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文章基本信息

  • 标题:Scenography and authorship in Campo Geral/Cenografia e autoria em Campo Geral.
  • 作者:Fossey, Marcela Franco
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2012
  • 期号:July
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Falar em literatura e sempre uma tarefa complexa. Sua natureza estetica pode facilmente nos levar a entende-la como algo que tem um funcionamento absolutamente distinto de outras praticas discursivas caracteristicas de nossa sociedade. A tradicao romantica muito nos convenceu de que a obra e resultado de uma mente inspirada, de uma individualidade criadora. Desta perspectiva, a concepcao de um texto literario teria inicio com a necessidade de um autor exprimir-se, o que desencadearia uma serie de acoes subsequentes: concepcao de um conteudo, escolha de um suporte e de um genero, redacao do texto, busca de uma instancia de difusao, descoberta de um possivel destinatario e eventual reconhecimento de sua legitimidade literaria. Neste sentido, o autor seria um ponto de origem sem comunicacao com o exterior, e sua obra, um espelho de sua percepcao do mundo e organizacao de conteudos que existem independentes do processo de escrita.

Scenography and authorship in Campo Geral/Cenografia e autoria em Campo Geral.


Fossey, Marcela Franco


Introducao

Falar em literatura e sempre uma tarefa complexa. Sua natureza estetica pode facilmente nos levar a entende-la como algo que tem um funcionamento absolutamente distinto de outras praticas discursivas caracteristicas de nossa sociedade. A tradicao romantica muito nos convenceu de que a obra e resultado de uma mente inspirada, de uma individualidade criadora. Desta perspectiva, a concepcao de um texto literario teria inicio com a necessidade de um autor exprimir-se, o que desencadearia uma serie de acoes subsequentes: concepcao de um conteudo, escolha de um suporte e de um genero, redacao do texto, busca de uma instancia de difusao, descoberta de um possivel destinatario e eventual reconhecimento de sua legitimidade literaria. Neste sentido, o autor seria um ponto de origem sem comunicacao com o exterior, e sua obra, um espelho de sua percepcao do mundo e organizacao de conteudos que existem independentes do processo de escrita.

Possivelmente em decorrencia desta concepcao de autoria, a literatura nao tem sido um corpus privilegiado pela AD. Esse distanciamento de corpora tipicamente literarios resulta, em boa medida, da concepcao de sujeito caracteristica desta teoria: fragmentado, atravessado pelo inconsciente e pela ideologia, cujo discurso deriva necessariamente de um ja-dito. Nesse quadro teorico, que desloca o sujeito de um suposto lugar de origem dos sentidos, lidar com aquilo que reconhecemos como estilo individual mostra-se um problema: como tornar compativel a ideia de um criador singular responsavel por uma obra igualmente singular com a nocao de assujeitamento?

Uma saida para tal impasse e considerar o fato literario como discurso, desmantelando o carater central dessa origem que seria a instancia criadora. Uma proposta desta natureza--presente em Maingueneau (2006)--nao separa a instituicao literaria de suas condicoes de enunciacao. Como discurso, a literatura e indissociavel dos dispositivos enunciativos que a tornam possivel e dos espacos onde e produzida, avaliada e administrada. Levar em consideracao as condicoes de enunciacao de uma obra implica remete-la a relacao de interdependencia que ha entre autor, publico e suporte material. Implica, igualmente, considerar a imbricacao entre uma organizacao social e uma atividade enunciativa.

Isso quer dizer que para produzir enunciados reconhecidos como literarios, o escritor deve se constituir como tal. Para tanto, nao basta deixar-se levar por uma inspiracao arrebatadora; e preciso estar na ordem do discurso, em que tantos outros atores tem tambem um papel nao menos importante. Ha, desta maneira, uma rede de aparelhos que garantem e estabilizam os contratos genericos considerados literarios em uma sociedade como a nossa, o que evidencia, em boa medida, tanto o carater institucionalizado da pratica literaria quanto a relacao indissociavel desta institucionalizacao com as possibilidades enunciativas.

