por isto nem sao tao amaveis assim (ADORNO,
2006, p. 134-135).
Deste modo, vende-se o pao muito barato a quem tem fome em demasia.
As musicas de cunho sentimental sao, de fato, bastante tradicionais
no forro eletronico, fruto direto do legado das primeiras bandas
surgidas no inicio da decada de 1990. Suas letras, muito semelhante as
'fotonovelas' (HABERT, 1974), dao conselhos sentimentais para
o seu publico, ao mesmo tempo em que oferece a perspectiva de integracao
num cenario urbano-consumidor, integrando os usuarios tambem no
conformismo.
Os temas presentes no forro eletronico ate apresentam alguma
variacao, mas como terminam todos com o mesmo pano de fundo afetuoso
'festaamor-sexo', acabam por ter a padronizacao como marca.
Novamente a maneira da fotonovela, com linguagem clara e simples, de
modo a evitar conflitos de interpretacao, a equacao 'amor x
obstaculo = amor' se torna o esquema basico das cancoes (HABERT,
1974, p. 96). Trata-se, pois, de um objeto padronizado que oferece um
mundo eterno, equilibrado e sem conflitos. O exemplo acima e categorico
nesse sentido. "Um lado diz que quer ficar com voce, o outro diz
esqueca [...]", trecho da musica 'Tentativas em Vao'
(LETRAS.MUS, 2012a), expressa os dois lados desse carater melodioso, ou
seja, o lamento de quem sofre e o positivo estado apaixonado de quem
ama. Dessas duas situacoes, praticamente pouca possibilidade existe de
desvio nas letras sentimentais. A previsibilidade sentimental da cancao
ja esta dada antes mesmo de sua composicao. No mais, a unica
complexidade que ha e o fato de nao existir complexidade. O nominado
'amor' se entrega ao esquema da industria cultural em uma
versao muito artificial. Contudo,
[...] aparentemente se ensena a los espectadores teorias sobre como
se debe amar, sin preocuparse por la cuestion de si tal cosa puede
ensenarse [...] (ADORNO, 1969, p. 86).
Hoggart (1973a) ressalta que e evidente que essas cancoes
estandardizadas e simples obedecem a um numero muito 'restrito de
convencoes fixas'. Todavia, complementa que essa caracteristica nao
e uma simples consequencia da pobreza de imaginacao dos autores: as
cancoes sao, de fato, escritas dessa maneira. Sao cancoes
deliberadamente feitas deste modo, procurando apresentar ao
[...] ouvinte um padrao de emocoes ja conhecidas; nao pretendem ser
originais, mas antes estruturas de sinais convencionais referentes a
determinado dominio emocional (HOGGART, 1973a, p. 195).
'So Fazendo Love [...]': cultura, sexo e poder
Dando continuidade, outra categoria tematica muito presente no
forro eletronico e aquela fundamentada na insinuacao ao sexo--de duplo
sentido ou nao--, ficando por conta de musicas como, por exemplo,
'Lapada na Rachada' (LETRAS.MUS, 2012c):
Lapada na Rachada--Saia Rodada
Toma gostosa lapada na 'rachada'
Voce pede e eu te dou, lapada na rachada
E ai, ta gostoso? lapada na rachadaaaaaaaa ....
Toma, toma, tomaa ...
Pense numa 'mina' linda, a danada enlouqueceu
A macharada ficou louca quando ela apareceu
Um sorriso envolvente, um jeitinho sensual
Pra acabar de completar, deu mole no final
Juro nao acreditava no que estava acontecendo
Sorria e me olhava e o clima foi crescendo
Fui direto ao assunto e nao pude acreditar
Chegou no meu ouvido e comecou a falar
Vaaaaai, da tapinha na bundinhaaa, vaaaaai
Que eu sou sua cachorrinha, vaaaaaaaai
Fico muito assanhada, se eu pedir voce me da
Lapada na rachada
Vaaaai, da tapinha na bundinha, vaaaaaai
Que eu sou sua cachorrinha, vaaaaai
Fico muito assanhada
Vamos da uma lapadinha?
So se for na rachadinha
Tooooooma gostosa, lapada na rachada ...
Voce pede e eu te dou, lapada na rachada
E ai, ta gostoso? lapada na rachada (LETRAS.MUS, 2012c).
A tematica do sexo e, na musica popular brasileira, historica e, ao
contrario dos que pensam ser uma tendencia recente, esta nas raizes de
nossa historia musical. Como enfatiza Richard Parker (1991, p. 244), ja
faz parte do que significa 'ser brasileiro'. "A
sensualidade e celebrada e se relaciona, no nivel mais profundo, com o
que significa ser brasileiro". Dai que o pecado nao existe abaixo
do equador!
