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  • 标题:Authorship in a "world without frontiers": paratopia in the technical-scientific informational period/A criacao num "mundo sem fronteiras": paratopia no periodo tecnico-cientifico informacional.
  • 作者:Salgado, Luciana Salazar ; Antas, Ricardo Mendes, Jr.
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2011
  • 期号:July
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Considerando a hipermidia como um conjunto de tecnicas caracteristicas do que Milton Santos chama de periodo tecnico-cientifico informacional, entendemos que o mundo globalizado se funda numa "imprescindibilidade do discurso", da qual o ciberespaco e uma materializacao expressiva. Da perspectiva discursiva aqui assumida, estribada na analise de materiais linguisticos na sua relacao inextricavel com o extralinguistico, abordamos os textos como objetos tecnicos que podem assumir tracos singulares, mas cuja circulacao participa de redes de tendencia homogeneizante.
  • 关键词:Authorship

Authorship in a "world without frontiers": paratopia in the technical-scientific informational period/A criacao num "mundo sem fronteiras": paratopia no periodo tecnico-cientifico informacional.


Salgado, Luciana Salazar ; Antas, Ricardo Mendes, Jr.


Introducao

Considerando a hipermidia como um conjunto de tecnicas caracteristicas do que Milton Santos chama de periodo tecnico-cientifico informacional, entendemos que o mundo globalizado se funda numa "imprescindibilidade do discurso", da qual o ciberespaco e uma materializacao expressiva. Da perspectiva discursiva aqui assumida, estribada na analise de materiais linguisticos na sua relacao inextricavel com o extralinguistico, abordamos os textos como objetos tecnicos que podem assumir tracos singulares, mas cuja circulacao participa de redes de tendencia homogeneizante.

No que diz respeito ao ciberespaco, podemos perguntar: um designer que produz por encomenda e um autor, um artista? Um escritor que publica na internet de fato prescinde de todo tipo de trabalho editorial? Quem tem uma pagina de orkut e efetivamente dono de seus conteudos? Sao de fato efemeras todas as postagens de um facebook? O blogueiro e o unico responsavel pela circulacao de seu blog? ... Em todo caso, o ciberespaco nao e todo o mundo, nem um universo paralelo ao "real", senao parte do mundo contemporaneo, desdobramento historico de modos de viver de outrora, forjado por praticas que nao sao homogeneas nem uniformes. O que parecem ter em comum e fazerem parte de uma nova relacao espaco-temporal, de um espaco nao necessariamente contiguo e de um tempo nao necessariamente cronologico.

Esse e o ponto de partida para procurar compreender os fluxos textuais de nosso tempo e, entao, suas formas de producao e consumo, noutros termos: como as tecnicas de producao e circulacao forjam objetos que, por sua vez, sobre elas recaem, num rebatimento que poe em questao toda demarcacao--o que ha de real num reality show, por exemplo?

Autoria, leitura e fluxos de texto

Com base numa pesquisa iniciada em 2003, propomos observar a autoria e os textos em seu movimento de constituicao, entendendo que a autoria se efetiva na leitura (de um outro, ou de um outro de si) e que os sentidos se produzem nessa efetivacao (nesse encontro, que se da no texto) (SALGADO, 2011). Essa posicao tem implicacoes teoricas que se inscrevem no quadro da analise do discurso de tradicao francesa, seguindo vertentes que se ocupam de compreender os dispositivos enunciativos nas conjunturas historicas em que se configuram, e nao restritos aos contextos imediatos de enunciacao (MAINGUENEAU, 2006). Interessa a essa orientacao teorica a dinamica em que se instituem identidades (institucionais, subjetivas, textuais, autorais ...), e importa considerar que essa dinamica e entendida como sistemica: a um conjunto de restricoes semanticas, de condicionamentos dos sentidos dos dizeres, corresponde um conjunto de praticas sociais e historicas, de modos de ser e estar no mundo. Mas nao se pode desconsiderar que essa dinamica sistemica, instituinte de identidades, nada tem de homogenea, e as proprias reiteracoes de praticas se dao mais ou menos revistas, refeitas, eventualmente levadas a seus limites, enfim, ha tambem, nessa dinamica sistemica, equivocos, derivas, diluicoes, zonas de fronteira.

Diante disso, fazemos a hipotese de que a criacao se da quando essa heterogeneidade constitutiva e posta em relevo, quando as identidades sao flagradas em seus aspectos menos firmes, tateantes, hesitantes e, ao mesmo tempo, esses aspectos sao percebidos como forca de transformacao do ordinario ou, pelo menos, sugestao de movimento transformador. Nesses termos, a criacao se define por apontar o extraordinario. Em todo caso, se se trata de pensar discursivamente, e os objetos discursivos sao historicos por definicao, ordinario e extraordinario se definem historicamente tambem, portanto conjunturalmente e que se pode apreender a criacao. E cremos que o conceito de periodo tecnico-cientifico informational (SANTOS, 2000) e bastante produtivo para a abordagem dessa conjuntura.

Cremos que ha proveito analitico no exame das conjunturas que produzem, por exemplo, a longevidade de certas obras, como as de Da Vinci ou as de Shakespeare, para ficar em dois casos emblematicos do canone ocidental. Ocorre que, em conjunturas diversas, por razoes as vezes bastante diversas, essas obras seguiram apontando para o extraordinario em relacao ao ordinario instituido, ou, como canone, deixaram de circular nos termos da fruicao que lhes foi contemporanea, mas nao deixaram de ser referidas. Nos dois casos, circulam versoes, recortes, mencoes, remixes ...

Algumas questoes interessantes se poem ai. A primeira delas, relativa a autoria. Quem e o autor da versao satirica em que contracenam Julieta Monicapuleto e Romeu Montequio Cebolinha, de Mauricio de Sousa? Lembremos que em 1978 uma peca teatral foi levada ao palco enquanto se produzia a versao televisiva do que saiu em HQ (historia em quadrinhos) e tambem em LP (disco de vinil long play) nesse mesmo ano. Se considerarmos todas as adaptacoes e ajustes que configuram cada um desses meios, que autoria atribuiremos a quais dessas versoes? De todo modo, pode-se afirmar que todas elas celebram a autoria de Shakespeare e sao interessantes porque nascem dai, dessa historia de amor tao relembrada--nao necessariamente tao conhecida, se se pensar em termos de contato com o texto shakespeariano, o original. Alias, a propria nocao de origem poe um problema. De novo Shakespeare e um caso modelar, pois, como se sabe, ha controversias em torno da atribuicao autoral de seus textos. Seja como for, Shakespeare circula como referencia autoral e substrato de tantas criacoes. Podemos pensar, por exemplo, no prestigiado grupo teatral Galpao, que, nos anos 1990, numa concepcao do diretor Gabriel Villela, apresentou um Romeu e uma Julieta circenses inspirados no sertao mineiro de Guimaraes Rosa, correndo sessenta cidades brasileiras e mais nove paises, sendo aclamado pelos ingleses, em 2000, no palco do Shakespeare's Globe Theatre. O que apresentaram e Shakespeare ainda? De certo modo sim, e justamente isso o que permite aos estrangeiros acompanhar a trama cantada em modinhas de um certo portugues sertanejo-rosiano.

