Towards the correct word: checkings and epistemic modality in the discursive game of oral narratives/Rumo a palavra certa: checagens e modalidade epistemica no jogo discursivo de narrativas orais.
Tfouni, Leda Verdiani ; Pereira, Anderson Carvalho ; Mosca, Lineide Lago Salvador 等
Introducao
Este trabalho investiga as manobras interpretativas que marcam a
mobilizacao da memoria discursiva em narrativas orais produzidas por uma
mulher nao alfabetizada, da cidade de Ribeirao Preto, Estado de Sao
Paulo, Brasil. O enfoque e apontar de que modo algumas perguntas
interpostas ao fluxo narrativo, a maneira de checagens enderecadas ao
interlocutor, marcam a heterogeneidade discursiva, na qual se fazem
presentes pontos de fuga do fio narrativo, bem como a irrupcao do
estranhamento causado pela presenca virtual do 'outro/Outro',
com as quais o sujeitonarrador deve lidar, ao mesmo tempo em que o
auxiliam na sustentacao da autoria, atraves do uso da modalidade
epistemica.
Analisaremos duas sequencias retiradas de um corpus formado por
narrativas orais contadas por 'dona' Madalena, uma mulher nao
alfabetizada, constituido por 34 narrativas, que foram coletadas e
transcritas em dois periodos distintos: entre o final da decada de 1980
e inicio de 1990, e entre os anos de 2005 e 2007.
Em tais sequencias, elegemos para a analise as denominadas
'glosas metaenunciativas' (AUTHIER-REVUZ, 1998): comentarios,
checagens feitas pelo narrador, que sinalizam a colocacao em jogo de
diversos saberes comprometidos com o Outro, ao mesmo tempo em que
colocam em xeque a circulacao dos saberes dominantes, pertencentes a um
arquivo letrado. Como a narradora e analfabeta, teremos a oportunidade
de analisar os estranhamentos que o discurso organizado da narrativa
interpoe ao ato de narrar.
Aspectos teoricos
O estudo das modalidades tem sido objeto principalmente de tres
disciplinas: Logica, Linguistica e Semiotica, havendo uma tendencia em
integrar o resultado das indagacoes, e nao em separalas. A esse
respeito, Darrault (1976, p. 3) afirma que "[...] dans le domaine
de las modalites, il n'est plus guere possible d'imaginer de
solution strictement monodisciplinaire".
Tradicionalmente, o estudo das modalidades ocupa-se das ideias de
possibilidade e verdade, que, por sua vez, relacionam-se aos conceitos
de proposicoes sinteticas (aquelas que sao contingentemente verdadeiras)
e analiticas (as que sao verdadeiras em todos os mundos possiveis). As
sinteticas relacionam-se a possibilidade, e as analiticas relacionam-se
a necessidade do evento ou estado de coisas descrito pelas proposicoes.
A formalizacao da necessidade e da possibilidade envolve tres tipos de
modalidades: a aletica, a epistemica e a deontica.
E importante marcar que as modalidades linguisticas (lexicalizadas
pela linguagem-objeto) caracterizam-se pela polissemia, como se pode ver
em: 'Ele deve vir', que possibilita diversas leituras
aleticas, epistemicas e deonticas: 'E necessario que ele
venha'; 'Ele tem obrigacao de vir'; 'E possivel que
ele venha'; 'E provavel que ele venha'; 'E certo que
ele vira'. Tal fato prende-se ao carater arbitrario do signo.
Interessa-nos aqui as modalidades epistemicas, por servirem
lexicalmente para exprimir a certeza e a incerteza, tema deste trabalho.
Segundo Lyons (1977, p. 793), tal modalidade "[...] deals with the
logical structure of statements which assert or imply that a particular
proposition, or set of propositions, is known or believed".