Maingueneau (2006) propoe ainda mais dois planos dos quais toda obra participa: o espaco literario e tambem um 'campo discursivo', isto e, um conjunto de posicionamentos esteticos que se encontram, mais ou menos explicitamente, em relacao de concorrencia e que se delimitam mutuamente. Cada posicionamento constitui uma identidade que deriva de certas praticas, que envolvem tanto caracteristicas dos textos propriamente ditos (pressupostos esteticos, generos e temas privilegiados, uso especifico do idioma) como um modo de os autores estarem no mundo. Falamos, por exemplo, em escolas e movimentos literarios: o modernismo remete a um conjunto de praticas--esteticas e sociais--bastante distintas do romantismo. A nocao de campo implica, ainda, a existencia de regras que o organiza e o caracteriza as quais seus membros obedecem de maneira mais ou menos inconsciente e esta profundamente associada a funcao social atribuida a um conjunto de discursos, conforme proposta de Bourdieu (1983).

Por fim, a pratica literaria envolve, tambem, um arquivo. Usado, nesse contexto, com um significado proximo de posicionamento discursivo, a nocao de arquivo designa,

[...] a memoria interna da literatura, memoria que, para alem do intertexto no sentido estrito, isto e, outras obras, presentes em alguma biblioteca imaginaria, inclui tambem, [...] lendas (MAINGUENEAU, 2006, p. 91).

Esses tres planos deslocam a atividade literaria de um suposto lugar 'alem' ou 'aquem' das relacoes sociais, realocando-a onde as obras apenas podem ter sentido em sua relacao (inescapavel) com o interdiscurso. Sao, deste modo, nos numa rede interdiscursiva e estao necessariamente atreladas a praticas sociais.

Tendo em vista esta proposta de abordagem do fato literario, que considera impossivel a dissolucao do vinculo que ha entre o intra e extradiscursivo, apresento, neste trabalho, duas questoes que me parecem, em um primeiro momento, especialmente relevantes e, em boa medida, problematicas. Para tanto, proponho uma analise da novela Campo Geral, de Guimaraes Rosa, chamando a atencao para aspectos caracteristicos desta obra roseana.

Uma cena de enunciacao

A primeira dessas questoes esta relacionada a aspectos que compoem a materialidade textual desta novela--e que sao constitutivos de sua literariedade. Nesse sentido, o genero e os elementos que compoem a materialidade linguistica do texto nao sao um 'involucro contingente' de um conteudo preexistente, mas essenciais para os efeitos de sentido que emergem da obra. Maingueneau (2004) propoe que os textos possuem, entre outras coisas, uma classificacao pragmatica (sao religiosos, politicos, literarios, cientificos ...) e tambem uma classificacao generica (sao um sermao, uma reportagem, uma novela, um oficio ...), que ele chama, respectivamente, de cena englobante e cena generica. Desta perspectiva, para cada texto, ha um quadro cenico que sustenta, em boa medida, os processos de significacao que dele derivam, pois nao lemos ciencia do mesmo modo como lemos ficcao, nem lemos uma bula como lemos um poema, nem uma publicidade como uma ata, e assim por diante.

Ha uma relacao de restricao entre cena englobante e cena generica. Nem todos os tipos de discurso podem se materializar em todos os generos: o discurso cientifico, por exemplo, nunca e veiculado na forma de um poema ou de uma novela. Esses sao generos tipicamente literarios. Espera-se que as 'descobertas' sejam comunicadas na forma de um paper que seja publicado em uma revista especializada, ou de um abstract nos anais de um congresso, ou de uma palestra em um encontro de especialistas ...

Mas alem desse quadro cenico, os textos sao constituidos de elementos dos quais deriva uma cenografia: lexico, estruturas sintaticas tipicas, temas, imagens associadas, ethos. Com esses elementos e que o leitor se depara primeiramente. No caso de generos tipicamente artisticos, a originalidade e maleabilidade da cenografia e um traco bastante relevante. De fato, ha muitas maneiras de contar uma historia: na forma de um diario escrito por uma menina 'cacadora' de fadas (como em O livro de fadas prensadas de Lady Cottington) ou na forma de lembrancas de infancia de um menino que vive no sertao mineiro (como em Campo Geral).

Embora narrada em terceira pessoa, Campo Geral e uma historia filtrada unicamente pelo ponto de vista de Miguilim, um menino de oito anos que vive com sua familia--pais, irmaos, um tio e agregados num remoto lugarejo do sertao, o Mutum, 'lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte'. E atraves do seu olhar que temos acesso ao mundo duro dos adultos, sempre cercado de traicoes, violencias e silencios. Miguilim e um menino inteligente e sensivel, que insere o leitor em um universo triste e melancolico, ainda que permeado pelas fantasias de uma crianca.

