Relendo Hesiodo: o mito das racas em A idade do ferro, de J. M. Coetzee.
Silva, Denise Almeida
Introducao
Este estudo centra-se na maneira pela qual o escritor sul-africano,
J. M. Coetzee, retoma o mito hesiodico das racas em seu romance, A idade
do ferro. Inicialmente, descreve-se a construcao de Os trabalhos e os
dias, e caracteriza-se cada uma das sucessivas racas. O contraste sempre
renovado entre justica e desmedida, Dike e Hybris, e analisado em
relacao a estrutura formal do mito; por outro lado, intenta-se
demonstrar como a nocao de um mundo em que a desordem se instaura
progressivamente rumo a injustica, desgraca e morte, e associada por
Coetzee ao contexto da Africa do Sul em que vigia o apartheid, retratada
pelo autor como uma sociedade nao so enferma, mas em estado terminal.
O mito das racas e uma das narrativas do poema Os trabalhos e os
dias, de Hesiodo, nas quais o autor remete a um tempo mitico em que os
homens desconheciam os sofrimentos e a morte para, em seguida,
esclarecer como os males passaram a fazer parte da existencia humana.
Logo apos a invocacao as musas e a dedicatoria ao seu irmao, Perses, o
poeta expoe um quadro de uma terra dividida entre duas lutas: a funesta
guerra e a inveja, nascida da Noite Tenebrosa. Uma vez que esta ultima
incita o homem ao trabalho, e vista como 'boa luta para os
homens' ha, contudo, que se observar a maxima delfica 'nada em
excesso'. Hesiodo passa a narrar a origem e necessidade do
trabalho, relatando o mito de Prometeu e Pandora a fim de demonstrar
como a Hybris levou os homens, que antes viviam "ao recato dos
males, dos dificeis trabalhos e das terriveis doencas que ao homem poem
fim", a experimentar pesares e labutas, pois da "inteligencia
de Zeus nao ha como escapar" (HESIODO, 1991, p. 23-29). Tendo
roubado o fogo, o homem e alvo da vinganca de Zeus, que dele esconde o
alimento, o que o leva a busca-lo em fadiga e trabalho.
Segue-se o mito das cinco racas, que vem complementar e completar a
narrativa anterior, servindo tambem ao proposito de aconselhar o irmao
contra os perigos da desmedida, como o poeta explicitamente esclarece:
"Se queres, com outra estoria esta encimarei, bem e sabiamente
lanca-a ao peito!" (HESIODO, 1991, p. 31). A motivacao pessoal do
autor, em litigio com o irmao a proposito da divisao das terras e bens
herdados do pai, acaba por converte-lo no unico autor da tradicao grega
a se inserir no quadro da literatura sapiencial, caracterizada por
reunir literariamente preceitos, admoestacoes e instrucoes repertoriadas
por um povo que, via de regra, passa por crise e deseja,
consequentemente, reconstruir sua sociedade e patrimonio moral (LAFER,
1991).
As racas (ou idades) sucedem-se numa ordem de decadencia
progressiva e regular, como ja sugere o nome dos metais de acordo com os
quais se ordenam. Essa ordem se inicia pela raca do outro, metal tido
como o mais precioso, e apresenta sucessivamente as racas de prata,
bronze e ferro e, intercalada entre as duas ultimas, uma raca de herois.
Os metais sao escolhidos nao somente pela sua valoracao mercadologica de
superior a inferior, mas de acordo com a natureza particular de cada
idade: seu modo de vida, atividades, qualidades e defeitos. Assim, se o
ouro figura ao inicio da narrativa, e porque encarna todas as virtudes.
Como Vernant observa, Hesiodo opoe-se a um mundo divino, em que a ordem
e fixada pela vitoria de Zeus, um mundo humano no qual a desordem se
instaura progressivamente e que finalmente acaba permeado pela
injustica, desgraca e morte (VERNANT, 2002, p. 27-31) A ordenacao segue
uma logica temporal e formal propria, nao obedecendo a ordem
propriamente cronologica, mas a um periodo ciclico. Se assim nao fora,
Hesiodo, ao se perceber como vivendo o momento da raca de ferro, nao
poderia lamentar nao ter nascido depois dessa idade, como Vernant (2002)
ainda percebe.