Incluem-se ai as atitudes proposicionais lexicalizadas como
'saber', 'acreditar', 'duvidar' palavras
que denotam, em maior ou menor escala, o grau de comprometimento do
falante com a 'verdade' expressa pela proposicao. A fim de
tornar o conceito 'modalidade epistemica' mais claro, Tfouni
(1986) propoe o seguinte criterio: devem ser consideradas epistemicas as
construcoes que contenham uma avaliacao do falante sobre o fato
enunciado. Assim, o que e colocado em questao nao e o fato em si, mas a
crenca pessoal do enunciador acerca dos conteudos expressos pelo
enunciado, ou seja: aquilo que o sujeito pensa que o fato e. Decorre dai
que o uso das modalidades epistemicas estabelece um vinculo entre o
enunciador e seu enunciado, onde esta em jogo o comprometimento do
sujeito com a 'verdade' dos fatos expressos no enunciado, ou
entao com o (des)conhecimento desses fatos.
A relacao entre as modalidades epistemicas e o arquivo torna-se
evidente quando tomamos a definicao de arquivo para a Analise do
Discurso (AD). Segundo Pecheux (1997, p. 56-57, grifo do autor):
[...] os conflitos explicitos remetem em surdina a
clivagens subterraneas entre maneiras diferentes de
ler o arquivo (entendido aqui como 'campo de
documentos pertinentes e disponiveis sobre uma
questao').
O termo 'clivagem', sob a otica da AD e da Psicanalise,
significa separacao radical e incontornavel, o que podemos relacionar
com a divisao social em classes, e a distribuicao desigual de
conhecimento que se estabelece como resultado. Sabe-se que tomar a
palavra e um ato politico, que nao e exercido livremente. Ha, no
imaginario social, ideologicamente regrado, uma divisao entre os que
detem o conhecimento (os mais letrados, que podem discursiviza-lo), e os
que nao tem acesso ao arquivo letrado (e, por mecanismos sutis de
controle, sao proibidos de ocupar certas formacoes discursivas que
veiculam aquele conhecimento). Segue-se dai que o acesso ao arquivo, e
sua leitura, nao estao a disposicao de todos, fato que acentua a divisao
(clivagem) entre classes, e a disputa surda pelo conhecimento.
Ao lado de um arquivo sobre o mundo que poderiamos aqui denominar
de letrado, existem outros, muitos deles subterraneos, ignorados por
muitos, desprezados ate, que circulam entre os povos destituidos da
escrita. Tais clivagens vem colocar que em todo discurso ha outro, um
'estranho' com o qual e preciso lidar utilizando de manobras
discursivo-argumentativas. Construido mais com base em um imaginario do
que propriamente nos dados da realidade, esse outro/Outro interpoe entre
o sujeito e seu dizer o campo do nao inteligivel. Certeau (1994) afirma,
a respeito, que o outro, a alteridade, lanca o 'mesmo' nos
territorios da 'diferenca', rompendo o mundo calmo das
certezas, criando, como consequencia, a necessidade de
compreensibilidade. A certeza e a incerteza (a duvida) coexistem quando
se trata dos usos cotidianos da lingua. Ha um confronto entre praticas
orais e letradas, que, no dizer de Gadet e Pecheux (2004) produz uma
especie de subversao social ou 'dispersao anagramatica', e
isso ocorre quando a 'massa toma a palavra': uma inovacao
neologica e uma transcategorizacao sintatica que induzem na lingua uma
gigantesca agitacao, a qual e comparavel aquela realizada pelos poetas,
embora em menor dimensao. Essas 'novidades' surgidas na
propria lingua impelem a pesquisa e nos obrigam a confrontar um sujeito
que nao se cala e, por isso, atrapalha.
Nos recortes de narrativas orais que serao analisados a seguir,
privilegiaremos esses momentos de embate entre dois saberes, que, na
estrutura da lingua, sao indiciados pelo uso de modalidades epistemicas,
que aparecem sob a forma de glosas metaenunciativas (AUTHIER-REVUZ,
1995), ou comentarios feitos pelo sujeito-narrador, que indiciam um
estranhamento com relacao ao campo semanticamente estabilizado dos
arquivos (PECHEUX, 1997). A funcao dessas ocorrencias e de assegurar um
modo particular de sustentar a circulacao de outros saberes, que
provocam rupturas a formacao discursiva dominante (letrada), saberes que
permitem ao sujeito ocupar posicoes discursivas de resistencia.