Nao somente na musica, mas na sociedade em geral, a provocacao
sexual vai e vem e tida como um elemento estruturante de nossa formacao
cultural. Como ja destacou Gilberto Freyre (1984):
O homem medio brasileiro nao pode deixar de ser
sensivel a imensidade de provocacoes que o rodeiam.
Nao tanto ao vivo, como por meio de anuncios de
revistas ilustradas, que se vem esmerando na
utilizacao de reproducoes coloridas de bundas nuas,
como atrativos para uma diversidade de artigos a
venda. Ha, no Brasil de hoje, uma enorme
comercializacao da imagem da bunda de mulher em
anuncios atraentes. Esteticos uns, alguns lubricos.
Tambem se vem fazendo esse uso na televisao. E,
sonoramente, em musicas apologeticas da beleza da
bunda de mulher.
A vertente sexual na musica brasileira nao e fenomeno recente,
conforme poderiam alegar os propagandistas da decadencia do
'gosto'. Para Monica Leme (2003, p. 28),
Pesquisando a literatura sobre a construcao e
consolidacao da musica popular no Brasil, constatamos
que ao longo desse processo ha uma vertente que vem
se rearticulando e produzindo novos significados
conjunturais. Adotaremos o termo 'vertente maliciosa'
para definir musicas que articulam formulas 'literarias'
comicas, satiricas e maliciosas, associadas a generos
musicais populares (lundu, maxixe, xote, samba etc.).
Estes generos foram sedimentados atraves de um longo
processo de 'mesticagem' entre caracteristicas culturais
'populares' e 'eruditas' europeias e caracteristicas das
culturas africanas, principalmente quanto aos aspectos
ritmicos e de associacao entre musica e danca.
Deste modo, para Leme (2003), essa 'vertente maliciosa'
da musica popular brasileira ja estava presente desde nossas primeiras
modinhas (musica romantica, com fundo lirico, repleta de queixas de
amores e expressao de paixoes) e lundus (musica dancante, satirica,
maliciosa e critica aos costumes). A industria cultural brasileira se
trama sobre esses dois principais pilares: a musica lirica, romantica
(cuja matriz e a modinha oitocentista) e a musica satirica (cuja matriz
e o lundu).
Voltando ao forro eletronico, nele a vertente sexual tem dado sua
parcela de contribuicao ao processo de coisificacao da mulher, na medida
em que a transforma em objeto, disposta a dar prazer e ser consumida, ja
que "[...] hoje em dia, ate o sexo tende a assemelhar-se as
relacoes de troca, ao racionalismo de dar para receber" (ADORNO;
HORKHEIMER, 1978, p. 134): "Vai, da tapinha na bundinha/Que eu sou
sua cachorrinha" (LETRAS.MUS, 2012c).
Como exemplo de produto atual dessa vertente maliciosa, um dos
subitens mais tocados tem sido a tematica do 'cabare'
(bordel). A tematica apologetica do cabare, alias, e central em muitas
cancoes forrozeiras, reforcando, tambem, as desigualdades de genero, ja
que: "[...] explicita a relacao conservadora com o sexo e com os
papeis esperados da mulher: virtuosa para 'casar',
'profissional' para o sexo". (TROTTA, 2009c, p. 141).
Sumariando com Parker (1991, p. 250):
[...] independentemente de classe, regiao ou outra
circunstancia qualquer, por exemplo, as
possibilidades abertas as mulheres, no Brasil todo,
sao mais limitadas do que as dos homens.
Logo, as desigualdades de genero nao sao exclusivas apenas a
determinados espacos, classes sociais etc. Segundo Sherry B. Ortner
(1979, p. 95-98), o status secundario feminino na sociedade e uma das
verdades universais, "[...] um fato pan-cultural [...] Achamos as
mulheres subordinadas aos homens em todas as sociedades
conhecidas". Michelle Rosaldo e Louise Lamphere (1979, p. 19)
reafirmam esse argumento e completam: "[...] embora em grau e
expressao a subordinacao feminina varie muito, a desigualdade dos sexos,
hoje em dia, e fato universal na vida social". Franchetto (1981, p.