A segunda questao decorre do modo como abordamos a primeira. A autoria, por exemplo a de Shakespeare, e sobretudo um efeito de recepcao, das varias formas de recepcao, que sao sempre, como ja se sabe na longa tradicao de estudos sobre leitores e leituras, formas de apropriacao. Assim, caberia perguntar: quando e que as releituras e interpretacoes estao autorizadas a circular como criacoes, e quando nao? Que apropriacoes se podem por em circulacao como criacao? Em casos como os citados, o extraordinario que nos leva a chamar de criacao uma certa apropriacao de uma dada autoria e justamente o reconhecimento dessa autoria-primeira e, entao, o da segunda, que nela se apoia para produzir algo de novo, ou de renovado, se quisermos ser rigorosos.

A terceira questao que se poe e a da circulacao, que abre para a problematica dos meios e suportes como parte inextricavel dos fluxos de texto. Sobre isso, voltemos a conhecida passagem do historiador Roger Chartier:

[...] convem lembrar que a producao, nao apenas de livros, mas dos proprios textos, e um processo que implica, alem do gesto da escrita, diversos momentos, tecnicas e intervencoes, como as dos copistas, dos livreiros editores, dos mestres impressores, dos compositores e revisores. As transacoes entre as obras e o mundo social nao consistem unicamente na apropriacao estetica e simbolica de objetos comuns, de linguagens e praticas ritualizadas ou cotidianas [...] Elas concernem mais fundamentalmente as relacoes multiplas, moveis e instaveis, estabelecidas entre o texto e suas materialidades, entre a obra e suas inscricoes (CHARTIER, 2007, p. 12, grifo do autor).

Pensar dessa perspectiva a circulacao dos textos, seus fluxos, e pensar nas suas formas de inscricao material, no modo como gerem o interdiscurso, erigindo-se em unidades reconheciveis, em identidades, lugares discursivos singularmente ocupados--autor, leitor--e objetos tecnicos correlatos --o texto, o livro, a obra. Com base nisso, trataremos das tres questoes acima indicadas segundo propostas teoricas que entendemos terem a seguinte afinidade: procuram abordar as relacoes entre praticas sociais e objetos tecnicos caracteristicos do periodo historico comumente referido como globalizacao, ao qual correspondem os fluxos de texto gerados pelo que comumente e referido como hipermidia. Referencias tao corriqueiras e difundidas quanto complexas e opacas.

Para pensar nas formas de inscricao dos textos socialmente identificados como criacao, recorremos, entao, a discussoes do sociologo Armand Mattelart sobre diversidade e industria cultural; a nocoes do geografo Milton Santos relativas ao periodo tecnicocientifico informacional; a nocao de paratopia elaborada pelo linguista Dominique Maingueneau, que julgamos bastante operacional na analise dos objetos tecnicos hipermidiaticos.

Um "mundo sem fronteiras": cultura no periodo tecnico-cientifico informacional

Evidentemente, pensar sobre cultura abre para muitos campos e, em cada um deles, para debates e definicoes que, mais ou menos transitorias, procuram dar conta da producao simbolica que caracteriza os sujeitos historicos, tanto na sua condicao de ancestralidade (todo ser humano descende de e assume continuidades ou rupturas com a tradicao), quanto na sua condicao mais imediata de vida (cultura de um pais, de uma regiao, de uma empresa etc.). Aqui, interessam-nos os fluxos textuais vistos como percursos de producao de sentidos que sustentam ou transformam identidades e, por isso, sao tomados como um dos elementos definidores da cultura: os textos sao objetos tecnicos de alto valor simbolico.

Conforme se disse, interessa compreender a circulacao desses objetos tecnicos na atual conjuntura. Nossa hipotese inicial ganha relevo quando examinados os fenomenos discursivos caracteristicos da hipermidia, que dialoga com as midias que lhe sao anteriores e exteriores, refazendo praticas, afetando e sendo afetada. Para um analista do discurso interessado na circulacao, nos modos de permanencia de um discurso e nos de transformacao, e basica a inter-relacao entre praticas sociais e objetos tecnicos, participes de uma semantica definida na conjuntura historica. E nessa inter-relacao que gostariamos de nos deter. Para tanto, recorremos a Mattelart, estudioso das ciencias da informacao e da comunicacao, que assume a perspectiva da historia das tecnicas para pensar sobre a constituicao material dos objetos de alto valor simbolico; e a propostas de Santos, cuja obra supoe a superacao da dicotomia entre polos estanques--o natural e o social--permitindo, com isso, pensar no espaco geografico como uma dimensao inalienavel da sociedade, constituido por formas que corresponderiam tanto aos objetos tecnicos quanto as formas naturais humanizadas pela divisao do trabalho, cuja dinamica sistemica e dada pelos fluxos de materias e informacoes.

Mattelart (2005) lembra que no seculo XIX e que se instauram um conceito canonico de cultura e a disciplina que a toma como objeto (antropologia cultural ou etnologia), e se propoe,

[...] situar os diferentes movimentos expressivos da historia que lhe deram sentido e carrear definicoes materiais da cultura, das culturas, das interacoes e dos fenomenos de aculturacao que marcaram a vida das sociedades. Escavar o subsolo das palavras instaveis, a fim de isolar as diferentes sedimentacoes da reflexao sobre a dimensao simbolica dos processos posteriormente conhecidos como inter--, multi--ou transacionalizacao, depois mundializacao e globalizacao. Permitir ver em que as palavras sao dotadas de um poder perfomativo; como elas agem no mundo (MATTELART, 2005, p. 14).

Desenvolve, entao, um raciocinio sobre a "domesticacao do diferente", apontando para nivelamentos e padronizacoes impostos pelo funcionamento das nacoes civilizadoras, as mesmas que passam a se ocupar da "salvaguarda da diversidade cultural". Isso se da fundamentalmente porque as formas de organizacao racional do mundo industrializado, inscritas na divisao do trabalho e na diferenciacao de funcoes, altera formas de sociabilidade, fazendo conviverem um certo pluralismo ligado as nocoes de autonomia e de liberdade (dos individuos, dos grupos, das comunidades, das nacoes ...) e uma crescente normatizacao das atividades, com a permanente tensao suscitada pela proliferacao de fontes de fragmentacao (novos fluxos de pessoas, novas formas de emprego, novas necessidades de formacao e qualificacao ...). Instaura-se o mundialismo, um estreitamento do mundo materializado, por exemplo, na densa rede de fios e cabos submarinos instalados na virada do seculo XIX para o XX. Ou nas novas praticas de intervencao territorial, que, em nome da liberdade e da democracia, transitarao pelo globo como forcas expedicionarias que visam garantir o bom funcionamento local onde supostamente falham a liberdade e a democracia celebradas globalmente. Ou na crescente organizacao de associacoes de classe, que podem ser supranacionais e produzem situacoes de encontro cada vez mais frequentes, conforme o desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicacao viabiliza progressivamente.

