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文章基本信息

  • 标题:Towards the correct word: checkings and epistemic modality in the discursive game of oral narratives/Rumo a palavra certa: checagens e modalidade epistemica no jogo discursivo de narrativas orais.
  • 作者:Tfouni, Leda Verdiani ; Pereira, Anderson Carvalho ; Mosca, Lineide Lago Salvador
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2013
  • 期号:October
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 关键词:Optical radar

Towards the correct word: checkings and epistemic modality in the discursive game of oral narratives/Rumo a palavra certa: checagens e modalidade epistemica no jogo discursivo de narrativas orais.


Tfouni, Leda Verdiani ; Pereira, Anderson Carvalho ; Mosca, Lineide Lago Salvador 等


Introducao

Este trabalho investiga as manobras interpretativas que marcam a mobilizacao da memoria discursiva em narrativas orais produzidas por uma mulher nao alfabetizada, da cidade de Ribeirao Preto, Estado de Sao Paulo, Brasil. O enfoque e apontar de que modo algumas perguntas interpostas ao fluxo narrativo, a maneira de checagens enderecadas ao interlocutor, marcam a heterogeneidade discursiva, na qual se fazem presentes pontos de fuga do fio narrativo, bem como a irrupcao do estranhamento causado pela presenca virtual do 'outro/Outro', com as quais o sujeitonarrador deve lidar, ao mesmo tempo em que o auxiliam na sustentacao da autoria, atraves do uso da modalidade epistemica.

Analisaremos duas sequencias retiradas de um corpus formado por narrativas orais contadas por 'dona' Madalena, uma mulher nao alfabetizada, constituido por 34 narrativas, que foram coletadas e transcritas em dois periodos distintos: entre o final da decada de 1980 e inicio de 1990, e entre os anos de 2005 e 2007.

Em tais sequencias, elegemos para a analise as denominadas 'glosas metaenunciativas' (AUTHIER-REVUZ, 1998): comentarios, checagens feitas pelo narrador, que sinalizam a colocacao em jogo de diversos saberes comprometidos com o Outro, ao mesmo tempo em que colocam em xeque a circulacao dos saberes dominantes, pertencentes a um arquivo letrado. Como a narradora e analfabeta, teremos a oportunidade de analisar os estranhamentos que o discurso organizado da narrativa interpoe ao ato de narrar.

Aspectos teoricos

O estudo das modalidades tem sido objeto principalmente de tres disciplinas: Logica, Linguistica e Semiotica, havendo uma tendencia em integrar o resultado das indagacoes, e nao em separalas. A esse respeito, Darrault (1976, p. 3) afirma que "[...] dans le domaine de las modalites, il n'est plus guere possible d'imaginer de solution strictement monodisciplinaire".

Tradicionalmente, o estudo das modalidades ocupa-se das ideias de possibilidade e verdade, que, por sua vez, relacionam-se aos conceitos de proposicoes sinteticas (aquelas que sao contingentemente verdadeiras) e analiticas (as que sao verdadeiras em todos os mundos possiveis). As sinteticas relacionam-se a possibilidade, e as analiticas relacionam-se a necessidade do evento ou estado de coisas descrito pelas proposicoes. A formalizacao da necessidade e da possibilidade envolve tres tipos de modalidades: a aletica, a epistemica e a deontica.

E importante marcar que as modalidades linguisticas (lexicalizadas pela linguagem-objeto) caracterizam-se pela polissemia, como se pode ver em: 'Ele deve vir', que possibilita diversas leituras aleticas, epistemicas e deonticas: 'E necessario que ele venha'; 'Ele tem obrigacao de vir'; 'E possivel que ele venha'; 'E provavel que ele venha'; 'E certo que ele vira'. Tal fato prende-se ao carater arbitrario do signo.

Interessa-nos aqui as modalidades epistemicas, por servirem lexicalmente para exprimir a certeza e a incerteza, tema deste trabalho. Segundo Lyons (1977, p. 793), tal modalidade "[...] deals with the logical structure of statements which assert or imply that a particular proposition, or set of propositions, is known or believed". Incluem-se ai as atitudes proposicionais lexicalizadas como 'saber', 'acreditar', 'duvidar' palavras que denotam, em maior ou menor escala, o grau de comprometimento do falante com a 'verdade' expressa pela proposicao. A fim de tornar o conceito 'modalidade epistemica' mais claro, Tfouni (1986) propoe o seguinte criterio: devem ser consideradas epistemicas as construcoes que contenham uma avaliacao do falante sobre o fato enunciado. Assim, o que e colocado em questao nao e o fato em si, mas a crenca pessoal do enunciador acerca dos conteudos expressos pelo enunciado, ou seja: aquilo que o sujeito pensa que o fato e. Decorre dai que o uso das modalidades epistemicas estabelece um vinculo entre o enunciador e seu enunciado, onde esta em jogo o comprometimento do sujeito com a 'verdade' dos fatos expressos no enunciado, ou entao com o (des)conhecimento desses fatos.