As perguntas de checagem enderecadas ao interlocutor fazem parte
desse jogo politico do saber. Embora nao haja um conhecimento que seja
mais verdadeiro, os sentidos se enlacam conforme um jogo de poder entre
o sujeito-narrador e as formacoes imaginarias emergentes no que ele
imagina que o interlocutor acha que seja possivel (ou impossivel) dizer,
para sustentar o fio narrativo. Cria-se uma cena discursiva que tanto
pode ser de negociacao, quanto de embate, entre saberes dissidentes.
Sabendo que a argumentacao esta presente em todo e qualquer
discurso, em maior ou menor grau, subjacente a todo ato de interlocucao,
pode ela alimentar uma argumentacao do tipo colaborativo, que se da por
negociacao, ou entao pelo confronto de discursos que se chocam,
suscitando contradiscursos numa atitude de resistencia ao que se postula
inicialmente.
Parte-se do principio de que onde ha polemica e conflito, ha
argumentacao, uma vez que os parceiros da interlocucao sao capazes de
reagir e de exercer a possibilidade de refutacao (a refutatio), ainda
quando impedidos de faze-lo por razoes sociais e politicas. Muitas vezes
e o silencio que torna significativa a nao manifestacao de uma das
partes envolvidas na cena enunciativa que se apresenta. Nao sendo
simetricas as relacoes nela implicadas, desenvolve-se um jogo de forcas
que pode ir ate uma 'quebra de bracos'.
As situacoes preocupantes sao, entretanto, aquelas sub-repticias,
que nao se declaram como tais, mas que uma leitura dos mecanismos que as
constituem sao trazidos a tona, por constituirem manobras de ocultamento
ou de escamoteamento, grande parte das vezes. Percorre-se, entao, desde
o espaco das falacias, tomadas como ma fe ou perversidade, ate os
procedimentos mais sutis das alusoes, insinuacoes e ironias, que trazem
em seu bojo os conhecimentos compartilhados pelas coletividades em
questao, ou seja, seu universo de crencas e de lugares comuns.
De qualquer forma, trata-se de estrategias
discursivo-argumentativas com vistas a execucao dos propositos que se
tem em mente e com as quais se pretende o exito dos objetivos a
alcancar. O que nao se faz ver claramente por esses expedientes
deliberados, torna-se recuperavel pelas manifestacoes que as brechas do
discurso deixam entrever e que irao compor o sentido global do discurso,
incluindo elementos da cena enunciativa, tambem reveladores, os
pressupostos em que repousa, os 'lugares' socio-historicos que
nao so constituem um pano de fundo, mas se inserem nas opinioes e
tomadas de decisoes decorrentes.
Segundo MOSCA (2007, p. 304), perceber as estrategias retoricas
equivale a ter acesso a interpretacao, ou seja, a chave do sentido.
Entra aqui a questao da identidade dos interlocutores, das
representacoes mutuas que se fazem uns dos outros, incluindo-se ai o
processo de estereotipagem, assim como os valores culturais sob os quais
transitam as praticas discursivas e suas determinacoes de poder.
Analise
Conforme foi dito acima, serao analisados tres recortes, que
compoem sequencias discursivas de referencia (SDR), retirados de duas
narrativas orais criadas por um sujeito analfabeto (os titulos sao,
respectivamente, Joaozinho Ladrao e Tres Filhos Gemeos). Pretendemos
assinalar ali lugares na materialidade linguistico-discursiva em que a
certeza e/ou a incerteza emergem. Vamos mostrar que ha, nesses
acontecimentos, uma construcao virtual do sujeito-narrador, por meio de
questoes enderecadas ao outro (interlocutor) e ao Outro (interdiscurso),
que podem seguir estrategias discursivas daquele sujeito para contornar
a heterogeneidade constitutiva.
Em certa medida, a analise tenta apontar as estrategias
enunciativas articuladas em lugares imprevisiveis e singulares da nao
coincidencia do dizer (AUTHIER-REVUZ, 1998) e indiciados por gestos de
leitura que o sujeito-narrador opera sobre o proprio fio narrativo, por
meio de glosas metaenunciativas. Vejamos:
SDR 1--O rei ia manda ele la pra mata. Pra nao casa com a
princesinha. E ele vestiu de veio sem fala pro rei, sem nada. E arranjo
um ... um ... uma capanga assim de raiz de durmidera e pois aqui assim.