18), tambem ao examinar vasta bibliografia sobre o tema, aponta que
"[...] uma das inquietantes evidencias com a qual as mulheres
parecem defrontar-se e a regra constante de sua subordinacao ou
opressao". Segato (1998), ao recapitular textos pioneiros como os
de Gayle Rubin, Sherry Ortner, Nancy Chodorow, Louise Lamphere, Michelle
Rosaldo, Rayna Reiter e outros, dira que e atraves (e apesar) das
diferencas culturais que se descobre essa tendencia a universalidade da
estrutura de genero, resultando na universalidade do genero como
estrutura de dominacao.
Assim, sob a perspectiva de genero, algumas letras presentes no
forro eletronico reforcam certas desigualdades. Mulheres sao,
destacadamente, vistas como objetos de conquista (inclusive dentro e
fora do espaco do cabare). Mesmo quando a mulher aparentemente parece
ser retratada nas cancoes de forma menos desigual, ainda assim sua
imagem emerge incrustada numa relacao dissimetrica. Mesmo quando
aparentemente se liberta, termina se metamorfoseando em personagem
acritico: "[...] eu vou sair vou pra balada, nao quero mais saber
de nada, eu quero e me divertir" (LETRAS.MUS, 2012a), 'Banda
Garota Safada'. Deste modo, a mulher ora cai em pseudoatividade
(falsa liberdade), ora sua imagem se transforma numa representacao
masculina, ao se "[...] falar com um publico feminino, como se
estivesse se dirigindo a homens" (ADORNO, 2008, p. 79).
Entrementes, e evidente que "[...] pelo fato de a mulher
curvar-se diante da lei da familia patriarcal, ela mesma se torna um
elemento reprodutor da autoridade nesta sociedade". (HORKHEIMER,
2008, p. 231).
Prontamente,
Sob o ponto de vista (e de escuta) das relacoes de genero, e
importante destacar que o forro eletronico mantem e ate mesmo acentua a
distincao tradicional dos papeis masculino e feminino, reforcando um
ambiente moral bastante conservador, a despeito de sua intencao e de sua
atmosfera urbana e modernizante (TROTTA, 2009c, p. 140).
Deste modo, a suposta modernizacao das relacoes de genero cai
ladeira abaixo em sua contrapartida conservadora, isto e, ao contribuir
para a estigmatizacao do papel da mulher nas relacoes sociais:
'safada, mas aceitavel ...' O 'Homem' determina sua
aceitacao, ainda que estigmatizada.
Todavia, vale destacar que nao e o forro eletronico criador fecundo
de tais desigualdades. Este apenas contribui para a sua reproducao, em
menor ou maior grau. Segundo Lima e Freire (2010, p. 10), o forro
eletronico:
Apropria-se de caracteristicas e estereotipos
femininos pertencentes a cultura nordestina e da a
eles uma nova roupagem, com o aproveitamento de
signos antigos e criacao de novos, que explicitam
conduta e representacao, nao publicando a fala
feminina, ou seja, em como a mulher se ve e se
percebe nesse cenario, cuja tematica e geralmente
ela, com forte apelo erotico.
Assim, o tripe 'festa, amor e sexo' termina sendo
masculinamente dominante no forro eletronico e suas letras mais
simbioticas sao justamente aquelas representativas de sua visao de mundo
predominante. A musica 'Raparigueiro Todo' (LETRAS.MUS, 2012a)
significa o momento capital da idealizacao ideologica de uma vida de
forte entretenimento.
'Raparigueiro Todo'--Garota Safada
Eu sou raparigueiro todo
Namorador demais
Sou bonequeiro, mulherengo e forrozeiro
Onde tem mulher eu vou correndo atras
Nao e voce quem vai fazer
Eu mudar o meu jeito de ser
Nao e voce quem vai querer que eu deixe os meus
costumes por voce
Nem uma mulher conseguiu me dominar
Nao e voce que vai
Por isso meu bem, se me quiser e desse jeito assim
(LETRAS.MUS, 2012a).
Sumariando, pode-se dizer que e veiculando textos e imagens
diversas que o forro eletronico atual se vende justamente pelas
caracteristicas acima elencadas: diversao e prazer. "Eu sou
raparigueiro todo, namorador demais. Sou 'bonequeiro',
mulherengo e forrozeiro. Onde tem mulher eu vou correndo atras"
(LETRAS.MUS, 2012a). O forro como um todo possui essa marca, ao
contrario do que se poderia alegar pelo vies do forro tradicional
(pe-de-serra).
No caso do forro atual, a cisao entre o pe de serra e o eletronico
aponta para a complexidade destes julgamentos e enfrentamentos morais.