Esse universo e construido ao longo de toda a narrativa e deriva de uma cenografia que se constitui por meio de varios elementos presentes no fio do discurso. Essa cenografia institui uma topografia--um espaco, o Mutum, lugar distante, encravado no sertao mineiro roseano e tambem a intimidade de uma familia isolada no sertao--e, igualmente, uma cronografia--um tempo, o da infancia, ou das descobertas e da 'aproximacao da vida adulta' ou 'do afastamento da infancia'.

Mas, alem disso, se trata de um espaco e de um tempo atravessado constantemente por um lirismo agudo, que emerge do uso que Guimaraes Rosa faz da lingua. Sao deslocamentos de sintaxe, rimas, aliteracoes, um tipo de vocabulario absolutamente peculiar (repleto de neologismos, de derivacoes nao previstas, de arcaismos) que, em seu conjunto, e tanto condicao quanto efeito da obra. Isto e, deste uso da lingua deriva uma cenografia que constitui o texto, que, por sua vez, constitui essa cenografia, em movimento circular e interdependente.

Vejamos um trecho dessa novela:

(1) Mas, para o sentir de Miguilim, mais primeiro havia a Pingo-de-Ouro, uma cachorra bondosa e pertencida de ninguem, mas que gostava mais era dele mesmo. Quando ele se escondia no fundo da horta, para brincar sozinho, ela aparecia, sem atrapalhar, sem latir, ficava perto, parece que compreendia. Estava toda sempre magra, doente da saude, diziam que ia ficando cega. Mas teve 'cachorrinhos'. Todos morreram, menos um, que era tao lindo. Brincava com a mae, nunca se tinha visto a Pingo-de-Ouro tao alegre. O 'cachorrinho' era com-cor com a Pingo: os dois em amarelo e nhalvo, 'chovidinhos'. Ele se esticava, rapava, com as 'patinhas' para adiante, arrancando terra mole preta e jogando longe, para tras, no pe da roseira, que nem quisesse tirar de dentro do chao aquele cheiro bom de chuva, de fundo. Depois virava cambalhotas, rolava de costas, sentava-se para sacudir, seus 'dentinhos' brilhavam para muitas distancias. Mordia a cara da mae, e Pingo-de-Ouro se empinava--o filho ficava pendurado no ar. Dai corria, 'boquinha' aberta, revinha, pulava na mae, vinte vezes. Pingo-de-Ouro abocava um galho, ele corria, para tomar, latia 'bravinho', se ela o mordia forte. 'Alegrinho' e sem vexames, nao tinha vergonha de nada, quase nunca fechava a boca, ate ria. Logo entao, passaram pelo Mutum uns tropeiros, dias que demoraram, porque os burros deles estavam quase todos mancados. Quando tornaram a seguir, o pai de Miguilim deu para eles a cachorra, que puxaram amarrada numa corda, o 'cachorrinho' foi choramingando dentro do balaio. Iam para onde iam. Miguilim chorou de brucos, cumpriu tristeza, solucou muitas vezes. Alguem disse que aconteciam casos, de cachorros dados, que levados para longe leguas, e que voltavam sempre em casa. Entao ele tomou esperanca: a Pingo-de-Ouro ia voltar. Esperou, esperou, sensato. Ate de noite, pensava fosse ela, quando um cao repuxava latidos. Quem ia abrir a porta para ela entrar? Devia de estar cansada, com sede, com fome.--"Essa nao sabe retornar, ela ja estava quase cega ..." Entao, se ela estava quase cega, porque o pai a tinha dado para estranhos? Nao iam judiar da Pingo-de-Ouro? Miguilim era tao pequeno, com poucas semanas se consolava. Mas um dia contaram a ele a estoria do Menino que achou no mato uma cuca, cuca cuja depois os outros tomaram dele e mataram. O Menino Triste cantava, chorando:

"Minha Cuca, cade minha Cuca? Minha Cuca, cade minha Cuca?! Ai, minha Cuca Que o mato me deu! ..."