A relacao entre as modalidades epistemicas e o arquivo torna-se evidente quando tomamos a definicao de arquivo para a Analise do Discurso (AD). Segundo Pecheux (1997, p. 56-57, grifo do autor):
   [...] os conflitos explicitos remetem em surdina a
   clivagens subterraneas entre maneiras diferentes de
   ler o arquivo (entendido aqui como 'campo de
   documentos pertinentes e disponiveis sobre uma
   questao').


O termo 'clivagem', sob a otica da AD e da Psicanalise, significa separacao radical e incontornavel, o que podemos relacionar com a divisao social em classes, e a distribuicao desigual de conhecimento que se estabelece como resultado. Sabe-se que tomar a palavra e um ato politico, que nao e exercido livremente. Ha, no imaginario social, ideologicamente regrado, uma divisao entre os que detem o conhecimento (os mais letrados, que podem discursiviza-lo), e os que nao tem acesso ao arquivo letrado (e, por mecanismos sutis de controle, sao proibidos de ocupar certas formacoes discursivas que veiculam aquele conhecimento). Segue-se dai que o acesso ao arquivo, e sua leitura, nao estao a disposicao de todos, fato que acentua a divisao (clivagem) entre classes, e a disputa surda pelo conhecimento.

Ao lado de um arquivo sobre o mundo que poderiamos aqui denominar de letrado, existem outros, muitos deles subterraneos, ignorados por muitos, desprezados ate, que circulam entre os povos destituidos da escrita. Tais clivagens vem colocar que em todo discurso ha outro, um 'estranho' com o qual e preciso lidar utilizando de manobras discursivo-argumentativas. Construido mais com base em um imaginario do que propriamente nos dados da realidade, esse outro/Outro interpoe entre o sujeito e seu dizer o campo do nao inteligivel. Certeau (1994) afirma, a respeito, que o outro, a alteridade, lanca o 'mesmo' nos territorios da 'diferenca', rompendo o mundo calmo das certezas, criando, como consequencia, a necessidade de compreensibilidade. A certeza e a incerteza (a duvida) coexistem quando se trata dos usos cotidianos da lingua. Ha um confronto entre praticas orais e letradas, que, no dizer de Gadet e Pecheux (2004) produz uma especie de subversao social ou 'dispersao anagramatica', e isso ocorre quando a 'massa toma a palavra': uma inovacao neologica e uma transcategorizacao sintatica que induzem na lingua uma gigantesca agitacao, a qual e comparavel aquela realizada pelos poetas, embora em menor dimensao. Essas 'novidades' surgidas na propria lingua impelem a pesquisa e nos obrigam a confrontar um sujeito que nao se cala e, por isso, atrapalha.

Nos recortes de narrativas orais que serao analisados a seguir, privilegiaremos esses momentos de embate entre dois saberes, que, na estrutura da lingua, sao indiciados pelo uso de modalidades epistemicas, que aparecem sob a forma de glosas metaenunciativas (AUTHIER-REVUZ, 1995), ou comentarios feitos pelo sujeito-narrador, que indiciam um estranhamento com relacao ao campo semanticamente estabilizado dos arquivos (PECHEUX, 1997). A funcao dessas ocorrencias e de assegurar um modo particular de sustentar a circulacao de outros saberes, que provocam rupturas a formacao discursiva dominante (letrada), saberes que permitem ao sujeito ocupar posicoes discursivas de resistencia.

As perguntas de checagem enderecadas ao interlocutor fazem parte desse jogo politico do saber. Embora nao haja um conhecimento que seja mais verdadeiro, os sentidos se enlacam conforme um jogo de poder entre o sujeito-narrador e as formacoes imaginarias emergentes no que ele imagina que o interlocutor acha que seja possivel (ou impossivel) dizer, para sustentar o fio narrativo. Cria-se uma cena discursiva que tanto pode ser de negociacao, quanto de embate, entre saberes dissidentes.