Os homens da raca de ouro caracterizam-se por uma condicao
privilegiada: sao totalmente desprovidos de preocupacoes e alegram-se em
festins, desconhecendo penas e miserias. A terra, dadivosa, nutre-os com
fruto abundante; tais homens nao conhecem a velhice, conservando sempre
pes e maos igualmente ageis. Ja a raca de prata, incapaz de conter em si
o "louco Excesso", embora ainda longeva, nao conserva a
plenitude das potencialidades fisicas e mentais, mas padece de certa
idiotia. O filho cresce "por cem anos junto 'a mae cuidadosa,
brincando', curta adolescencia, em que os homens ja padecem de
'horriveis dores por insensatez', segue-se a essa prolongada
infancia. Excessivamente tolos, nao veneram os deuses, o que encoleriza
Zeus, que os oculta sob a terra e cria a raca de bronze. Acentuam-se
dessa raca a mortalidade, a forca e a violencia. Morrem em combate,
seguindo-se-lhe a raca dos herois. Em oposicao a desmedida Hybris dos
homens da raca anterior, que tinham "de aco resistente o coracao,
inacessiveis", Zeus faz dos herois uma raca "mais justa e
corajosa". Embora, tal como a raca anterior, dediquem-se a guerra,
os herois caracterizam-se pelo exercicio da Dike, justica, o que leva
Zeus a recompensa-los de forma diametralmente oposta ao que faz em
relacao a raca de bronze: enquanto esta desce ao gelido palacio Hades,
deixando a luz brilhante, os herois sao confinados na "Ilha dos
Bem-Aventurados, junto ao oceano profundo", num lugar em que
"doce fruto traz tres vezes ao ano a terra nutriz" (HESIODO,
1991, p. 35).
A quinta raca, de ferro, correspondente ao periodo em que vive o
autor e e tao terrivel que este lamenta estar vivo em tal tempo.
Contrastando com a vida despreocupada e tranquila da idade do ouro, o
homem da idade de ferro vive o preambulo de degenerescencia total.
Hesiodo apresenta o contraste entre 'o que e' e o que sera,
projetando um futuro negro em que a presente relacao de semelhanca que
ligava pais a filhos, bem como a relacao fraternal, a pratica da
hospitalidade e toda nocao de companheirismo desaparecerao. Tao logo a
presente geracao envelheca, filhos deixarao de se assemelhar a seus
pais, que serao insultados e censurados com duras e crueis palavras, e
desamparados por aqueles. Amor, companheirismo, hospitalidade deixarao
de ser 'como ja havia sido'. A inveja malevolente e malsonante
a todos os homens acompanhara; honrar-se-ao o malfeitor e o homem
desmedido, de forma que a justica desaparecera. Zeus nao deixara tal
Hybris sem castigo, assinalando desde ja um tempo quando, em lugar da
eterna vitalidade dos homens primevos, esses mortais serao retirados da
Terra, como as precedentes racas.
Hesiodo da continuidade ao poema, discorrendo sobre a Justica e a
retribuicao dada pelo Cronida aos que se ocupam do mau excesso. Cabe aos
reis e tambem aos suditos exercer a justica, independentemente do lugar
ocupado na sociedade, ja que o mal vem tanto "a coletividade como
ao individuo que a desrespeitam, A si mesmo o homem faz mal, a um outro
o mal fazendo" (HESIODO, 1991, p. 43). Por fim, o poeta exalta as
virtudes do trabalho, que "desonra nenhuma".
Como se ve, a intencao de admoestar a obediencia da justica (Dike)
para que nao se venha a ser uma vitima da desmedida (Hybris) perpassa as
diferentes sessoes do poema a tal ponto que, como nota Vernant, a tensao
entre Dike e Hybris nao so norteia a estrutura do mito como lhe atribui
seu significado geral. Em contraste, as sucessivas idades representam o
dominio de uma ou outra dessas qualidades. Vernant explica:
Quando Hesiodo quer estabelecer uma diferenca de valor entre duas
racas, ele a formula explicitamente e sempre da mesma maneira: as duas
racas sao opostas como a Dike e a Hybris. Um contraste desse genero se
ressalta, de um lado, entre a primeira e a segunda raca; de outro, entre
a terceira e a quarta. Mais exatamente, a primeira raca esta para a
segunda, do ponto de vista do 'valor', como a quarta esta para
a terceira. Com efeito, Hesiodo acentua que os homens de prata sao
'bem inferiores' aos de ouro - inferioridade que consiste em
uma Hybris da qual os primeiros estao perfeitamente isentos, ele acentua
ainda que os herois sao 'mais justos' que os homens de bronze,
votados igualmente a Hybris. [...] O texto impoe, entao, quanto a
relacao entre as quatro primeiras racas, a seguinte estrutura:
distinguem-se dois planos diferentes, ouro e prata de um lado. Bronze e
herois de outro. Cada plano, dividido em dois aspectos antiteticos, um
positivo, outro negativo, apresenta assim duas racas associadas que
formam a contrapartida necessaria uma da outra e que contrastam,
respectivamente, como Dike e Hybris (VERNANT, 2002, p. 32-33).