Ele nem sabia, ninguem sabia o que era uma cuca. Mas, entao, foi que se lembrou mais de Pingo-de-Ouro: e chorou tanto, que de repente pos na Pingo-de-Ouro esse nome tambem, de Cuca. E desde entao dela nunca mais se esqueceu (ROSA, 1977, p. 10-11, grifos nossos).

Esse excerto revela muitos elementos textuais e narrativos que estao presentes ao longo de toda a novela. Um deles e como o mundo dos adultos interfere negativamente num cenario infantil que e de pura ternura. O pai da a cachorra que Miguilim tanto gosta para forasteiros e esse sera um entre os tantos fatos dolorosos que marcam a infancia da personagem. Esse confronto entre os dois universos --dos adultos e das criancas--e um dos temas tratados nesta obra. Muito frequentemente, as acoes dos adultos da historia--especialmente as do pai sempre entristecem o mundo repleto de sensibilidade e emocoes das criancas. A atitude do pai, que possivelmente nem se da conta da relacao afetiva que ha entre seu filho e Pingo-de-Ouro e menos ainda da debilidade da cachorra, revela a fragilidade das criancas diante das decisoes dos adultos. A tristeza que esse excerto desperta resulta exatamente da contraposicao entre a sensibilidade do mundo infantil e a brutalidade do mundo dos adultos. A contraposicao entre brutalidade e sensibilidade da a toada de toda a narrativa, fazendo emergir da obra um 'tom' profundamente melancolico.

Alem disso, percebemos que, embora a narrativa seja em terceira pessoa, a descricao da cena e filtrada pelos olhos de Miguilim. A ternura que envolve toda a descricao da cena da Pingo-de-Ouro brincando com seu filhote sustenta a ligacao entre o modo de dizer e a corporalidade da personagem. O uso abundante de diminutivos (em italico no exemplo) reforca esse efeito e e uma das formas em que e marcada a expressividade da linguagem infantil, dando um tom singelo a descricao da cena. De fato, o uso de diminutivos tem um papel crucial na constituicao desta cenografia. Eles aparecem em muitas passagens do texto, impregnando a voz do narrador com percepcao infantil de Miguilim:

(2) [...] sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre, na ponta de uma 'correntinha', e subia um punhado d'agua. Mas quase sempre eram secos os caminhos, nas chapadas, entao Tio Terez tinha uma 'cabacinha' [...]; uma 'cabacinha' entrelacada com cipos, que era tao formosa (ROSA, 1977, p. 6, grifos nossos).

(3) o pai ralhou mais, e, como no outro dia era de domingo, levou o bando dos 'irmaozinhos' para pescaria no corrego; e Miguilim teve de ficar em casa, de castigo (ROSA, 1977, p. 6, grifos nossos).

(4) Chica era tao 'engracadinha', clara, 'mariolinha', muito menor do que Drelina, mas era a que sabia mais brinquedos, botava todos para rodar de roda, ela cantava tirando completas cantigas, dancava 'mocinha' (ROSA, 1977, p. 15, grifos nossos).

(5) O Dito, que era o 'irmaozinho corajosozinho' dele, ele ia arrenegar? (ROSA, 1977, p. 28, grifos nossos).

(6) Depois, a gente cavacava para tirar minhocas, dar para as 'perdizinhas'. Mas o mico-estrela pegou as tres, matou, foi uma pena, ele abriu as 'barriguinhas' delas. Miguilim nao contou ao Dito, por nao entristecer.--"As 'perdizinhas' estao 'assustadinhas', estao crescendo por demais ... Amanha e o dia de Natal, Dito!" (ROSA, 1977, p. 74, grifos nossos).

E bastante relevante o fato de uso dos diminutivos cair radicalmente depois da morte de Dito, irmao mais novo e querido de Miguilim, em decorrencia do tetano. Essa quase ausencia de diminutivos subsequente a morte do irmao faz sentir no texto como essa experiencia tao dura afasta Miguilim de um mundo essencialmente doce e infantil. Desta forma, esse fato tragico, que foi um divisor de aguas na vida da personagem, adquire materialidade, no texto, por meio da presenca e posterior ausencia dos diminutivos.