Sabendo que a argumentacao esta presente em todo e qualquer discurso, em maior ou menor grau, subjacente a todo ato de interlocucao, pode ela alimentar uma argumentacao do tipo colaborativo, que se da por negociacao, ou entao pelo confronto de discursos que se chocam, suscitando contradiscursos numa atitude de resistencia ao que se postula inicialmente.

Parte-se do principio de que onde ha polemica e conflito, ha argumentacao, uma vez que os parceiros da interlocucao sao capazes de reagir e de exercer a possibilidade de refutacao (a refutatio), ainda quando impedidos de faze-lo por razoes sociais e politicas. Muitas vezes e o silencio que torna significativa a nao manifestacao de uma das partes envolvidas na cena enunciativa que se apresenta. Nao sendo simetricas as relacoes nela implicadas, desenvolve-se um jogo de forcas que pode ir ate uma 'quebra de bracos'.

As situacoes preocupantes sao, entretanto, aquelas sub-repticias, que nao se declaram como tais, mas que uma leitura dos mecanismos que as constituem sao trazidos a tona, por constituirem manobras de ocultamento ou de escamoteamento, grande parte das vezes. Percorre-se, entao, desde o espaco das falacias, tomadas como ma fe ou perversidade, ate os procedimentos mais sutis das alusoes, insinuacoes e ironias, que trazem em seu bojo os conhecimentos compartilhados pelas coletividades em questao, ou seja, seu universo de crencas e de lugares comuns.

De qualquer forma, trata-se de estrategias discursivo-argumentativas com vistas a execucao dos propositos que se tem em mente e com as quais se pretende o exito dos objetivos a alcancar. O que nao se faz ver claramente por esses expedientes deliberados, torna-se recuperavel pelas manifestacoes que as brechas do discurso deixam entrever e que irao compor o sentido global do discurso, incluindo elementos da cena enunciativa, tambem reveladores, os pressupostos em que repousa, os 'lugares' socio-historicos que nao so constituem um pano de fundo, mas se inserem nas opinioes e tomadas de decisoes decorrentes.

Segundo MOSCA (2007, p. 304), perceber as estrategias retoricas equivale a ter acesso a interpretacao, ou seja, a chave do sentido. Entra aqui a questao da identidade dos interlocutores, das representacoes mutuas que se fazem uns dos outros, incluindo-se ai o processo de estereotipagem, assim como os valores culturais sob os quais transitam as praticas discursivas e suas determinacoes de poder.

Analise

Conforme foi dito acima, serao analisados tres recortes, que compoem sequencias discursivas de referencia (SDR), retirados de duas narrativas orais criadas por um sujeito analfabeto (os titulos sao, respectivamente, Joaozinho Ladrao e Tres Filhos Gemeos). Pretendemos assinalar ali lugares na materialidade linguistico-discursiva em que a certeza e/ou a incerteza emergem. Vamos mostrar que ha, nesses acontecimentos, uma construcao virtual do sujeito-narrador, por meio de questoes enderecadas ao outro (interlocutor) e ao Outro (interdiscurso), que podem seguir estrategias discursivas daquele sujeito para contornar a heterogeneidade constitutiva.

Em certa medida, a analise tenta apontar as estrategias enunciativas articuladas em lugares imprevisiveis e singulares da nao coincidencia do dizer (AUTHIER-REVUZ, 1998) e indiciados por gestos de leitura que o sujeito-narrador opera sobre o proprio fio narrativo, por meio de glosas metaenunciativas. Vejamos:

SDR 1--O rei ia manda ele la pra mata. Pra nao casa com a princesinha. E ele vestiu de veio sem fala pro rei, sem nada. E arranjo um ... um ... uma capanga assim de raiz de durmidera e pois aqui assim. E arranjo bastante gengibre tamem. .. gengibre de faze quentao e pois de lado. E foi. E pareceu la, aquele veinho feio la na porta do ... do quartel. Ai, o ... o ... '[--'Vo fala o delegado, que eu nao sei quem e'--explica-se.]' O delegado veio e falo: '.....'. (Joaozinho Ladrao).