A aparicao da quinta raca, estruturalmente, apresenta nova
dimensao: ao contrario das precedentes, nao se desdobra em dois aspectos
antiteticos, mas sob a forma de raca unica. Contudo, tal como as idades
que a precedem, reforca a concepcao da existencia humana como vacilando
entre dois polos opostos, Dike e Hybris.
A ambiencia de uma sociedade em plena degenerescencia, que ruma a
destruicao e morte, face ao predominio da louca desmedida e ao abandono
da justica, fornece a J. M. Coetzee poderosa metafora para a analise da
situacao de excecao do apartheid que se instaura na Africa do Sul. Tal
como no poema de Hesiodo, a sociedade retratada pelo romancista em A
idade do ferro sofre pelo efeito da louca desmedida. Elizabeth Curren
refere-se ao diuturno confronto entre os ativistas negros e a policia
como uma "guerra sem piedades, sem limites" (COETZEE, 1992, p.
49). Da sacada de sua casa, pode ver as chamas ardendo nos bairros
negros, a policia, que deveria proteger os cidadaos, persegue, e, se
possivel, mata os ativistas. Como patroa de Florence, mulher negra cujo
filho mais velho, ainda adolescente, esta envolvido no boicote
estudantil, e dado a Elizabeth Curren testemunhar tais desmandos. Por
outro lado, tambem as criancas negras entregam-se a violencia
descontrolada: abandonam a escola, considerada como instrumental na
legitimacao do apartheid (COETZEE, 1992); chutam e batem num homem
porque ele bebe, poem fogo nas pessoas e riem, enquanto elas queimam ate
a morte. Enquanto Florence relata o fechamento das escolas em Langa,
Nyanga e Guguletu, e como a situacao nesta ultima localidade se
deteriorou a ponto de que seu filho nao pode mais permanecer la em
seguranca, as radios e a televisao se calam, e a imagem que o governo
transmite a minoria branca e a de uma terra "de vizinhanca
sorridente" (COETZEE, 1992, p. 53).
No final da decada de 1980, quando o romance estava sendo escrito,
o pais atravessava o climax de uma serie de rebelioes escolares
iniciadas em 1983. Como ja acontecera em Soweto, em 1976, os estudantes,
alguns dos quais ainda criancas, assumem a lideranca do ativismo
politico. Boicotes tornam-se frequentes, mantem-se afastados das escolas
e desfilam pelas ruas, reivindicando a retirada dos militares e
policiais dos campi. Em 1985, o Comite Nacional da Crise Educacional
(NECC) suspende os boicotes escolares, e, um ano mais tarde, proclama-se
estado de emergencia nacional. A agitacao cresce; milhares de criancas
sao aprisionadas e muitas delas submetidas a tortura e execucao
(GALLAGHER, 1991).
Nao surpreende que Coetzee, ao caracterizar a Idade do Ferro que
assola o pais, tenha escolhido o desrespeito a infancia como indicativo
da decadencia social e dissolucao dos lacos familiares, no que, alias,
retoma uma das caracteristicas da idade de ferro hesiodica. O que
deveria ser "um tempo de maravilhas, um tempo de crescimento da
alma" torna-se um periodo em que a capacidade imaginativa infantil
e adolescente "torna-se tolhida e petrificada" (COETZEE, 1992,
p. 12). Nesse momento, "a infancia e desprezada, quando as criancas
instruem umas as outras para jamais sorrir, jamais chorar, para levantar
os punhos para o ar, como martelo [...] tempo fora do tempo, vomitado da
terra, bastardo, monstruoso" (COETZEE, 1992, p. 50). Como em Os
trabalhos e os dias, as relacoes pais e filhos tornam-se alteradas.