Consequentemente, o tom da narrativa muda. A melancolia que antes convivia com a delicadeza e a sensibilidade, e substituida por uma tristeza dolorida, quase resignada:

(7) Pai encabou uma 'enxada pequena'.--"Amanha, amanha, este menino vai ajudar, na roca". Nem triste, nem alegre, la foi Miguilim, de manha, junto com o Pai e Luisaltino (ROSA, 1977, p. 83, grifos nossos).

(8) No Dito, pensava sempre. Mas mesmo quando nao estava pensando conseguido, dentro dele parava uma tristeza: tristeza calada, completa, comum das coisas quando as pessoas foram embora (ROSA, 1977, p. 85).

Os dois exemplos acima descrevem, de certa forma, a tristeza que toma conta do menino. Alem disso, chamo a atencao para o fato de, no exemplo (7), o pai colocar cabo numa 'enxada pequena', e nao em uma 'enxadinha'--dado que confirma, de certo modo, a funcao de demarcacao de um 'antes' e um 'depois' que os diminutivos exercem no encadeamento narrativo.

Essa pequena analise tem como objetivo mostrar o papel absolutamente relevante da cenografia desta novela para os sentidos que ela mobiliza. Estabelecese que essa cenografia de onde vem a fala e precisamente a cenografia necessaria para enunciar como convem. Miguilim, o pai, a mae, o Mutum nao seriam o que sao se essa historia--esse mesmo 'conteudo'--fosse contado de uma outra forma. Deste modo, essa cenografia nao e um quadro contingente de uma mensagem que se poderia transmitir de diversas maneiras. Toda a sensibilidade, a delicadeza, a melancolia, a tristeza dessa obra se revela por meio do 'como' da enunciacao, e nao por uma caracterizacao explicita de como eram os personagens e sua relacao com o lugar, com os animais, com a vegetacao. Por isso, dizemos que a cenografia nao designa a si mesma, mas se mostra.

Relatos de infancia?

Campo Geral mostra-se especialmente interessante para este trabalho devido ao fato de muitos criticos a considerarem uma autobiografia. Desta forma, essa novela revelaria um Guimaraes Rosa crianca, encarnado na personagem Miguilim. A razao disso seriam os muitos pontos de contato entre os fatos narrados na novela e a infancia do autor--relacao que e possivel fazer gracas a entrevistas que deu ao longo de sua vida e aos livros biograficos escritos por parentes (filha, sobrinho) ou por pesquisadores.

Deste modo, haveria uma fusao entre o 'enunciador' de Campo Geral--que narra passagens da vida de Miguilim filtradas pelo ponto de vista do personagem--e a 'pessoa' Guimaraes Rosa--que nasceu em Cordisburgo e foi, assim como Miguilim, uma crianca sensivel.

Algumas passagens de Campo Geral sao especialmente tidas como autobiograficas. O gosto de Miguilim por ficar longe de todos, brincando com os insetos na horta, seu afeto pelos animais de estimacao com quem convivia (o episodio de Pingode-Ouro e especialmente representativo dessa relacao), sua estranheza diante do mundo dos adultos--todas essas caracteristicas da personagem seriam as 'provas cabais' de que, de fato, a pessoa Guimaraes Rosa 'fala' em muitas dessas cenas.

Possivelmente, a mais emblematica dessas semelhancas seja a miopia que tanto Rosa quanto Miguilim tinham, e que em ambos foi descoberta tardiamente. A declaracao de Rubem Alves (2012), transcrita abaixo, exemplifica esta leitura que une em uma mesma figura enunciador e autor:

De tudo que Joao Guimaraes Rosa escreveu acho a estoria do Miguilim a mais bonita. Miguilim era um menininho que vivia num lugar perdido do sertao, precisava andar um dia a cavalo pra se chegar no mais proximo. Mas Miguilim via um mundo embacado e pensava que o mundo era assim. Nao via o passarinho no galho da arvore e nem os brotos do milho saidos do chao. Pai de Miguilim, bruto, achava que ele era burro. Desgostava. Batia. E no coracao de Miguilim o odio crescia. Mas um dia chegou um doutor montado em cavalo bonito e tratado. Estranhou que Miguilim fechasse os olhos pra ver melhor. "--Esse nosso rapazinho tem a vista curta. Espera ai, Miguilim ...". E o senhor tirava os oculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. "--Olha agora! Miguilim olhou. Nem nao podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as arvores, as caras das pessoas. Via os graozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chao de uma distancia. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo ...". Leiam e comparem, e vejam se o Miguilim nao e o Joao. Os dois eram miopes sem saber. O espanto do Miguilim deve ter sido o espanto do Joao quando pos os oculos pela primeira vez. E os dois brincavam com os mesmos brinquedos, ate os boizinhos de sabugo, brancos, vermelhos e pretos, esses pretejados no fogo do fogao de lenha ... Lendo o Miguilim, aprendo sobre o Joao (ALVES, 2012).