Aparentemente, as duas vertentes estilisticas encontram-se em espacos
morais radicalmente distintos e antagonicos. No entanto, um exame mais
detalhado das sonoridades, das letras e da estetica visual apresentada
revela que ambos partem de uma mesma posicao conservadora em relacao a
sexualidade, fundada numa rigida divisao de funcoes, papeis e
estereotipos masculinos e femininos. [...] Mais as claras, o forro
eletronico exagera em referencias visuais e poeticas explicitamente
sexuais, enquanto o pe de serra atual mascara o terreno da sexualidade,
devolvendo-o a penumbra e as frestas das relacoes
tradicionais--essencialmente rurais (TROTTA, 2009c, p. 144).
Por conseguinte, importa reforcar que as representacoes insurgidas
'pelo e no' forro eletronico oferecem substancialmente esse
mundo de entretenimento, harmonico em sua totalidade e conflituoso
apenas na esfera privada: "[...] to invocado, hoje eu vou pra
bagaceira. Hoje a noite e so zueira e a culpada e a
mulher"--musica: 'Hoje eu vou tomar um porre por causa
dela'. (LETRAS.MUS, 2012a).
Nessa sociabilidade de diversao a todo custo, muitas possibilidades
de lazer ficam a margem de qualquer possibilidade real de critica (de
consumo, de relacoes de genero etc). Apropriando-se das ideias de
Marcellino (2000), esse tipo de lazer (oferecido pelo forro eletronico)
e estruturalmente desprovido de qualquer criatividade ou criticidade
ludica. A possibilidade de um fundamento critico no lazer como educacao
se esvazia sumariamente, tornando a diversao um mero veiculo do
entreter-se. Em suma, "[...] o prazer, quando [...] isolado do
mundo do conteudo 'serio' da vida, torna-se bobo, sem sentido,
reduz-se completamente ao 'entretenimento". (ADORNO, 2008, p.
99).
Consideracoes finais
E possivel dizer que os fatores que, de fato, tornam essas cancoes
um sucesso de audicao massiva, estao bem longe da singela expressao
'gosto popular' ou mesmo, do contrario, da expressao biblica
'eles nao sabem o que fazem'. Para tal compreensao, tanto
Theodor W. Adorno, quanto os Estudos Culturais dao uma parcela relevante
para este entendimento (embora a adesao organica entre tais perspectivas
nao seja tao facil de ser obtida). De Adorno interessa relembrar o papel
do assedio sistematico e prescritivo promovido pela industria cultural.
Dos Estudos Culturais, especificamente Richard Hoggart, importa lembrar
que essas cancoes sao sucessos justamente por serem 'grandes temas
da existencia popular'. Explorar a intimidade e os detalhes da vida
intima de cada um significa a base do interesse maior das camadas
populares. Pela dificuldade na capacidade do pensar abstrato (aquilo que
Anthony Giddens denomina de 'consciencia reflexiva'), os
detalhes intimos se tornam os grandes temas da experiencia popular. O
forro eletronico e, entao, a ponta de um iceberg bem mais enraizado na
cultura. O consumo das musicas e, por conseguinte, nao apenas
estruturante, mas ja estruturado. Como diria E. P. Thompson (1987), os
sujeitos nao sao apenas feitos, mas tambem produtores de sua historia.
Caso seja possivel citar os dois tipos de consumidores,
didaticamente opostos vigentes no consumo de musica popular, teriamos:
a) um personagem que se opoe ao mundo, que se rejeita a aceitar a
sociedade como ela esta sendo, deste modo, questionador e b) aquele
outro integrado a coletividade, positivamente conexo, conformado
(HABERT, 1974). Habert alerta, com propriedade, que o segundo personagem
e a expressao constitucional do consumidor da industria cultural. Como
musica popular, o forro eletronico da sua parcela de contribuicao a esse
ideal de absoluta passividade, ao nao evitar cooperar para um mundo
reificado marcado por ideologias sexistas, consumistas, discriminatorias
etc.
De acordo com Trotta (2010, p. 1),
[...] quanto maior o alcance e popularidade de uma
determinada cancao ou novela, maior sua capacidade
de interagir, comunicar e tensionar valores e
sentimentos compartilhados.
O forro eletronico, de fato, e estruturante do lazer festivo de
parte da populacao nordestina, de certa maneira ate independentemente de
classe social (embora demograficamente esteja mais presente em grupos
sociais sem o que Pierre Bourdieu nominaria de capital cultural para o
consumo da musica nao popular). Alias, o criterio classe social seria
muitissimo insatisfatorio para a analise do consumo cultural de massa,
pois esbarraria numa "[...] oferta da industria cultural planejada
conforme estratos sociais" (ADORNO, 2011, p. 144). Tratar-se-ia da
estratificacao de um fenomeno em demasia administradamente
estratificado.