Porem, se naquele poema nao se expoe causa para tal fato, salvo a
corrupcao progressiva e inevitavel, no romance de Coetzee a dissolucao
dos elos familiares se verifica na ambiencia de um regime de excecao,
que leva a sobreposicao dos interesses nacionais aos familiares, fazendo
com que criancas e adolescentes abandonem suas familias, boicotem a
escola e se dediquem a luta. Quando Curren recorda os velhos tempos em
que os mais velhos eram respeitados e o estudo valorizado, Florence
lembra-lhe que a sociedade vive agora novos tempos em que "tudo
mudou. Nao ha mais maes nem pais" (COETZEE, 1992, p. 40).
Essa nocao e retomada pouco antes de a metafora da Idade de Ferro
ser introduzida pela primeira vez no romance. Curren censura a maneira
afrontosa como o filho da empregada tratara a Vercueil, retomando a
discussao sobre os vinculos familiares:
Continuo pensando no que voce me disse, no outro dia: que nao
existem mais maes nem pais. Nao posso acreditar que voce quisesse dizer
isso realmente. As criancas nao podem crescer sem mais nem pais. As
queimadas e matancas de que se ouve falar, a chocante insensibilidade,
ate mesmo esta coisa de bater no sr. Vercueil--de quem e a culpa,
afinal? Certamente a culpa deve recair sobre os pais que dizem:
'Vao, facam como quiserem, agora voces sao donos de si mesmos,
desisto da autoridade sobre voces'. Qual a crianca que no intimo do
seu coracao quer de verdade que lhe digam isso? Com certeza saira
confusa, pensando consigo mesma: 'Nao tenho mais mae, agora, nao
tenho pai; entao, que morra minha mae, que morra meu pai?' Voce
lava as maos por eles e eles se transformam em filhos da morte (COETZEE,
1992, p. 49).
E quando Florence discorda fortemente da percepcao da patroa,
atribui as acoes dos jovens negros a crueldade dos brancos e elogia a
tempera dos negros em que a metafora da idade do ferro e introduzida:
Nao - disse Florence - Isso nao e verdade. Eu nao viro as costas
aos meus filhos. [...] Sao criancas boas, como ferro, temos orgulho
deles. [...] Criancas de ferro, pensei. Florence, tambem, nao era
diferente do ferro. A idade do ferro, depois, vem a idade do bronze.
Quanto tempo ainda, antes que volte o ciclo das idades mais brandas, a
idade do barro, a idade da terra? Uma matrona espartana, de coracao de
ferro, criando filhos guerreiros para a nacao (COETZEE, 1992, p. 50).
Como se percebe, embora claramente baseada no mito hesiodico das
racas, a Idade do Ferro, como concebida por Coetzee, reveste-se de
caracteristicas especiais. Contrastando com Hesiodo, que remete a um
tempo mitico desprovido de sofrimentos e traca sua progressiva
decadencia ate avancar a Idade do Ferro, interessa a Coetzee fixar
somente uma das idades da terra, a idade ferrea em que vive, na qual a
degenerescencia ja esta profundamente instaurada. Tambem a logica
ordenadora dos metais difere: em lugar do criterio do valor monetario
proprio de cada metal, e a resistencia ou dureza do metal que se
constitui em criterio ordenador. Assim, as idades sucedem-se do metal
menos resistente ao mais resistente: o ferro sera sucedido pelo bronze e
assim sucessivamente, ate que o ciclo esteja completo e as idades mais
brandas retornem.
Uma vez que a dureza e/ou resistencia e o padrao escolhido, o mito
das idades de Coetzee nao se atem somente a metais, completado o ciclo,
este reiniciara pela idade do barro. A escolha parece estar associada a
uma opcao pela vida e ao reinicio de um novo ciclo criativo, pois remete
duplamente nao so a descricao biblica da criacao do mundo (surgido a
partir de um estado caotico, quando o Espirito de Deus 'pairava
sobre as aguas') e do homem (formado de elementos do po da terra),
como ao relato biblico do sonho do rei assirio, Nabucodonozor, no qual
os reinos se ordenam de maior explendor a maior forca, atraves da
sucessao do ouro, prata, cobre e ferro, que simbolizam, respectivamente,
Babilonia, Medo-Persia, Grecia e Roma, terminando surpreendentemente com
uma fragil mistura de ferro e barro, que prenuncia o fim da historia
deste mundo e inicio de um reino messianico (Dan. 2).