Desse universo de intensificacao dos fluxos e da producao de objetos tecnicos, caminha-se para uma questao de temporalidade: cultura e informacao confundem-se como se o fluxo de informacao fosse a espuma da cultura, o mais efemero momento de expressao de uma onda que tem toda uma historia de formacao. As duas guerras mundiais sao marcos disso, e depois delas que o manejo da opiniao publica, circunscrevendo a propria nocao de opiniao publica, se poe como politica de Estado. E, sendo politica de Estado, produzira um aparato voltado a compreender e mesmo a produzir a opiniao publica. A ONU e sua agenda pela paz mundial sao exemplos cabais desse aparato legislativo e executivo. No ambito da ONU, a Unesco deve zelar por valores universais "da educacao, da ciencia e da cultura"--enumeracao que ja delimita cultura como algo diferente, entao, de educacao e ciencia. E ja ai, nessa busca por estabelecer categorias para poder operar universalmente, as confusoes sobre o que seja cultura se dao a ver. Conta Mattelart (2005, p. 57) que,
   Na realidade, para alem do discurso humanista dos
   fundadores, o conceito de cultura provoca divisoes.
   A desventura do escritor Louis Aragon, convidado a
   pronunciar uma conferencia magistral na Sorbonne
   por ocasiao da inauguracao da Unesco, e um
   exemplo disso. Ele propos como titulo aos
   organizadores: "La culture et le peuple (ou le gens)".
   Na versao britanica o titulo que apareceu foi:
   "Culture and People" e na americana "Culture of
   Masses". Mas isso ainda nao representava o fim das
   agruras de Aragon. A expressao americana foi
   revertida para o frances, e a circular que anunciava a
   conferencia trazia o titulo "Culture des masses".
   Quando o texto de sua conferencia foi publicado em
   1947, a editora da Unesco deu-lhe como titulo: "Les
   elites contre la culture"! Essa sucessao de confusoes
   a partir de uma palavra inspira ao escritor esta
   advertencia: "Nada no programa da Unesco poderia
   ser executado se, desde o inicio, nao se demonstrasse
   o mais extremo rigor na utilizacao que ali se faz das
   palavras".


Nesse periodo, Hollywood se firmava como industria cinematografica, herdeira de experiencias importantes de difusao da imagem e apoiada nas exigencias do Plano Marshall, argumento para abrir paises europeus aos investimentos dos EUA. Em muitos paises, notadamente na Franca, punham-se questoes sobre ser esta uma industria cultural. Na decada de 1970, so Japao, India e o bloco comunista nao viviam a imponencia hollywoodiana em seus territorios (MATTELART, 2005). Alem desse exemplo inconteste, a industria fonografica, de muitos modos ligada a cinematografica, tambem se expandia a partir dos EUA, subsidiando radios e casas de espetaculo no mundo todo. A publicidade e o marketing, com premios regionais, nacionais e internacionais, passavam a objeto de formacao universitaria e a campo de pesquisa legitimado por agencias de fomento e estudos psicologicos, sociologicos, entre outros, com vistas a difundir nao so produtos, mas marcas, simbolos que produziriam novas formas de pertenca social (a grife estampada do lado de fora das roupas e uma das materializacoes dessa diretriz).

Nessa configuracao do jogo de forcas mundial, as empresas multinacionais revelaram-se cada vez mais transnacionais--elas nao assumiam as feicoes da nacao onde se alocavam, conforme advogam certos discursos administrativos do periodo, mas atravessavam-nas, transitavam por elas, estabelecendo relacoes muitos variadas entre o local e o global. Nesse movimento desigual e vario e que a ideia de diversidade cultural ainda vive, a despeito de toda essa industrializacao produzir padroes, normalizacoes, standards ... Isso se deve a propria transicao paradigmatica entre o fordismo e a acumulacao flexivel que caracteriza esse periodo. O advento das novas tecnologias de informacao e comunicacao promoveu inicialmente transformacoes profundas na gestao das corporacoes, que passaram a se estruturar crescentemente em rede (e nao mais em hierarquias piramidais do tipo matriz-subsidiarias, embora esses termos tenham perdurado no imaginario) e, ao mesmo tempo, foi criada a informacao monetaria pela Reuters--a esse respeito, ver especialmente Kurtzman (1995), que fala na substituicao da paridade ouro-dolar pelo padrao megabyte. O dinheiro tambem se transformava num objeto tecnico, permitindo, assim, novas estrategias de acao das corporacoes (ANTAS JUNIOR, 2005).

E tambem nos anos 1970 que o free flow of information, pauta das politicas de Estado dos EUA, implanta-se em muitos paises, aos quais cada vez mais aparelhos tecnologicos chegavam, instituindo novas praticas do que se passou a chamar internacionalmente de comunicacao: acesso e participacao nos fluxos de informacao.

A entrada na era pos-colonial inverte no conjunto do sistema das Nacoes unidas a relacao de forcas Norte/Sul. A Unesco se transforma no epicentro dos debates sobre a troca desigual dos fluxos de informacao e de comunicacao. A defesa do Movimento dos Paises Nao-Alinhados de "uma nova ordem mundial" nesse campo equivale aos esforcos desenvolvidos pelo grupo dos 77 para mudar os termos do intercambio comercial por meio de uma "nova ordem economica mundial". A reivindicacao a um "direito a comunicacao", em seus dois aspectos, acesso e participacao, perturba a ordem midiatica (MATTELART, 2005, p. 80).

Entre outras coisas, firmam-se tendencias como a mudanca da designacao de grandes agencias publicitarias, que passam a consultorias de comunicacao; comunicacao passa a ser um termo que figura em ministerios, secretarias e toda sorte de instancia administrativa decisoria, em instituicoes publicas e privadas; a diversidade e, paradoxalmente, proclamada como padrao de excelencia. Em termos discursivos, isso e muito relevante: ser diverso supoe um parametro de comparacao--diverso de que? Toda a industria cultural sera afetada por essa pergunta, porque sera chamada a mostrar "diversidade", portanto a erigir parametros identitarios, e isso so sera possivel com o desenvolvimento de precisos instrumentos de dominio eletronico do tempo que permitam a observacao e a medicao dos publicos (targets), das flutuacoes de seus comportamentos. Trata-se de considerar que,

Nao ha cultura sem mediacao, nao ha identidade sem traducao. Cada sociedade retranscreve os signos transnacionais, adapta, os reconstroi, reinterpreta, reterritorializa-os, "ressemantiza-os". E isso em diversos graus, de acordo com os campos, segundo o "coeficiente de internacionalizacao", como diriam Durkheim e Mauss, das sociedades e dos grupos. A ideia de apropriacao individual e coletiva corresponde a uma mudanca de paradigma no conjunto das ciencias humanas, que abre para novos objetos de pesquisa, para novos metodos, para novas referencias teoricas. Visao reticular da organizacao social, retorno ao sujeito em seu estatuto de ator, aos mediadores e intermediarios, aos vinculos intersubjetivos, aos rituais do cotidiano, aos saberes comuns, as artes de fazer dos usuarios ou praticantes, as identidades de proximidade e as inscricoes multiplas sao alguns de seus tracos (MATTELART, 2005, p. 97-98).