E arranjo bastante gengibre tamem. .. gengibre de faze quentao e pois de
lado. E foi. E pareceu la, aquele veinho feio la na porta do ... do
quartel. Ai, o ... o ... '[--'Vo fala o delegado, que eu nao
sei quem e'--explica-se.]' O delegado veio e falo:
'.....'. (Joaozinho Ladrao).
Nota-se que o fio narrativo (o intradiscurso) e interrompido diante
da nao coincidencia entre 'delegado' e 'quartel'.
Assim, temos uma 'quebra' de expectativa, uma nao
correspondencia entre 'porta do ... do quartel' e 'vo
fala o delegado, que eu nao sei quem e'. Com a diferenca marcada
entre 'quartel' e 'delegado', pontuada pelo
sujeitonarrador por suas hesitacoes, temos pelo menos duas substituicoes
que mobilizam a naturalizacao da nomeacao: primeiramente,
'quartel' esta no lugar de 'delegacia' e, como
segunda substituicao temos 'delegado' no lugar de qualquer
cargo militar do exercito (vamos supor que seja 'coronel').
Criase, assim, um espaco de deriva, onde sao possiveis pelo menos quatro
combinacoes: quartel-delegado; quartel-coronel; delegacia-delegado;
delegacia-coronel.
SDR 2--Fizero uma festa, o moco ta oiando, num era ele, era so
irmao daquele que morreu. Ai, ai quando foi pa posa, foro dormi, junto.
A moca. Ai eles foro dormi junto, ai o irmao dele chego ['ele num
era o Joaozinho, 'ce sabe qui num era, ne?' Pode se o Zezinho,
ne?' dirige-se ao entrevistador.] O Zezinho chego, pois a moca,
pois a moca dormi aqui, atravesso a espada dele aqui, assim pa ca, ele
travesso a ispada e ele durmiu pra la. (Tres Filhos Gemeos).
SDR 3--E voce, Jose, o que ce vai levando? Ele falo assim: --Eu? A
minha deproma ... eu vo levando um sapato bunito de camurca pra minha
mae! '[--Nao sei fala muito bem. Entende, ne?]' De camurca,
que eu fiz pa minha mae e vo levano tamem ... fiz tamem otro pra minha
tia e fiz um lindo chinelo pa minhas ... pa minhas irma. E eu vo levando
... eu nao vo levando muita coisa nao, mas o que eu vou levando e isso
ai. E ... e ... eu vo levando tambem uma butina muito bunita, que eu fiz
pro meu pai. E vou levando a deproma pro meu pai ve que eu prendi mesmo.
(Joaozinho Ladrao)
Nestas duas ultimas sequencias, o destaque esta no fato de que o
sujeito-narrador impede a aparicao de uma forma relatada do discurso do
Outro, no momento em que diz "[...] num era, ne" e
"Entende, ne?", para inserir uma dramatizacao dessa presenca
do Outro, como se ela pudesse ser 'congelada' (no sentido do
que Authier-Revuz (1995) aponta como 'de-figement', grosso
modo, um 'congelamento' da presenca do Outro).
O efeito produzido e de que o sujeito-narrador constroi um sentido
de certeza que apaga o desnivel de conhecimento ali mobilizado e que se
mostra a seu favor, naturalizando uma forma de nomear.
Trata-se de uma construcao enunciativa revestida de notavel
implicacao do sujeito-enunciador, em que ha
[...] cette configuration enonciative comme celle d'un
dedoublement du dire d'un fragment X par un auto-commentaire
prenant en compte les mots du dire (AUTHIER-REVUZ, 1995, p. 17).
Trata-se de um desdobramento do dizer que nao vai alem de uma
obrigatoriedade de o enunciado ter que se haver consigo mesmo, por meio
da implicacao as proprias palavras usadas. Neste caso, nota-se o
destaque as nao coincidencias entre relacao entre coisa e nomeacao, que,
conforme Authier-Revuz (1995) e uma das possibilidades em que se
implicar no proprio dizer ocorre pelo uso de comentarios sobre palavras
que sustentam a ilusao de rompimento do sentido, ao mesmo tempo em que
fazem uso de efeitos de literalidade, uso este que dribla o escape a
polissemia.