Se Hesiodo lamenta o presente e projeta um futuro em que a Idade de
Ferro se tornara ainda mais terrivel, em vez de temor e com expectacao
que os homens da Idade de Ferro de Coetzee aguardam uma idade mais
propicia a vida. Thabane, que foi professor, abandona temporariamente a
profissao "ate que chegem tempos melhores" (COETZEE, 1992, p.
94). A epoca e descrita como tempo de "crescimentos monstruosos,
desnacencas: um sinal de que se foi alem da propria hora, tambem este
pais: hora para o fogo, hora de chegar ao fim, hora para aquilo que sai
das cinzas nascer" (COETZEE, 1992, p. 63).
Apesar dos fatos de que a propria natureza parece ter tido seu
curso alterado e de que o fim afigura-se como inevitavel, a qualidade
ciclica das idades traz a esperanca do renascimento de tempos mais
brandos. Esta nocao e reiterada no romance. Ao tentar entender a
natureza de seu relacionamento com Vercueil, o vagabundo a quem acolheu
para que entregue uma carta a filha apos sua morte, Elizabeth Curen,
avalia:
Vercueil e eu, como um casal ha muito tempo casado, sem ter o que
dizer, mal-humorado. Estou ate mesmo me acostumando com o cheiro,
pensei. Sera assim que me sinto em relacao a Africa do Sul: sem ama-la,
mas habituada ao seu mau cheiro? Casamento e destino. Transformamo-nos
naquele com quem nos casamos. Nos, que casamos com a Africa do Sul,
tornamo-nos sul-africanos: feios, sombrios, entorpecidos. Nosso unico
sinal de vida e um ligeiro reluzir dos caninos, quando somos
contariados. Africa do Sul: um velho cao mal-humorado, cochilando na
porta, a espera da hora de morrer. E que nome mais sm inspiracao para um
pais! Esperemos que eles o troquem, quando criarem um novo comeco
(COETZEE, 1992, p. 67).
Esse pensamento complementa extensa meditacao sobre a natureza da
vida na Africa do Sul da Idade do Ferro, cuja origem e relacionada ao
carater daqueles que a fundaram e colonizaram, os pioneiros holandeses.
A dureza de geracao apos geracao de pioneiros "de rostos severos,
labios apertados, marchando, cantando seus patrioticos hinos, saudando a
sua bandeira, jurando morrer pela sua patria [...] pregando o antigo
regime da disciplina, do trabalho, da obediencia, do
auto-sacrificio" e diretamente associada ao surgimento da Idade do
Ferro, que e precedida por uma 'idade do granito'. Como o
granito, duro e frio ao toque, o calvinismo praticado na Africa do Sul e
descrito como sendo a encarnacao do "espirito de Genebra Calvino,
de beca preta, sangue escasso, frio para sempre [... ] sorrindo seu
sorriso invertido" (COETZEE, 1992, p. 50-51).
Sob o severo codigo moral do Calvinismo Africaner, produz-se regime
frio, caracterizado pela falta de amor, que finalmente conduz a secura e
morte. "O espirto de caridade pereceu neste pais," diz
Elizabeth Curren a Vercueil, ao justificar por que nao transforma a casa
em abrigo para os pedintes (COETZEE, 1992, p. 25). Sob a egide de tal
governo, sofrem brancos e pretos e verifica-se um embotamento dos
sentidos generalizados. Descrevem-se as criancas negras como as que
haviam tido a alma tolhida, petrificada; semelhantemente, estao "do
outro lado da linha divisoria seus primos brancos, de alma tambem
tolhida, girando em torno de si mesmos, cada vez mais apertados nos seus
casulos" (COETZEE, 1992, p. 12). Ao inves de preparar para
metamorfose que leve a nova e mais bela vida, a ambiencia em que vivem,
seus casulos, enreda-as, tolhe-as, sufoca-as ao envolve-las em ambiente
protetor em que, dentro de jardins murados, guardados por buldogues,
usufruindo as benesses que e dado a hegemonia branca desfrutar,
tornam-se finalmente insensiveis a desigualdade e desmandos do pais.