Isso explica nossa aproximacao com a geografia de Milton Santos. Seu conceito de periodo tecnicocientifico informacional circunscreve o que se passa desde os anos 1970, quando se firmam as redes em que a dinamica local/global se constitui, produzindo padroes ao saudar a diversidade. A periodizacao geografica nao prescinde da historica, mas nao coincide com ela; estudando o espaco, estuda-se nele o tempo: o espaco e uma acumulacao desigual de tempos, compoe-se de divisoes preteritas e contemporaneas do trabalho num dinamismo conjunto, produzindo o que comumente se denomina presente.

Em artigo fundador, publicado em 1977 no n. 54 do Boletim Paulista de Geografia, Santos propoe "a formacao socioespacial como teoria e como metodo" para abordar as relacoes entre sociedade e espaco:

Pode-se dizer que a Geografia interessou-se mais pela forma das coisas do que pela sua formacao. Seu dominio nao era o das dinamicas sociais que criam e transformam as formas, mas o das coisas ja cristalizadas, imagem invertida que impede de apreender a realidade se nao faz intervir a Historia. Se a Geografia deseja interpretar o espaco humano como o fato historico que ele e, somente a historia da sociedade mundial, aliada a da sociedade local, pode servir como transformacao a servico do homem. Pois a Historia nao se escreve fora do espaco, e nao ha sociedade a-espacial. O espaco, ele mesmo, e social (SANTOS, 1977, p. 82).

Desenvolve, a partir dai, um corpo teorico em que o espaco se poe nao como receptaculo inerte de acoes humanas que o moldam segundo suas necessidades, mas como responsivo as praticas sociais, tao assimetrica e heterogeneamente responsivo quanto o sao as praticas cultivadas numa sociedade. Ora, numa sociedade intensamente tecnificada sob os auspicios da ciencia, que ve explodirem os fluxos de informacao e de comunicacao, estudar a materialidade espacial permitira compreender como as praticas constroem os objetos, que recaem sobre as praticas, que recaem sobre os objetos, em uma dialetica socio-espacial que institui materialmente o mundo humano, as coisas de que ele vai sendo feito.

Isso permite entender o que sao objetos tecnicos. Um rio como o Tiete, na cidade de Sao Paulo, nao e so um rio, pois foi retificado para dar lugar as vias marginais, sofreu varias manobras de contencao, recebeu vazao canalizada de outros rios e corregos, teve redefinidas suas margens, tem seu fundo escavado permanentemente. E um sistema tecnico constituido por objetos tecnicos, engenho humano materializado; materializacao que se da pela identificacao de certas necessidades e certas possibilidades; identificacao que acontece a partir de certos lugares socialmente demarcados; demarcacao instituida historicamente. Dessas redes se faz o espaco geografico, da atribuicao de funcoes e valores a rios, vias, edificacoes, regimes pluviometricos, computadores, livros e outros engenhos humanos portadores da semantica em que se instituem. Embora haja muito mais a dizer a respeito das categorias fundamentais dessa visada geografica, arriscamo-nos a seguir adiante com esses rudimentos, para chegar ao trabalho de Santos que mais nos interessa nestas reflexoes sobre os fluxos de texto atuais, nos quais examinamos a criacao como um jogo entre ordinario e extraordinario. Em Por uma outra globalizacao, Santos aponta a "tirania da informacao e da financeirizacao" como pilares da versao concentradora e excludente da globalizacao. Explica:

A globalizacao e, de certa forma, o apice do processo de internacionalizacao do mundo capitalista. Para entende-la, como, de resto, a qualquer fase da historia, ha dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das tecnicas e o estado da politica. [...] As tecnicas sao oferecidas como sistema e realizadas combinadamente atraves do trabalho e das formas de escolha dos momentos e dos lugares de seu uso. E isso que fez a historia.

No fim do seculo XX e gracas aos avancos da ciencia, produziu-se um sistema de tecnicas presidido pelas tecnicas da informacao, que passaram a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando ao novo sistema tecnico uma presenca planetaria.

So que a globalizacao nao e apenas a existencia desse novo sistema de tecnicas. Ela e tambem o resultado das acoes que asseguram a emergencia de um mercado dito global, responsavel pelo essencial dos processos politicos atualmente eficazes (SANTOS, 2000, p. 23-24).

Desse modo, as tecnologias da informacao e da comunicacao trazem ao periodo elementos ineditos, ja que o espaco geografico, alem dos eixos das sucessoes e das coexistencias, passa a contar com o advento da ubiquidade. Vale-se crescentemente da simultaneidade espaco-temporal como um recurso a ser explorado na acumulacao de capitais em diferentes setores economicos; as corretoras e os bancos de Wall Street, junto com as grandes empresas de comunicacao estadunidenses e europeias, foram, sem duvida, dos primeiros a experimentar, explorar e investir pesadamente na producao e na expansao dos sistemas tecnicos voltados a essa producao nova da dinamica espacial.

A existencia das possibilidades tecnicas da simultaneidade espaco-temporal nao bastava para que essa nova estrutura se realizasse. Foi preciso uma articulacao politica entre agentes publicos e privados para que a circulacao de informacoes (na forma de ordens, dinheiro, imagens, textos etc.) se efetivasse de modo operacional e confiavel. Esse esforco instituiu novas formas de relacao entre corporacoes e entre o publico e o privado. Tambem conduziu a estruturacao de sistemas e objetos tecnicos mais precisos, compostos por intensos conteudos de ciencia, e consequentemente foram se tornando monofuncionais e rigidos, condicao de seu bom funcionamento com comandos a distancia. Esse processo que pressupoe a participacao de agentes variados da esfera publica e uma gama diversa de agentes corporativos e tambem naocorporativos, alem dos novos agentes governamentais e nao-estatais--as ongs--, conduziu a profundas transformacoes; inclusive novas formas de direito comecaram a emergir (Lex Mercatoria, direito da producao, direito sistemico), isto e, novas regulacoes para dar conta das praticas ineditas promovidas pela simultaneidade. E a partir dessa conjuntura marcada por uma aceleracao da historia, pela emergencia incessante de novas praticas, novas tecnicas, ate mesmo novos setores economicos (surge o quaternario, composto por novas formas de consultoria, como os servicos de telecomunicacao) que Santos teoriza sobre o periodo, propondo os elementos da globalizacao, aspectos de uma totalizacao em movimento, separaveis apenas para fins analiticos, embora claramente identificaveis: motor unico, unicidade tecnica, convergencia dos momentos e cognoscibilidade planetaria.