E o caso da modalizacao entorno ao uso do significante
'delegado'. A modalizacao 'que eu num sei quem e' em
destaque requer do interlocutor tanto a mobilizacao de um sentido
literal para 'delegado' quanto permite que mesmo que nao seja
designado no fio narrativo de maneira precisa 'quem e o delegado de
que se trata', haja a despeito deste escape ao equivoco, a
continuidade do dizer.
No caso das narrativas, esses efeitos de pre-construido estao
ligados a apoios que o sujeitonarrador faz no seu modo de construir o
outro virtual para sustentar o fio narrativo, outro este que autoriza e
legitima, ou nao, suas reflexoes meta-enunciativas em relacao a um saber
nao sabido; compartilhado sob a forma de evidencia e disfarce que
possibilita uma leitura singular do arquivo.
Por meio de modalizacoes epistemicas--entendidas como mecanismos
enunciativos complexos (comentarios, checagens)--o sujeito-narrador, a
fim de assegurar o controle da interpretacao, promove manobras
argumentativas, por meio de um efeito de estranhamento da cadeia
significante, colocando em xeque o compartilhamento e a divisao da
leitura dos arquivos.
Em termos discursivos, a clivagem do sujeito marcada pelo vacilo e
a duvida, no plano da enunciacao, e atravessada pelo determinante
politico, pois e correlata da divisao social do trabalho de
interpretacao do arquivo (PECHEUX, 1997).
Por meio deste modo singular, por meio do qual, o sujeito-narrador
mostra-se cindido, diante do enfrentamento da divisao da leitura do
arquivo resultam dois modos de resistencia caros ao sujeito-narrador:
primeiro, podemos afirmar que a veiculacao da questao formulada na
esfera da enunciacao se da por meio da colocacao em xeque dos saberes
dominantes. Isto demonstra uma ruptura na crenca de que o jogo dos
sentidos e apanagio dos discursos altamente letrados.
Decorrente deste primeiro gesto de resistencia, temos como segunda
forma de resistencia, a valorizacao dos usos cotidianos da lingua, que,
em sua complexidade, marcam o valor das determinacoes do inconsciente e
do politico e rompem com a crenca naturalizada de que a construcao de
hipoteses sobre a lingua e seus usos esta diretamente relacionada ao
tempo de escolaridade ou ao grau de escolarizacao (TFOUNI, 1992, 2010).
De modo geral, mesmo com suas determinacoes ideologicas, essas
formas de comentarios contribuem para contornar pontos do real por meio
de um funcionamento discursivo que possibilita uma tomada de posicao
discursiva do sujeito-narrador, a qual se sustenta em dois pontos: na
tentativa de apontar a assertividade de um saber que o sujeito-narrador
'domina' e do qual e refem, e no estranhamento de formas do
saber que lhe sao caras, pois o poe em suspenso entre o nao saber e o
saber (contingencia), e obriga-o a lidar com a falta simbolica pelo uso
da modalidade. Ao enunciar 'eu nao sei', o sujeito se coloca
diante de outro/Outro que ele imagina que sabe, como atesta o segmento
'entende, ne?'. No entanto, por uma manobra argumentativa, o
sujeito coloca o interlocutor empirico como testemunha e cumplice desse
nao saber, como atestam os segmentos 'entende, ne?', 'ce
sabe qui num era, ne?'
Essas sao as trampolinagens do cotidiano, de que nos fala de
Certeau (1994). Comentando este autor, Sousa Filho (2002, p. 21)
pergunta:
Como agir na desigualdade com os poderosos?
Como agir face a forca do sistema, mas sem
confronta-lo? Com sua 'teoria das praticas
cotidianas', Michel de Certeau (2001) trouxe para o
centro da analise sociologica do cotidiano praticas
desdenhadas por intelectuais dogmaticos e puristas
como 'secundarias', 'sem importancia', juntando-se a
uma producao teorica que valoriza a analise da vida
cotidiana, ainda que sob prismas divergentes.
O autor focaliza as 'artes de fazer', dos subterfugios,
apontadas posteriormente por Certeau como
invencoes cotidianas que marcam o jogo das relacoes
com a ordem e dos individuos entre si. Que sao as
'astucias', a arte da 'trampolinagem' senao versoes do
'estranho' ao sistema? Mas 'estranho' que nenhum
homem ignora, seja na versao da experiencia mistica
(da possessao, do extase, da bruxaria), seja na
loucura, seja nos pequenos atos transgressivos
anonimos (grifos do autor).