Semelhantes as criancas da Idade da Prata de Hesiodo, sujeitas a
prolongada infancia, os infantes dessa nova Idade do Ferro tem
prolongado seu estado de inocencia em sua realidade protegid tornam-se
quais "larvas, rolicas e brancas, encharcadas de mel, absorvendo a
docura atraves de suas peles suaves" enquanto suas almas se
entorpecem, cheias de bem-aventuranca (COETZEE, 1992, p. 1). O
embotamento imaginativo e perceptivo dos mais jovens inscreve-se dentro
de um quadro em que a nacao, como um todo, sofre um entorpecimento sob o
efeito do discurso de seus dirigentes. A separacao e tutela dos negros,
verificadas sob o regime do apartheid, eram ajustificadas pelo discurso
adotado pela ciencia politica calvinista como estando baseado numa nocao
natural da separacao da humanidade de acordo com as racas, que teria
sido ordenada pela dispensacao divina. De acordo com esse discurso, Deus
teria dado a cada nacao e a cada povo sua vocacao particular, suas
tarefas e seus dons. Tal concepcao tribalista proveu a base para as
numerosas politicas de segregacao que tiveram lugar na Africa do Sul
apos 1948 e que determinaram a separacao da populacao de acordo com
categorias raciais fixas (Lei de Registro Populacional, 1950), proibiram
a uniao inter-racial (Lei da Imoralidade, 1950), impediram a passagem
dos negros a areas onde nao estivessem "ministrando as necessidades
dos brancos" (Lei do Passe e Lei da Coordenacao de Documentos,
1952), segregaram os pretos dos lugares publicos (Lei da Reserva de
Beneficios Sociais Separados, 1953) e removeram a populacao negra (72%
do total da populacao) para areas inospitas que correspondem a 13% do
territorio do pais (MCCLINTOCK; NIXON, 1986, p. 149-150). Assim, nao e
dificil imaginar por que os "pais e maes, tias e tios, irmaos e
irmas" dos jovens encasulados sao descritos nao como borboletas,
mas como "uma horda de gafanhotos [... ] infestando o pais,
mascando ruidosamente e sem cessar, devorando vidas" (COETZEE,
1992, p. 31).
No romance de Coetzee, embora Elizabeth Curren perceba os efeitos
do discurso e da pratica da classe dirigente, sente-se como que
paralisada, incapaz de se recusar a escutar suas falas pela televisao,
muito embora saiba que tais politicos, "por legitimidade [... ] nao
mais se preocupam em clamar, homens que 'deram de ombros para a
razao', absorvidos pelo 'poder e o estupor do
poder'". Tais homens, a protagonista medita, retiram da
populacao a centelha de vida, sendo eles mesmos desprovidos de qualquer
calor humano, tao estupidificados quanto a populacao a quem se dirigem
dia apos dia:
E a sua mensagem permanece estupidamente inalteravel, estupidamente
a mesma, para sempre. Sua proeza, apos anos de metitacao etmologica
sobre a palavra, foi a de ter elevado a estupidez a categoria de
virtude. Estupidificar: privar de sentimento; entorpecer, amortecer;
atordoar pelo espanto. Estupor: insensibilidade, apatia, torpor da
mente. Estupidos: de faculdades embotadas, indiferentes, destituidos de
pensamento ou de sentimento. De stupere, ficar atordoado, estarrecido.
Uma evolucao de estupido, para atordoado, estarrecido, ser transformado
em pedra. A mensagem: que a mensagem jamais mude. Uma mensagem que
transforme as pessoas em pedra (COETZEE, 1992, p. 32).
O embotamento das sensibilidades leva a outra metafora, a do
branco-boneca, que se desenvolve logo apos a protagonista ficar abalada
com a contemplacao dos corpos dos cinco adolescentes mortos pela
policia. A cena e-lhe mais chocante porque conhece um deles, Bheki,
filho de sua empregada, Florence. Os corpos perfurados a bala, deitados,
perfilados ordenadamente, impressionamlhe como uma "presenca
macica, solida" (COETZEE, 1992, p. 98), que contrasta com a concha
insubstancial que a envolve, bem como a hegemonia branca, tornando-os
semelhante a bonecos. Curren compara sua inconsciencia com a dos meninos
assassinados, tornados inconscientes pela morte. Embora viva, e,
portanto, passivel de reflexao consciente, parece-lhe que dorme em sono
profundo, e que e apenas visitada por ocasionais lapsos memorias,
indicativos de que alguma vez esteve viva. Concebe-se, entao, como tendo
sido roubada no berco e trocada por boneca, o que a faz passar a
existencia em estado de "surpresa paralisante", dotada de
"conhecimento sem substancia, sem peso mundano, como a propria
cabeca de boneca, vazia, aerea" (COETZEE, 1992, p. 102-103).