Neste ponto, proponho a segunda questao que um material como esse suscita: qual o estatuto do enunciador desta obra? Ou como aliar um lugar externo a um lugar interno a obra?

Se respondermos que a voz desse narradorMiguilim e, em ultima instancia, Rosa nos contando sobre os sentimentos que permearam sua infancia, estaremos inevitavelmente cometendo um grave reducionismo. A sensibilidade e a melancolia, que caracterizam o tom deste texto, derivam do modo como ele e escrito, isto e, do modo como Rosa usa os recursos que a lingua disponibiliza. Os fatos narrados sao narrados de maneira tal que uma voz--singela, sensivel e triste--se faz ouvir no texto. Esta cena de enunciacao nao e a projecao de uma situacao historica 'real', representada na obra de uma maneira mais ou menos obliqua.

O conceito de 'paratopia' (MAINGUENEAU, 2006) ajuda-nos trabalhar, em termos teoricos, com este lugar que emerge das obras, que pode remeter a um tempo e a um mundo reais, mas que, simultanea e inevitavelmente, esta estreitamente conectado tanto a cenografia instituida pela sua enunciacao, quanto ao percurso do autor na cena literaria. Maingueneau propoe que a existencia social da literatura se institui em um lugar fronteirico: esta alem vida mundana, mas e esta realidade comum, cotidiana que alimenta a literatura. A criacao literaria, segundo tal proposta, escapa de toda topica social, alimenta-se de lugares, grupos e comportamento que, em um mesmo movimento, estao e nao estao no mundo. Trata-se de uma entidade hibrida, que fala do mundo, mas de um mundo transformado atraves de um motor paratopico, que afasta da vida ordinaria tudo o que diz respeito ao mundo literario (os lugares retratados, as personagens, os autores). E por meio da paratopia que a literatura representa a vida social.

O estatuto paratopico da literatura tem um enlacamento fundamental com a cenografia e com a obra como um todo; a paratopia de seu autor, de seus personagens e dos lugares retratados e, ao mesmo tempo, condicao e efeito da obra. A literatura e paratopica, mas ela tem de encenar sua paratopia. Em outras palavras, nao ha situacao paratopica exterior a um processo de criacao e de enunciacao. Nao e origem, causa ou condicao da obra literaria, mas um processo em que cada elemento e simultaneo 'ao' e indissociavel 'do' outro. A nocao de paratopia e tomada, a um so tempo, como condicao e produto do processo criador.

Nesse sentido, identificar Miguilim com Joao, o Mutum com Cordisburgo e ver em Campo Geral uma biografia disfarcada de novela e ignorar a especificidade da literatura e sua relacao de nao equivalencia com o 'mundo real'. Ainda que tenha havido um pequeno Joao miope e sensivel, ainda que haja um Mutum no sertao de Minas repleto de buritis, montanhas e aguas, ainda que haja familias que sobrevivem as intemperies desse lugar longinquo--tudo isso so toma 'corpo literario' na obra de Joao Guimaraes Rosa. Fala-se em uma 'geografia roseana', tal a indissociabilidade desse lugar com a obra. O sertao de Guimaraes Rosa e paratopico.

E sua vida, contada em tantas biografias, confirma de maneira cabal, a paratopia deste autor: autodidata, poliglota, medico, diplomata e profundamente ligado 'as coisas do espirito', morreu precocemente, aos 59 anos, tres dias apos tomar posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. Esse dia teria sido adiado por quatro anos devido ao medo que Guimaraes Rosa sentia da emocao que o momento lhe causaria. Uma vida e uma morte que, mesmo 'reais', nao sao parte do mundo topico.

Assumir a nocao de paratopia implica um afastamento de uma interpretacao literaria que ve uma sobreposicao entre realidade e ficcao. Por outro lado, nao considerar os pontos de contato entre a vida da pessoa e a vida da personagem e tambem negar um fato inegavel.