Assim, para compreender a logica processual desse periodo, assentada em fluxos proliferantes, e imperativo compreender esses elementos e suas manifestacoes empiricas. O motor unico, alimentado pela mais-valia global que se forma a partir da criacao da informacao monetaria, e evidentemente uma forma dominante de producao e expansao do capital, e se manifesta predominantemente como capital financeiro, mas nao substitui os motores que ja existiam. Desse modo, ha o motor unico, mas ha tambem os varios motores que constituem o sistema economico atual--o motor estadunidense, o frances, o brasileiro etc.

A unicidade tecnica, fruto das novas tecnologias, como os outros elementos, apresenta a caracteristica singular de sistemas tecnicos e objetos tecnicos ubiquos e universais, cuja tendencia e de unificacao. Eles tem a capacidade de unificar os demais sistemas, impor ritmos e instaurar logicas e finalidades para seu funcionamento. De fato, sem a fase fordista precedente, essa dinamica nao seria possivel, porque antes da unificacao foi necessaria a etapa de padronizacao dos sistemas tecnicos, bem como das suas normas de uso.

Essa aceleracao da historia traduzida pela emergencia de novas tecnicas que permitem a conexao instantanea entre diferentes lugares e que instauram novas praticas sociais, institui a convergencia dos momentos; a possibilidade que hoje temos do conhecimento instantaneo do acontecer do outro. Esse e um dado do periodo que, a primeira vista, presta-se a saber mais rapidamente da vida alheia e, embora seja fato, e tambem um dado da hegemonia, por exemplo: quando um furacao no Caribe se dirige para o sul dos Estados Unidos, a bolsa de valores em Sao Paulo comeca a ter os precos das empresas de suco de laranja valorizados, com a expectativa de que a tempestade devaste as producoes agricolas daquele pais.

Esse mesmo exemplo nos serve para falar da cognoscibilidade planetaria, intimamente relacionada a convergencia dos momentos: a informacao da tempestade tropical--direcao, velocidade, momento de origem e momento de impacto--e produzida por um conjunto de tecnicas (orbitais, nesse caso), de especialistas e de empresas que fazem circular textos (informes, contratos, noticias, estudos etc.). A cognoscibilidade planetaria retoma a superficie da Terra como plana, na medida em que agora, supostamente, e possivel saber de tudo o que se passa no planeta; ha uma matematizacao da paisagem com a producao e a difusao instantanea de conhecimentos, mais ou menos banais, mais ou menos cientificos, de todo tipo de informacao localizada na rede mundial de computadores, que vem servindo de modo crescente para orientar acoes de todo tipo, principalmente onde as geracoes mais recentes se organizam em termos de mercado de trabalho. Eis o periodo tecnico-cientifico informacional esbocado apenas, mas que nos permite entender que,

Objetos e acoes contemporaneos sao, ambos, necessitados de discursos. Nao ha objeto que se use hoje sem discurso, da mesma maneira que as proprias acoes tampouco se dao sem discurso. O discurso como base das coisas, nas suas propriedades escondidas, e o discurso como base da acao comandada de fora impelem os homens a construir a sua historia atraves de praxis invertidas. Assim, todos nos tornamos ignorantes. Esse e um grande dado do nosso tempo. Pelo simples fato de viver, somos, todos os dias, convocados pelas novissimas inovacoes a nos tornarmos, de novo, ignorantes; mas tambem a aprender tudo de novo [...] (SANTOS, 2000, p. 87).

Dai que o efeito de sentido "mundo sem fronteiras" se produza num movimento incessante de erigir fronteiras, instituir identidades e desfaze-las ou refaze-las, num movimento em que se formulam as balizas do que e ordinario e do que e extraordinario.

Criacao como paratopia

Instabilidade, descontinuidade, proliferacao. Interessa-nos aqui compreender de que modo a identidade autoral se constroi nessa dinamica de producao e consumo de objetos tecnicos, entre os quais os textos sao os que mais contundentemente poem em circulacao discursos. Lembremos que por identidade autoral referimo-nos ao que se depreende dos textos publicamente recebidos como criacao. Nos termos que Maingueneau propoe, a identidade autoral se estabelece na relacao que mantem com sua encenacao textual, isto e, com o modo como se poe em cena nos textos, o que inclui sua circulacao. Em seu estudo sobre o discurso literario, desdobrando o corpo teorico que desde 1984 vem construindo no quadro da analise do discurso, propoe que entendamos a autoria como "um impossivel lugar":

A doxa advinda da estetica romantica privilegia a singularidade do criador e minimiza o papel dos destinatarios, bem como o carater institucional do exercicio da literatura, sendo a instituicao na maioria das vezes considerada um universo hostil a criacao. E a propria estrutura do ato de comunicacao literaria que se ve negada dessa maneira. Contudo, para produzir enunciados reconhecidos como literarios, e preciso apresentar-se como escritor, definir-se com relacao as representacoes e aos comportamentos associados a essa condicao. Claro que muitos escritores, e nao os menos importantes, retiram-se para o deserto, recusando todo pertencimento a "vida literaria"; mas seu afastamento so tem sentido no ambito do espaco literario a partir do qual eles adquirem sua identidade: a fuga para o deserto e um dos gestos prototipicos que legitimam o produtor de um texto constituinte. Eles nao podem situar-se no exterior de um campo literario, que, seja como for, vive do fato de nao ter um verdadeiro lugar (MAINGUENEAU, 2006, p. 89).

Observe-se que e um impossivel lugar, e nao um lugar inexistente. Os textos sao escritos, circulam, sao lidos, existem; e por existirem, do modo como existem, e que nos poem estas questoes. Com base nisso, Maingueneau pensa a dinamica da producao literaria em tres planos: um espaco, feito de objetos e praticas que levam os individuos a assumir lugares (de leitor, de escritor, de mediador etc.); um campo, em que se confrontam posicionamentos esteticos definidos, entre outras coisas, pelos generos de discurso mobilizados; e um arquivo, isto e, uma memoria discursiva que, ao mesmo tempo em que se poe como heranca de toda nova criacao, e incessantemente refeita, retrabalhada na sua relacao com cada novidade. Triparticao que pode ser finamente compreendida se consideradas as condicionantes do periodo tecnico-cientifico informacional, conforme detalhamos acima.