Em contraste com a solidez dos mortos, sente-se oca. Avalia que o
cancer que a vitima como justa retribuicao, "Para cada um de nos o
destino manda a doenca certa". Fosse ela aberta, veria seu interior
oco como uma boneca, uma vez que o cancer a devora por dentro (COETZEE,
1992, p. 105). Concebe a doenca que a devora como 'seca' e
'fria', qualidades que partilha com o granito e os
africanderes simbolizados por ela. Como a Idade do Ferro, prolongada
para alem do tempo natural, e incapaz de gerar vida, o tumor cancerigeno
afigura-se a Curren como um filho que carrega em si numa gravidez que se
prolongara para alem do tempo natural, e da qual nenhum fruto resultara.
Tal qual Hesiodo, que lamenta viver em tempos tao sombrios, Curren
lastima ter que carregar em si a propria negacao da vida:
Ficar gravida desses tumores, desses inchacos frios e obscenos
[...], para sempre frios e vorazes. Seco, seco: senti-los virando-se a
noite no meu corpo seco, nao se espreguicando e chutando como uma
crianca humana, mas mudando de angulo, descobrindo um novo lugar para
morrer. Como os ovos dos insetos postos no corpo de uma hospedeira,
crescendo agora em larvas que comem-na[sic] implacavelmente ate o fim.
Meus ovos, crescidos comigo. [... ] minhas filhas-morte, suas irmas,
minha filha-vida. Como e terrivel quando a maternidade atinge o ponto de
parodiar a sim mesma! (COETZEE, 1992, p. 62).
Essa forma pervertida e perversa de maternidade, mais ligada a
morte do que a vida, nao apenas reforca a dissolucao dos lacos entre
maes e filhos como acentua a ambiencia de doenca e terminalidade que
perpassa o romance desde seu inicio. Morte, desperdicio e sujeira
inscrevem-se ja nas primeiras paginas do romance, quando a protagonista,
Elizabeth Curren, inicia sua carta a filha, descrevendo a condicao
degenerada do patio da casa onde esta ultima brincara em crianca, e que
agora nao e mais do que "um lugar morto, ermo, sem uso, onde as
folhas jogadas pelo vento se amontoam e apodrecem" (COETZEE, 1992,
p. 9). E inverno, estacao associada a morte. Na grande casa, agora quase
vazia, Curren, que ha pouco se descobre portadora de cancer, limpa
gavetas e descarta papeis velhos. Antes solida, a casa comeca a se
decompor: as tabuas do assoalho perderam vigor, o isolamento dos fios
esta seco e os canos entupidos de areia; as calhas se vergam sob
parafusos enferrujados ou desprendem-se da madeira apodrecida. "Uma
casa construida solidamente, mas sem amor, fria, agora inerte, pronta
para morrer", Curren sentencia (COETZEE, 1992, p. 18), num
julgamento que pode ser estendido ao pais e seus governantes
Alem de reforcar o estado terminal dessa Idade do Ferro, o corpo
seco e infrutifero de Curren torna particularmente visiveis o
desperdicio e a brutalidade representados pelo derramamento de sangue
que ocorre no pais de forma tao corriqueira e impune. Ao contemplar o
sangue que jorra das feridas do amigo de Bheki, Elizabeth Curren avalia
como este e precioso, um dom a ser preservado, que une a humanidade,
"uma poca de vida dispersa entre nos, em existencias separadas,
mas, por natureza, unica; emprestado, nao dado; tido em comum, em
confianca para ser preservado; parecendo viver em nos, mas parecendo,
apenas, pois na verdade nos vivemos nele" (COETZEE, 1992, p. 62). A
protagonista tem bem presente a licao de humanidade compartilhada do
velho Shylock, que expos a sociedade de Veneza como todos, judeus ou
nao, igualmente dormiam, comiam, respiravam. Acima de tudo, ecoa-lhe a
pergunta exclamada no placo com odio e angustia: "Eu nao sangro
como vos?" (COETZEE, 1992, p. 41).
Curren passa a sonhar frequentemente com Borodino, a maior e mais
sangrenta batalha de todas as Guerras Napoleonicas, que, em 16 horas de
confronto ininterrupto, deixou um rastro de mais de 100 mil mortos. Em
seus sonhos, ve centenas de milhares de homens se batendo na planicie
russa, seres sem rosto, sem voz, secos como ossos.