Nota-se que o fio narrativo (o intradiscurso) e interrompido diante da nao coincidencia entre 'delegado' e 'quartel'. Assim, temos uma 'quebra' de expectativa, uma nao correspondencia entre 'porta do ... do quartel' e 'vo fala o delegado, que eu nao sei quem e'. Com a diferenca marcada entre 'quartel' e 'delegado', pontuada pelo sujeitonarrador por suas hesitacoes, temos pelo menos duas substituicoes que mobilizam a naturalizacao da nomeacao: primeiramente, 'quartel' esta no lugar de 'delegacia' e, como segunda substituicao temos 'delegado' no lugar de qualquer cargo militar do exercito (vamos supor que seja 'coronel'). Criase, assim, um espaco de deriva, onde sao possiveis pelo menos quatro combinacoes: quartel-delegado; quartel-coronel; delegacia-delegado; delegacia-coronel.

SDR 2--Fizero uma festa, o moco ta oiando, num era ele, era so irmao daquele que morreu. Ai, ai quando foi pa posa, foro dormi, junto. A moca. Ai eles foro dormi junto, ai o irmao dele chego ['ele num era o Joaozinho, 'ce sabe qui num era, ne?' Pode se o Zezinho, ne?' dirige-se ao entrevistador.] O Zezinho chego, pois a moca, pois a moca dormi aqui, atravesso a espada dele aqui, assim pa ca, ele travesso a ispada e ele durmiu pra la. (Tres Filhos Gemeos).

SDR 3--E voce, Jose, o que ce vai levando? Ele falo assim: --Eu? A minha deproma ... eu vo levando um sapato bunito de camurca pra minha mae! '[--Nao sei fala muito bem. Entende, ne?]' De camurca, que eu fiz pa minha mae e vo levano tamem ... fiz tamem otro pra minha tia e fiz um lindo chinelo pa minhas ... pa minhas irma. E eu vo levando ... eu nao vo levando muita coisa nao, mas o que eu vou levando e isso ai. E ... e ... eu vo levando tambem uma butina muito bunita, que eu fiz pro meu pai. E vou levando a deproma pro meu pai ve que eu prendi mesmo. (Joaozinho Ladrao)

Nestas duas ultimas sequencias, o destaque esta no fato de que o sujeito-narrador impede a aparicao de uma forma relatada do discurso do Outro, no momento em que diz "[...] num era, ne" e "Entende, ne?", para inserir uma dramatizacao dessa presenca do Outro, como se ela pudesse ser 'congelada' (no sentido do que Authier-Revuz (1995) aponta como 'de-figement', grosso modo, um 'congelamento' da presenca do Outro).

O efeito produzido e de que o sujeito-narrador constroi um sentido de certeza que apaga o desnivel de conhecimento ali mobilizado e que se mostra a seu favor, naturalizando uma forma de nomear.

Trata-se de uma construcao enunciativa revestida de notavel implicacao do sujeito-enunciador, em que ha

[...] cette configuration enonciative comme celle d'un dedoublement du dire d'un fragment X par un auto-commentaire prenant en compte les mots du dire (AUTHIER-REVUZ, 1995, p. 17).

Trata-se de um desdobramento do dizer que nao vai alem de uma obrigatoriedade de o enunciado ter que se haver consigo mesmo, por meio da implicacao as proprias palavras usadas. Neste caso, nota-se o destaque as nao coincidencias entre relacao entre coisa e nomeacao, que, conforme Authier-Revuz (1995) e uma das possibilidades em que se implicar no proprio dizer ocorre pelo uso de comentarios sobre palavras que sustentam a ilusao de rompimento do sentido, ao mesmo tempo em que fazem uso de efeitos de literalidade, uso este que dribla o escape a polissemia.

E o caso da modalizacao entorno ao uso do significante 'delegado'. A modalizacao 'que eu num sei quem e' em destaque requer do interlocutor tanto a mobilizacao de um sentido literal para 'delegado' quanto permite que mesmo que nao seja designado no fio narrativo de maneira precisa 'quem e o delegado de que se trata', haja a despeito deste escape ao equivoco, a continuidade do dizer.

No caso das narrativas, esses efeitos de pre-construido estao ligados a apoios que o sujeitonarrador faz no seu modo de construir o outro virtual para sustentar o fio narrativo, outro este que autoriza e legitima, ou nao, suas reflexoes meta-enunciativas em relacao a um saber nao sabido; compartilhado sob a forma de evidencia e disfarce que possibilita uma leitura singular do arquivo.