A proposta de complexificacao da instancia autoral, como a proposta por Maingueneau, que inclui a nocao de paratopia, torna possivel analisar textos literarios mesclando aquilo que deriva da biografia do autor, com o que deriva do seu percurso na vida literaria e da cenografia construida atraves da materialidade linguistica que compoe sua obra.

Segundo essa proposta, haveria tres instancias que recobrem essa identidade associada as obras literarias: a 'pessoa' (dotada de um RG e de uma biografia), o 'escritor' (a figura que define uma trajetoria dentro da instituicao literaria) e o 'inscritor' (uma subjetividade enunciativa que deriva da cena de fala e do genero implicados pelo texto). As tres instancias nao sao resultado de uma sequencia cronologica na qual, em primeiro lugar, haveria a pessoa, seguida pelo escritor e, por fim, pelo inscritor. Na verdade, essas tres instancias se recobrem mutuamente, sendo que nenhuma delas e o fundamento das outras:

Pensa-se aqui numa estrutura de no borromeu; os tres aneis deste se entrelacam de modo que, se se rompe um dos tres, os dois outros se

separam. E-se sempre tentado a reduzir o no a um de seus aneis: a pessoa, para a historia literaria, seja ela sociologizante ou psicologizante; o escritor para as pesquisas sobre as instituicoes literarias; o inscritor para os adeptos da obra ou do texto em detrimento de tudo mais. Mas nao se pode isolar ou reduzir nenhuma dessas instancias as outras; sua separacao e a condicao do desencadeamento do processo de criacao. Atraves do inscritor, e tambem a pessoa e o escritor que enunciam; atraves da pessoa, e tambem o escritor e o inscritor que vivem; atraves do escritor, e tambem a pessoa e o inscritor que tracam uma trajetoria no espaco literario. Se desfizermos sua juncao, cada anel revela ser aquilo por meio do qual os outros se sustinham: como viver se nao se vive da maneira que convem para ser um dado escritor que vai ser o inscritor de uma dada obra? Como desenvolver estrategias no espaco literario se nao se vive de modo a ser o inscritor de uma obra? Como ser o inscritor de uma obra se nao se enuncia atraves de um certo posicionamento no campo literario e um certo modo de presenca/ausencia na sociedade? (MAINGUENEAU, 2006, p. 137).

Consideracoes finais

Uma proposta como esta permite lidar com os processos de subjetivacao de um texto sem retornar aquela subjetividade que tanto a AD recusou--e sem, igualmente, considerar os sujeitos apenas porta-vozes de discursos ja ditos anteriormente. Pensar no fato literario nos termos propostos por Maingueneau permite tambem que seja contornada a cisao fundadora dos estudos literarios entre texto e contexto. No entanto, explicitar como se constroem as relacoes entre cenografia e vida real, e como elas tambem resultam, de certo modo, de o autor estar no mundo nao e uma tarefa simples. Uma proposta teorica como a apresentada acima oferece ao analista um dispositivo teorico que indica, enfim, os caminhos para unirmos esses dois mundos inegavelmente interdependentes: aquele instituido pela obra e aquele que faz desse mundo um mundo em que o fato literario e possivel.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v34i2.16177

Referencias

ALVES, R. Quarto de badulaques (XXXII). Disponivel em: <http://www.rubemalves.com.br/quartodebadulaques XXXII.htm>. Acesso em: 25 fev. 2012.

BOURDIEU, P. Algumas propriedades dos campos. In: BOURDIEU, P. (Ed.). Questoes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 89-94.

MAINGUENEAU, D. Analise de textos de comunicacao. Traducao Cecilia P. de Souza-e-Silva e Decio Rocha. Sao Paulo: Cortez, 2004.

MAINGUENEAU, D. Discurso literario. Traducao Adail Sobral. Sao Paulo: Contexto, 2006.

ROSA, G. Campo Geral. In: ROSA, G. (Ed.). Manuelzao e Miguilim. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1977. p. 5-103.

Received on February 28, 2012.

Accepted on July 17, 2012.

Marcela Franco Fossey

Fundacao para o Vestibular, Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", Rua Dona Germaine Burchard, 515, 05002-062, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil. E-mail: marcela.ff@gmail.com
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