De Certeau faz referencia aos intelectuais que trabalham em uma
zona de resistencia as imposicoes ideologicas das ciencias regias,
dedicam-se principalmente a estudar aquilo que retorna simbolicamente
(no discurso) do que foi recalcado no real da luta de classes, as vozes
silenciadas e veladas: a
[...] dominacao de uma economia socio-cultural, a organizacao de
uma razao, a escolarizacao obrigatoria, o poder de uma elite e, enfim, o
controle da consciencia esclarecida. ... Diz o autor: Conheco
pesquisadores habilidosos nesta arte do desvio que e um retorno da
etica, do prazer e da invencao a instituicao cientifica [...] muitas
vezes levando prejuizo, tiram alguma coisa a ordem do saber para ali
gravar 'sucessos' artisticos e ali inserir os graffiti de suas
dividas de honra. (CERTEAU, 1994, p. 101, grifo do autor)
Situando-nos por identificacao com o trabalho de resistencia
descrito, acrescentamos que a tarefa que nos cabe ainda e de considerar
de que modo essa desigualdade envolvida com o real da historia articula
formas miticas (enigmas) que sao incorporados na construcao de
narrativas orais produzidas por uma mulher nao alfabetizada, por meio da
alienacao aos sentidos dominantes e de estrategias de construcao de um
saber proprio sobre a lingua que serve de contradiscurso aos discursos
dominantes (PEREIRA, 2009).
Dentre essas estrategias, encontram-se perguntas enderecadas ao
interlocutor que funcionam como checagens, ratificacoes, testagens e
que, em ultima instancia funcionam como a delimitacao de uma zona de
fronteira discursiva necessaria a autoria e que se sustenta, nas SDRs
apresentadas, pela mobilizacao da modalidade epistemica.
Em meio a movimentacao dessas, o estatuto das questoes formuladas
pelo sujeito-narrador toca pontos do real ja que elas emergem por meio
de uma contingencia que toca o impossivel (conforme aparenta serem essas
sequencias os unicos caminhos possiveis para o sujeito enunciar).
Sao ainda modos de elaborar subjetivamente os sintomas ideologicos
da separacao entre subjetividade e objetividade e entre verdade e
falsidade (PECHEUX, 1993) na partilha do conhecimento e na distribuicao
dos sentidos.
Consideracoes finais
O reconhecimento dessa dimensao do real somente indica que ha algo
que escapa aos sujeitos, nas suas ilusoes de controlar a lingua, e que
impede determinadas leituras do arquivo, ao mesmo tempo em que contribui
para reorganizar o movimento de varios sentidos implicados em questoes,
a saber: ser ou nao ser alfabetizado; ter mais ou menos capacidade;
saber mais ou menos; formas de contribuicao na construcao dos
conhecimentos (incluindo tecnologias como a alfabetizacao, as midias) e
no reconhecimento de outras formas de participacao social (contar
historias, por exemplo). Ou seja, ha um giro discursivo tal que
possibilita ao sujeito romper com algumas formacoes imaginarias
pertinentes inclusive a sua historia interativa (que nao cabem, nem e
proposito analisa-las aqui) e as filiacoes ideologicas que giram em
torno de sua condicao de nao alfabetizado, para sinalizar o modo
singular de sua pratica de contar historias colaborar com uma pesquisa
academica ou sustentar um reconhecimento social dirigido a sua forma
singular de emergir pela linguagem, o que possibilita o movimento das
praticas letradas a que nos referimos.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v35i4.20777
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TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetizacao. 9. ed. Sao Paulo: Cortez,
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Received on May 7, 2013.
Accepted on June 25, 2013.
Leda Verdiani Tfouni (1) *, Anderson Carvalho Pereira (2) e Lineide
Lago Salvador Mosca (1)
(1) Departamento de Psicologia, Universidade de Sao Paulo, Av.
Maria Octavia Pichionni Villa, 71, 14021-047, Ribeirao Preto, Sao Paulo,
Brasil.
(2) Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Itapetinga, Bahia,
Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: lvtfouni@usp.br