Nessa dinamica conjuntural em que o lugar de autor se institui como ponto nodal de uma rede--em que ha pontos correlatos, como o lugar de leitor --, cremos que a proposta de pensar a autoria como paratopia, elaborada num estudo dos textos literarios como manifestacoes de um discurso constituinte, isto e, nao topico, que fala por si, sem recurso a outros discursos, valha para os textos em geral, respeitadas as diferencas que caracterizam os espacos, campos e arquivos em que cada texto se inscreve. Segundo Maingueneau (2010, p. 161, grifos do autor),

Se toda paratopia minimamente expressa o pertencimento e o nao-pertencimento, a impossivel inclusao em uma "topia", podemos classificar os tipos de paratopia que um produtor de discurso constituinte e suscetivel de explorar. A paratopia pode assumir a forma de alguem que se encontra em um lugar que nao e o seu, de alguem que se desloca de um lugar para outro sem se fixar, de alguem que nao encontra um lugar; a paratopia afasta esse alguem de um grupo (paratopia de identidade), de um lugar (paratopia espacial) ou de um momento (paratopia temporal). Acrescentem-se, ainda, as paratopias linguisticas, cruciais para o discurso literario, que caracteriza aquele que enuncia em uma lingua considerada como nao sendo, de certo modo, sua lingua.

Para tanto, propoe observarmos que, nessa dinamica, a unidade do lugar de autor e feita de aspectos pessoais (mesmo que o ser empirico nao seja inteiramente apreensivel no texto--e talvez nao o seja de nenhum outro modo--, parece inegavel que a vida que se leva, as relacoes que se cultivam, as experiencias que se tem sao parte inextricavel de uma obra); de aspectos ligados a um reconhecimento social do pertencimento a dinamica acima descrita (o que explica, entre outras coisas, a forca do star system, que muitas vezes faz de textos banais verdadeiras referencias culturais de uma comunidade discursiva); e de aspectos ligados ao trabalho com o material linguistico propriamente (que decerto se da em toda enunciacao, mas que, no caso da literatura, em particular, e, mais amplamente, de todo material escrito destinado a circulacao publica, e a razao de ser dos textos).

Essas instancias da unidade autor--pessoa, escritor e inscritor--se articulam num no borromeano; sao, portanto, indissociaveis, ainda que diferenciaveis. Instancias que se conjugam assimetricamente, conforme os espacos, campos e arquivos se articulam. E mesmo no caso de discursos topicos, como o politico ou o humoristico, por exemplo, parece possivel observar esse jogo, esse modo de por-se em cena. Podemos pensar em como se espacializam as trocas definidoras de lugares discursivos: uma autoria e sempre autoria de alguma coisa, assim como a leitura. Faz diferenca ser autor de um folheto informativo, de uma tese de doutorado, de um artigo, de uma cronica jornalistica etc., assim como ser leitor de cada um desses tipos de texto; praticas sociais e objetos tecnicos distintos estao ligados a cada um desses tipos de texto, que se produzem cada qual num campo, onde circulam e que, ao mesmo tempo, ao circularem, constroem. E esses campos sao tecidos por memorias variadas, cultivadas em cada comunidade discursiva conforme as relacoes espaciais e temporais que produzem sua realidade material, que caracterizam uma dada formacao socioespacial.

Maingueneau fala em tropismos, isto e, em tendencias a paratopia mesmo nas textualizacoes de discursos que nao podem se autolegitimar, que precisam recorrer a outros como fonte, mas soam como identidades ancoradas num Absoluto, efeito produzido por certas praticas caracteristicas do mundo contemporaneo. Fala tambem em atopia (caso do discurso pornografico, que existe e nao pode existir ao mesmo tempo) e em mimotopia (caso do discurso publicitario, que duplica todos os outros como simulacro) (MAINGUENEAU, 2010, p. 164170). No periodo tecnico-cientifico informacional, essas relacoes, como vimos, resultam de um certo entendimento da cultura, em que a definicao de fronteiras identitarias parece nunca estar dada, e funcao discursiva permanente. Se pensarmos, por exemplo, em como os materiais que se dizem alternativos ou marginais sao hoje prontamente rotulados de "cult" e, assim, passam a pertencer a rede, ao sistema ou ao conjunto de sistemas de objetos, logo entenderemos a necessidade incessante de os textos, em seus fluxos, firmarem-se numa explicitacao dessa dinamica constitutiva. O que e o extraordinario num mundo em que o ordinario a todo tempo se refaz? O que faz com que certos materiais sejam recebidos como criacao e nao mera reproducao do que foi criado alhures, outrora? Como, numa unicidade tecnica que se apresenta em rede, numa rede altamente abarcante, movida fundamentalmente por um modus operandi politico e economico dado pelo motor unico, em que se produz um efeito de convergencia dos momentos e de cognoscibilidade planetaria, subsumindo descontinuidades temporais e espaciais, certos textos sao entendidos como singulares, especiais, distintos da massa de textos que se poe a circular todos os dias?

Voltando a nossa hipotese inicial, podemos refinar sua formulacao: a criacao no periodo tecnicocientifico informacional tem a ver com o modo paratopico de gestao das cenas enunciativas que configuram os materiais textuais postos em circulacao.

Com vistas a oferecer uma pequena amostra dos dados que temos compilado, segue-se uma breve analise. Trata-se de um dos textos que compoem o conjunto Blogs do Alem, uma coluna do semanario Carta Capital, revista publicada pela editora Confianca desde agosto de 1994 sob responsabilidade do jornalista Mino Carta, e que tem se oposto frontalmente a outras publicacoes semanais, algumas de longa tradicao no Brasil, firmando uma identidade que assume abertamente posicoes politicas, inclusive em periodos eleitorais, pondo em questao procedimentos de veiculos jornalisticos que se dizem neutros ou independentes, ou que revelam posicionamentos dispersamente, entre colunistas. Um aspecto importante para as questoes de identidade e fronteira que abordamos aqui.

No caso dos Blogs do Alem, note-se o recurso a uma voz "do alem", fartamente explorado no discurso literario, por exemplo, que aqui e conjugado a uma formatacao das novas midias (o blog) que se caracteriza por vivacidade, constante alimentacao, e um arquivo que se produz agilmente, organizado por ano, mes e semana. E se trata de um "blog" impresso, ou seja, uma cenografia do que seria um blog prototipico figura como coluna de comentario, com tracos literarios (e sempre uma fabulacao e uma busca por um estilo que legitime essa fabulacao); tracos humoristicos (convoca-se uma voz do alem para comentar jocosamente episodios midiaticos da semana); e tracos de editorial (assumem-se posicoes firmes, opina-se com tom de autoridade).