Por meio de modalizacoes epistemicas--entendidas como mecanismos enunciativos complexos (comentarios, checagens)--o sujeito-narrador, a fim de assegurar o controle da interpretacao, promove manobras argumentativas, por meio de um efeito de estranhamento da cadeia significante, colocando em xeque o compartilhamento e a divisao da leitura dos arquivos.

Em termos discursivos, a clivagem do sujeito marcada pelo vacilo e a duvida, no plano da enunciacao, e atravessada pelo determinante politico, pois e correlata da divisao social do trabalho de interpretacao do arquivo (PECHEUX, 1997).

Por meio deste modo singular, por meio do qual, o sujeito-narrador mostra-se cindido, diante do enfrentamento da divisao da leitura do arquivo resultam dois modos de resistencia caros ao sujeito-narrador: primeiro, podemos afirmar que a veiculacao da questao formulada na esfera da enunciacao se da por meio da colocacao em xeque dos saberes dominantes. Isto demonstra uma ruptura na crenca de que o jogo dos sentidos e apanagio dos discursos altamente letrados.

Decorrente deste primeiro gesto de resistencia, temos como segunda forma de resistencia, a valorizacao dos usos cotidianos da lingua, que, em sua complexidade, marcam o valor das determinacoes do inconsciente e do politico e rompem com a crenca naturalizada de que a construcao de hipoteses sobre a lingua e seus usos esta diretamente relacionada ao tempo de escolaridade ou ao grau de escolarizacao (TFOUNI, 1992, 2010).

De modo geral, mesmo com suas determinacoes ideologicas, essas formas de comentarios contribuem para contornar pontos do real por meio de um funcionamento discursivo que possibilita uma tomada de posicao discursiva do sujeito-narrador, a qual se sustenta em dois pontos: na tentativa de apontar a assertividade de um saber que o sujeito-narrador 'domina' e do qual e refem, e no estranhamento de formas do saber que lhe sao caras, pois o poe em suspenso entre o nao saber e o saber (contingencia), e obriga-o a lidar com a falta simbolica pelo uso da modalidade. Ao enunciar 'eu nao sei', o sujeito se coloca diante de outro/Outro que ele imagina que sabe, como atesta o segmento 'entende, ne?'. No entanto, por uma manobra argumentativa, o sujeito coloca o interlocutor empirico como testemunha e cumplice desse nao saber, como atestam os segmentos 'entende, ne?', 'ce sabe qui num era, ne?'

Essas sao as trampolinagens do cotidiano, de que nos fala de Certeau (1994). Comentando este autor, Sousa Filho (2002, p. 21) pergunta:
   Como agir na desigualdade com os poderosos?
   Como agir face a forca do sistema, mas sem
   confronta-lo? Com sua 'teoria das praticas
   cotidianas', Michel de Certeau (2001) trouxe para o
   centro da analise sociologica do cotidiano praticas
   desdenhadas por intelectuais dogmaticos e puristas
   como 'secundarias', 'sem importancia', juntando-se a
   uma producao teorica que valoriza a analise da vida
   cotidiana, ainda que sob prismas divergentes.
   O autor focaliza as 'artes de fazer', dos subterfugios,
   apontadas posteriormente por Certeau como
   invencoes cotidianas que marcam o jogo das relacoes
   com a ordem e dos individuos entre si. Que sao as
   'astucias', a arte da 'trampolinagem' senao versoes do
   'estranho' ao sistema? Mas 'estranho' que nenhum
   homem ignora, seja na versao da experiencia mistica
   (da possessao, do extase, da bruxaria), seja na
   loucura, seja nos pequenos atos transgressivos
   anonimos (grifos do autor).


De Certeau faz referencia aos intelectuais que trabalham em uma zona de resistencia as imposicoes ideologicas das ciencias regias, dedicam-se principalmente a estudar aquilo que retorna simbolicamente (no discurso) do que foi recalcado no real da luta de classes, as vozes silenciadas e veladas: a

[...] dominacao de uma economia socio-cultural, a organizacao de uma razao, a escolarizacao obrigatoria, o poder de uma elite e, enfim, o controle da consciencia esclarecida. ... Diz o autor: Conheco pesquisadores habilidosos nesta arte do desvio que e um retorno da etica, do prazer e da invencao a instituicao cientifica [...] muitas vezes levando prejuizo, tiram alguma coisa a ordem do saber para ali gravar 'sucessos' artisticos e ali inserir os graffiti de suas dividas de honra. (CERTEAU, 1994, p. 101, grifo do autor)

Situando-nos por identificacao com o trabalho de resistencia descrito, acrescentamos que a tarefa que nos cabe ainda e de considerar de que modo essa desigualdade envolvida com o real da historia articula formas miticas (enigmas) que sao incorporados na construcao de narrativas orais produzidas por uma mulher nao alfabetizada, por meio da alienacao aos sentidos dominantes e de estrategias de construcao de um saber proprio sobre a lingua que serve de contradiscurso aos discursos dominantes (PEREIRA, 2009).