Evidentemente, nao ha nenhuma relacao unilateral nesse consumo, nem
tampouco relacao mensuravel de causa-efeito. John Thompson (2002)
argumenta que nao e demonstravel e nem evidente que a recepcao dos bens
da industria cultural tenha as consequencias alardeadas. Os produtos nao
podem ser responsaveis, simplesmente, pelo conformismo. Apesar disso,
devese salientar que podem servir como reforcadores de relacoes de
dominacao ja existentes. Como novamente reforca Trotta (2010, p. 13):
E obvio que nao se pode pensar numa relacao de causa
e efeito com consequencias imediatas de
reprocessamento de codigos morais e padroes de
comportamento sexual por conta de uma telenovela ou
de uma cancao. Mas tambem me parece fragil a ideia de
se pensar nos produtos de entretenimento como
vetores de uma 'mera' diversao.
Assim, o consumo do forro eletronico, seja como forma privada
(escuta domestica de CD, DVD, internet ...), seja como forma publica
(frequencia a shows), nao pode ser considerado, unicamente, como
expressao da alienacao de um ou varios grupos sociais, ou ainda, no polo
oposto, como um simples instrumento cultural de entretenimento massivo.
Trata-se, pois, de uma
[...] experiencia cultural mutante ligada as diversas esferas da
vida social, cuja reproducao esta condicionada a multiplicidade de
interesses de agentes internos e externos ao evento (COSTA, 2003, p.
03).
Destarte, para alem de se pensar no sentido literal do
'texto-em-si' e do 'texto-para-si'--ja que
"[...] as decodificacoes nao derivam inevitavelmente das
codificacoes" (HALL, 2003, p. 399)--, interessa considerar os usos
e desusos das cancoes, suas recusas, negociacoes e aceitacoes. Somente
assim o fenomeno musical do forro eletronico podera ser melhor
compreendido.
Todavia, vale lembrar, nas palavras de Albuquerque Junior (1999),
que as linguagens (musica, cinema, teatro, pintura etc.) "[...] nao
apenas representam o real, mas instituem reais" (ALBUQUERQUE
JUNIOR, 1999, p. 23). Procura-se, desta forma, apreender o fenomeno
musical para alem de seu efeito ludico, buscando entende-lo tambem como
elemento de (re)producao de realidades sociais.
Muito similarmente ao estudo de Jacks (2003) sobre a cultura gaucha
sob o dominio da industria cultural, a questao em analise nao e
classificar ou diagnosticar o forro eletronico como bom ou ruim,
avancado ou retrogrado, tradicional ou moderno. Nao se trata de um
estudo valorativo. Trata-se, pois, de um levantamento das possibilidades
desta producao simbolica estar ligada a representacao de uma realidade
que oculta as contradicoes mais profundas de sua estruturacao, ao inves
de elucida-las. Como desfecho, nesse tipo de estudo nao esta em disputa
o bom ou ruim, mas, segundo David Harvey (1994), a analise de uma
producao cultural que, consequentemente, cria a formacao de juizos
esteticos mediante um sistema organizado pela reproducao do capital.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v36i1.20245
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Received on March 25, 2013.
Accepted on October 23, 2013.
(1) Todas as cinco letras foram extraidas do site:
http://letras.terra.com.br/garotasafada/ (LETRAS.MUS, 2012a).
(2) Espaco distintivo 'pre-festa', uma vez que se
abastece o veiculo, compram-se algumas bebidas nas lojas de
conveniencia, e ainda, exibe-se toda a aparelhagem dos 'paredoes de
som'.
(3) "As narrativas de brigas e de conquistas formam [...] um
eixo comum de afirmacao [de] virilidade e reafirmam atraves das letras e
da danca a associacao entre masculinidade, poder e autoridade,
fortemente presentes no imaginario tradicional do sertao" (TROTTA,
2009b, p. 139).
(4) Todavia, em varios shows, muitas cancoes dominantes dos anos
1990 sao relembradas. Inclusive, presentemente ha um significativo
movimento de recuperacao dessas cancoes. Por exemplo, o que se chama de
'forro das antigas'--'antigas' se referindo muitas
vezes a bandas como, por exemplo, Mastruz com leite e Cavalo de
Pau--atualmente tem ganhado algum folego.
Jean Henrique Costa
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Rua Professor
Antonio Campos, s/n, BR-110, km 48, 59600-000, Mossoro, Rio Grande do
Norte, Brasil. E-mail: jeanhenrique@uern.br