No que diz respeito a cenografia de um blog prototipico, a estrategia e uma regularidade que garante identidade aos Blogs do Alem: sempre numa unica pagina, o enquadramento reune uma foto do convocado da semana, que encima o item "Sobre mim", que, por sua vez, encima o item "Sobre o Blog". Eventualmente ha alguma enquete com alternativas; no Blog do Shakespeare, por exemplo, questiona-se "Eis a questao:", e as alternativas sao "Ser" e "Nao ser"). Ao fundo de cada um dos blogs do alem, ha imagens, cores e outros recursos graficos que evocam os templates editaveis oferecidos na internet, recursos explorados para compor a identidade das vozes que falam nas postagens, que terminam com as indicacoes automaticas dos blogs "Postado por X", "X comentarios".

Mas nao e um blog, e uma coluna impressa. E nasceu assim, evocando a hipermidia para compor algo que poderiamos chamar de uma velha midia. Dado o sucesso da coluna, criou-se um site--nao um blog--onde todos os blogs do alem compoem uma galeria que nao faz de cada um deles blog de fato: estao na internet com cenografia de blog, mas num site. Alias, e interessante notar que, ao serem efetivamente abertos para comentarios quando vao para o site, seguem nao sendo mera reproducao digital do que saiu impresso na revista, pois novos sentidos se produzem na interacao com uma rede de leitores, que nao sao os da revista Carta Capital necessariamente. Ha diferencas entre ler o blog do alem inserido no conjunto do semanario, impresso, e no site, que e uma galeria digital dos blogs impressos. Decerto ha toda uma genese que pode ser remontada para os leitores dessa nova rede, mas que se poe de modo distinto, de saida, porque no site aparecem explicacoes que nao aparecem na revista:

Com periodicidade de mais ou menos uma vez por semana, um novo personagem do alem baixa aqui--pode ser um grande genio da humanidade ou um escroque completo. O criterio para ser psicografado e amplo. Na verdade, basta ser famoso e ter morrido. Nem humano precisa ser. Porem, todos sao retratados pelo mesmo medium que, ao contrario dos verdadeiros, intervem na forma, conteudo e estilo--se e que ha. Por isso, nao fique decepcionado por qualquer declaracao que algum idolo seu possa ter enviado la do outro lado. Saiba que ele tambem esta descontente e lhe manda lembrancas.

E preciso dizer que este blog nasceu (e continua) como uma coluna da revista semanal CartaCapital. Nao posso negar que ele incorporou um pouco do espirito da velha midia. Os personagens sao pouco interativos: eles respondem a uma pequena quantidade de comentarios. Tambem pudera: atualmente, a galeria ja passa dos 150 nomes. Pretendo agora, com a reforma do blog, deixar essa area mais viva, com e sem trocadilhos (BLOGS DO ALEM, 2011).

Nos termos das questoes identitarias de que tratamos aqui, e interessante observar que ha criterios, nao so o criterio declarado--ser famoso e ter morrido--mas, entre outras coisas, todo um lexico ligado a forma como se da a convocacao do morto--baixa aqui, medium, la do outro lado, espirito ... Trata-se da evocacao do campo da psicografia, e desse modo que o "alem" intervem. Note-se, porem, que o "medium", aqui, retrata, e quem "baixa" e um personagem do alem--ficcao? Pode-se dizer que nao e propriamente uma psicografia, mas uma cenografia que evoca essa pratica para ser outra coisa: a simulacao do que os verdadeiros mediuns fazem--o autor dos blogs, Vi tor Knijnik (2011), nao e verdadeiro porque, segundo sua declaracao, um medium nao interviria na forma, conteudo e estilo--supostamente um medium nao e um editor, muito menos um criador: ele reproduz ipsis litteris o que um "autor" do alem "dita"?

Em todo caso, nao se trata de louvar ninguem--pode ser um genio da humanidade ou um escroque completo --, mas pode ser que qualquer desses--genio ou escroque--seja idolo de algum leitor. Farrah Fawcet, Ernesto Geisel, Michelangelo, MacLuhan, Pedro Collor, Yves Saint Laurent, Shakespeare ... nao ha uma linha reta no perfilar de personalidades (ou personagens?) convocadas, isto e, nao se pode pensar nesse conjunto em termos de logica cronologica, ou de contiguidade espacial, ou de afinidade cultural; sao vozes que tem mais ou menos a ver com um acontecimento da semana, com um tema em grande circulacao midiatica, mas que tem a ver na medida em que a cenografia construida nas postagens cria essa relacao. E elas nao "baixam" apenas confirmando os estereotipos em que Knijnik se apoia, e preciso operar com elementos conhecidos do grande publico para que a cenografia funcione e tambem garantir o tom jocoso, que lhe da possibilidade de emitir opinioes fortes autorizadas pela zona opaca do humor, da "brincadeira" posta em cena; afinal, sao convocadas memorias de pessoas de verdade, fatos historicos, temas em franca circulacao, mas tudo aparece como fabulacao nessa cenografia. Assim, as "postagens" (que nao sao propriamente postagens, pois nao estao num blog, on line) sao "psicografadas" (embora nao sejam propriamente psicografadas, pois nao e um verdadeiro medium que se encarrega de ouvir um verdadeiro alem) conduzem a raciocinios nada obvios. Em 1o de junho de 2011, a postagem de Macluhan, intitulada "A essencia e a mesma", abordava as questoes pensadas na Galaxia de Gutenberg para constatar, diante da profusao de declaracoes midiaticas em torno da queda ou saida de um ministro, que "e preciso encarar o fato de que, as vezes, a mensagem e a mensagem"--o que poe em questao a formula ja bastante assentada "o meio e a mensagem".

A paratopia e a base da criacao dessas figuras que transitam do obvio estereotipo a reflexao que poe em xeque paradigmas culturais. No site que reune os "blogs", a apresentacao de Vitor Knijnik e tambem material paratopico; produz-se uma identidade que tem caracteristicas tipicas das redes sociais--nome, profissao, atividades que aprecia etc.--geradora de uma imagem de autor instavel, que mostra tracos da pessoa, do escritor e do inscritor assimetricamente arranjados:

Vitor Knijnik ja foi fotografo de eventos, videomaker, roteirista, e professor secundarista. Publicitario de formacao e oficio. Foi fundador e socio da Dez Propaganda. Atualmente, e vicepresidente de criacao da Energy/Powered by YR. E pai, colunista e blogueiro recente (BLOGS DO ALEM, 2011).

Registre-se que o texto esta em terceira pessoa: distanciamento que permite construir uma imagem em que, de novo, nao ha uma linha reta a constituir a voz que fala--e pai, colunista e blogueiro recente, por exemplo. A principio, categorias sem qualquer paralelismo entre si e em relacao as informacoes sobre a formacao e o oficio--e devemos considerar que separar a formacao do oficio tambem gera o efeito transfronteirico de que falamos; e bastante comum hoje que se passe por um tipo de formacao e se exerca oficio totalmente distinto ou distante dela.