Dentre essas estrategias, encontram-se perguntas enderecadas ao interlocutor que funcionam como checagens, ratificacoes, testagens e que, em ultima instancia funcionam como a delimitacao de uma zona de fronteira discursiva necessaria a autoria e que se sustenta, nas SDRs apresentadas, pela mobilizacao da modalidade epistemica.

Em meio a movimentacao dessas, o estatuto das questoes formuladas pelo sujeito-narrador toca pontos do real ja que elas emergem por meio de uma contingencia que toca o impossivel (conforme aparenta serem essas sequencias os unicos caminhos possiveis para o sujeito enunciar).

Sao ainda modos de elaborar subjetivamente os sintomas ideologicos da separacao entre subjetividade e objetividade e entre verdade e falsidade (PECHEUX, 1993) na partilha do conhecimento e na distribuicao dos sentidos.

Consideracoes finais

O reconhecimento dessa dimensao do real somente indica que ha algo que escapa aos sujeitos, nas suas ilusoes de controlar a lingua, e que impede determinadas leituras do arquivo, ao mesmo tempo em que contribui para reorganizar o movimento de varios sentidos implicados em questoes, a saber: ser ou nao ser alfabetizado; ter mais ou menos capacidade; saber mais ou menos; formas de contribuicao na construcao dos conhecimentos (incluindo tecnologias como a alfabetizacao, as midias) e no reconhecimento de outras formas de participacao social (contar historias, por exemplo). Ou seja, ha um giro discursivo tal que possibilita ao sujeito romper com algumas formacoes imaginarias pertinentes inclusive a sua historia interativa (que nao cabem, nem e proposito analisa-las aqui) e as filiacoes ideologicas que giram em torno de sua condicao de nao alfabetizado, para sinalizar o modo singular de sua pratica de contar historias colaborar com uma pesquisa academica ou sustentar um reconhecimento social dirigido a sua forma singular de emergir pela linguagem, o que possibilita o movimento das praticas letradas a que nos referimos.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v35i4.20777

Referencias

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CERTEAU, M. A invencao do cotidiano: 1. Artes de fazer; Petropolis: Vozes, 1994. p. 99-100. DARRAULT, I. Presentation. Langages, v. 2, n. 43, p. 3-9, 1976.

GADET, F.; PECHEUX, M. A lingua inatingivel: o discurso na Historia da Linguistica. Campinas: Pontes. 2004.

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PECHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In.: ORLANDI, E. P. (Org.). Gestos de leitura: da historia no discurso. Campinas: Unicamp, 1997. p. 55-67.

PECHEUX, M. Semantica e discurso: uma critica a afirmacao do obvio. Campinas: Unicamp, 1993.

PEREIRA, A. C. Mito e autoria nas praticas letradas. 2009. 332f. Tese (Doutorado em Psicologia)-Universidade de Sao Paulo, Ribeirao Preto, 2009.

SOUSA FILHO, A. Michel de Certeau: Fundamentos de uma sociologia do cotidiano. Sociabilidades, v. 2, n. 2, p. 129-134, 2002.

TFOUNI, L. V. Adultos nao-alfabetizados: o avesso do avesso. 1986. 239f. Tese (Doutorado em Linguistica)-Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1986.

TFOUNI, L. V. Letramento e analfabetismo. 1992. 180f. Tese (Livre docencia)-Universidade de Sao Paulo, Ribeirao Preto, 1992.

TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetizacao. 9. ed. Sao Paulo: Cortez, 2010.

Received on May 7, 2013.

Accepted on June 25, 2013.

Leda Verdiani Tfouni (1) *, Anderson Carvalho Pereira (2) e Lineide Lago Salvador Mosca (1)

(1) Departamento de Psicologia, Universidade de Sao Paulo, Av. Maria Octavia Pichionni Villa, 71, 14021-047, Ribeirao Preto, Sao Paulo, Brasil.

(2) Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Itapetinga, Bahia, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: lvtfouni@usp.br

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