Essa visao dos seres para sempre silenciados, em sua clara alusao
ao tratamento dispensado a populacao negra, poderia sugerir um
prognostico de um futuro tao desolador quanto o que Hesiodo anteve para
o periodo final da idade em que vive. Contudo, a concepcao ciclica das
eras e em particular da propria idade do ferro, descrita como estando a
espera do seu proprio retorno, parecem sugerir um bafo de esperanca.
Ainda impressionada pela visao dos corpos dos adolescentes mortos,
Curren se imagina a transitar por sobre seus corpos:
Deixe-me dizer, quando eu ando sobre esta tera, esta Africa do Sul,
tenho um sentimento que se avoluma, de estar andando sobre rostos
negros. Eles estao mortos [... ] pesados e empedernidos, a espera que
meus pes passem, a espera de que eu me va, a espera de novamente se
levantarem. Milhoes de figuras de lingote de ferro flutuando debaixo da
pele da terra. A idade do fero, a espera do seu retorno (COETZEE, 1992,
p. 116).
Tomando-se a si propria, na qualidade de branca, nao so como
representante da hegemonia no controle da nacao, mas como corresponsavel
pelos desmandos, Curren toma a si a culpa pelo silenciamento dos negros.
Nao e a terra que os aprisiona, pelo contrario, flutuam sob ela, o que
nao poderiam fazer sobre a agua e sobre a superficie da terra, aguardam,
antes, que passe o governo dos brancos, para entao ressurgir. Em
contraste com os 'brancos bonecos', que morrem na cama,
tornando-se mais e mais secos e leves, os negros tem a resistencia do
ferro ou do aco. Enquanto os brancos queimariam bem, deixando um minimo
de cinzas atras de si, eliminar a Bheki e os outros ativistas negros nao
seria tao facil pois estes se assemelham ao ferro ou o aco que, quando
submetidos ao fogo, perdem sua forma, mas subsistem. Para alem do
disturbio dos ciclos naturais causado por um calvinismo seco e frio,
projeta-se um tempo em que a Idade do Ferro ressurgira, ja nao mais
sujeita a degenerescencia e morte, ja nao mais angustiada pela projecao
de um futuro sombrio, mas resistente como sempre e ja liberta da
opressao e dos desmandos causados pelo desamor. Nesse sentido, o mito,
como usado por Coetzee, assume contornos profeticos, que escaparam aos
censores: em tempos sombrios, o negro hiberna, mas ressurgira, uma vez
passado o reino dos gafanhotos, reassumindo o lugar que lhe e devido em
sua propria terra.
Consideracoes finais
A presente analise da releitura de Hesiodo em A idade do ferro
permite perceber como Coetzee, sem se afastar da estrutura norteadora do
mito das racas, recriou-o, aplicando-o a epoca ferrea em que vigia o
apartheid em seu pais natal. Tal como no poema de Hesiodo, perpassa o
romance a tensao entre Dike e Hybris, de forma que a obra dramatiza os
resultados funestos da desmedida, que vitimam o pais na ausencia da
justica. Contudo, ao contrario do mito hesiodico, que enfatiza crescente
degenerescencia e projeta tempos cada vez mais ferreos e terriveis, o
mito das racas de Coetzee sugere, ao contrario, o retorno de tempos mais
brandos e propicios a vida.
DOI: 10.4025/actascilangcult.v33il.6467
Received on March 3, 2009.
Accepted on December 9, 2009.
Referencias
COETZEE, J. M. A idade do ferro. Sao Paulo: Siciliano, 1992.
HESIODO. Os trabalhos e os dias. Sao Paulo: Iluminuras, 1991.
GALLAGHER, S. V. A story ofSouth Africa: J. M. Coetzee's
fiction in context. London: Harvard University Press, 1991.
LAFER, M. C. N. Introducao. In: HESIODO. Os trabalhos e os dias.
Sao Paulo: Iluminuras, 1991. p. 15-19.
McCLINTOCK, A.; NIXON, R. No names apart: the separation of word
and history in Derrida's "Le Dernier Mot du Racisme".
Critical Inquiry, v. 13, n. 1, p. 141-154, 1986.
VERNANT, J. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2002.
Denise Almeida Silva
Universidade Regional Integrada de Frederico Westphalen, Rua Assis
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