Comentamos a seguir passagens do Blog do Medici, publicado em 20 de junho de 2011, cuja "postagem" se intitula "Palpiteiro universal", e cujo raciocinio de base e o seguinte: partindo de consideracoes sobre o mecenato ou o patrocinio na construcao do Homem Universal (em linhas gerais, evocado como sendo aquele capaz de reunir saberes variados com consistencia filosofica e aplicacao pratica em prol da humanidade), chega-se ao twitter --espaco publico tratado como privado? Ou o inverso? Rede de menor importancia em que se discutem questoes cruciais? Ou poderosa rede em que se alimentam declaracoes banais? Um jogo de valores poe em xeque as fronteiras na propria experiencia desse modo de ocupar a hipermidia e construir o ciberespaco. Logo no inicio da "postagem", le-se:

Entrei para a historia como protetor dos escritores, sabios e artistas. Meu intuito, como mecenas, era acabar logo com a Idade Media e fazer bombar a Renascenca, periodo com muito mais prestigio, musica mais alegre, cores vivas e pinturas famosas, mas que, todavia, inspirou piores filmes que a era anterior. Eu era uma especie de Lei Rouanet em carne e osso. [...]

Ajudei pintores do calibre de Botticelli, filosofos do prestigio de Ficino e poetas fundamentais como Pulci. Michelangelo iniciou seus estudos patrocinado por mim. Nao fosse eu, ele teria de ganhar a vida pintando paredes e tetos de uma so cor. Maquiavel dedicou-me sua obra mais celebre. [...] E notem que nenhum deles foi obrigado a usar um bone estampado com o brasao de minha familia (BLOGS DO ALEM, 2011).

A um conjunto de informacoes historicas sobre Lorenzo Medici e sua conjuntura, conjugam-se elementos muito caracteristicos da atualidade desde escolhas lexicais, como fazer bombar, a jogos entre mecenato e patrocinio, como em eu era uma especie de Lei Rouanet em carne e osso ou e notem que nenhum deles foi obrigado a usar um bone estampado com o brasao de minha familia. A supressao de qualquer logica de linearidade temporal e contiguidade espacial irrompe jocosamente para por em relevo coisas serias, questoes humanas permanentes, repostas nos termos da contemporaneidade fluida do periodo tecnico-cientifico informacional. Medici (ou Knijnik autorizado pela fabulacao?) encerra a "postagem" criticando o que resignadamente fez em suas proprias enumeracoes, nas quais os criterios parecem ser largos ou frouxos demais, a ponto de soarem como falta de criterio:

Mas o mundo da voltas e, finalmente, a fantasia renascentista se concretizou. O homem universal apareceu em grandes quantidades no lugar onde menos se esperava: no Twitter. La voce encontra usuarios que, no intervalo de um par de horas, sao capazes de apontar o caminho para o mundo se livrar da energia nuclear, discursar com firmeza sobre as razoes que levam alguem a se tornar um serial killer, discorrer com facilidade sobre como deveriam ser as leis de incentivo a cultura e vaticinar se o Adriano vai jogar ou aprontar. Tudo isso em micropostagens de apenas 140 caracteres. Verdadeiros polimatas (BLOGS DO ALEM, 2011).

E entao acontece o ponto de viragem que se opera em quase todos os blogs do alem, sentencia-se uma opiniao grave e possivelmente inesperada na cenografia delineada ao longo do texto. No Blog do Medici, a voz convocada assim arremata a "postagem", posicionando-se firmemente diante do alarido midiatico da semana:

Mas nao pensem que faco uso de fina ironia. Prefiro essa quantidade de gente com voz a opinar sobre tudo e todos do que meia duzia de especialistas a nos impressionar com seus equivocos (BLOGS DO ALEM, 2011).

Logo embaixo da foto de Medici (tipica de enciclopedias), le-se no item "Sobre mim":

O mecenato esta no DNA de minha familia e se transmite atraves das geracoes. Meu primo Emilio, por exemplo, foi um grande patrocinador da ditadura no Brasil (BLOGS DO ALEM, 2011).

O efeito de convergencia dos momentos poe em xeque a cognoscibilidade planetaria que parece ser um default de toda expressao da atualidade, gerador do efeito de "mundo sem fronteiras" ou, no dizer deste Medici que fala do "alem" (um "alem-mundo"?), da possibilidade tecnica e politica de opinar sobre tudo e todos. A linhagem dos Medici que aparece aqui tambem atravessa tempos e espacos criando uma relacao entre Medicis tao inusitada quanto plausivel, se olhada de um certo lugar--que nao e exatamente o de Lorenzo Medici (e certamente nao o de Emilio Garrastazu), nem o de Knijnik propriamente (e quem seria Knijnik propriamente?), nem o da revista (nao e um editorial, por exemplo). A Historia nao foi desconsiderada, mas reconsiderada numa naocronologia. Ha uma cronografia e uma topografia fabuladas, cuja validade depende dos expedientes que legitimam essa fabulacao, dos generos de discurso convocados e suas respectivas formas de circulacao, que aqui amalgamam novas e velhas midias, questoes humanas fundamentais e efemeridade (ou mesmo leviandade) das praticas que poem em tela essas questoes.

Assim, vive-se na fronteira, na busca por definila e vendo-a desmanchar-se: as identidades instituem-se no movimento, e a ubiquidade e um efeito dessa constante movimentacao, encarnada nos objetos tecnicos e em seus fluxos caracteristicos.

Consideracoes finais

Ha mais a dizer sobre essas nocoes que, embora retomem problematicas fartamente exploradas por diversos campos--caso da autoria e do espaco -, permitem abordar elementos centrais do periodo contemporaneo. Cremos, por isso, que pode ser bastante proveitosa a aproximacao de uma certa geografia, que estuda as formacoes socioespaciais em seus movimentos constitutivos, com uma certa analise do discurso, que se ocupa de pensar os modos de producao, circulacao e consumo dos materiais linguisticos, na medida em que esse cruzamento teorico permite maior acuidade no exame do movimento apreendido nas formas.

Expressas em praticas sociais mediadas por objetos tecnicos, sao essas formas que balizam as identidades, instituindo o que e ordinario e o que nao e, pondo questoes sobre o estatuto das cenas de enunciacao e, necessariamente, sobre os imaginarios mobilizados pelos sistemas de producao e consumo dos fluxos de texto.

DOI: 10.4025/actascilangcult.v33i2.14012

Referencias

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Received on July 14, 2011.

Accepted on July 25, 2011.

Luciana Salazar Salgado (1) * e Ricardo Mendes Antas Junior (2)

(1) Universidade Federal de Sao Carlos, Via Washington Luis, km 235, Cx. Postal 676, 13565-905, Sao Carlos, Sao Paulo, Brasil. (2) Departamento de Geografia, Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: lucianasalazar@ufscar.br
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