Cine Real: ethnography of a movie theater for workers/ Cine Real: etnografia de uma sala de cinema para trabalhadores.
Filho, Claudio Bertolli
Apos um longo periodo, as pesquisas que geralmente tem sido
qualificadas como "estudos sobre o cinema" ramificaram-se,
passando a explorar nao so a construcao de sentidos arquitetados no
processo da producao cinematografica e as bilheterias, mas tambem o
perfil do publico e as condicoes que permitem os sujeitos sociais de
estarem nas salas de exibicao e assistir as peliculas. Assim,
paralelamente ao enfoque do consumo grupal dos conteudos filmicos, a
sala de cinema, ao mesmo tempo como espaco arquitetonico e territorio
simbolico ganhou interesse por parte dos estudiosos, gerando um ainda
pequeno, mas promissor, numero de estudos que buscam englobar a
complexidade de experiencias que podem ser sintetizadas pelo ato de
"ir ao cinema".
Nesta perspectiva, as primeiras iniciativas academicas sobre
o"ir ao cinema" centraram os interesses nas salas de cinema
localizadas nas capitais estaduais, sobretudo nas instalacoes
frequentadas pelas camadas mais privilegiadas da sociedade, onde eram
apresentados filmes recentes e de sucesso de publico. Tributarios da
perspectiva historica, tais estudos primam por ressaltar as
caracteristicas arquitetonicas dos predios que abrigavam as salas de
cinema e as caracteristicas sociais do publico que as frequentavam,
contando para tanto principalmente com fontes impressas representadas
por materias jornalisticas e obras memorialisticas e biograficas,
privilegiando a experiencia individual e tambem de pequenos grupos que
compareciam nos recintos que projetavam filmes (Simoes, 1990; Gastal,
1999; Aguiar, 2002).
Em anos mais recentes, o proficuo dialogo estabelecido entre os
campos da Comunicacao e da Antropologia tem propiciado um novo vigor dos
estudos tematizados pela presenca grupal as salas de cinema. As novas
concepcoes de cultura, especialmente aquela incorporada pela
antropologia comprometida com as propostas da fenomenologia tem
instigado enfoques inovadores, inclusive no referente as condicionantes
de consumo coletivo dos produtos midiaticos.
A conjugacao dos metodos historico e etnografico nos estudos da
Comunicacao tem favorecido o enfoque das salas de cinema como um espaco
no qual se justapoem varias funcoes: lazer, sociabilidade, conhecimento
do mundo e experiencia estetica, dentre outras possibilidades. Com esses
apoios, Guimaraes (2013) analisou um cinema localizado na regiao central
de Sao Paulo como ponto de encontro e de consumo filmico do publico gay
da cidade, enquanto que Kishimoto (2009), com maior detalhismo e rigor
academico, focou as salas de cinema visitadas pela colonia japonesa
radicada em Sao Paulo, ambientes que eram utilizados para (re)lembrar a
cultura do pais natal, reforcar os lacos de solidariedade da comunidade
e travar novos contatos sociais entre os membros da comunidade niponica
e seus descendentes.
No contexto das pesquisas, praticamente ainda nada se registrou
sobre o ato de "ir ao cinema" por parte do proletariado urbano
nacional, sendo que a autoetnografia abre-se como uma possibilidade
inovadora para o estudo deste grupo. Isto porque, uma extensa parcela
das experiencias proprias das camadas subalternas, especialmente as
ocorridas em decadas passadas, foram precariamente preservadas pelas
fontes documentais "tradicionais", permanecendo apenas na
memoria ou, como querem alguns estudiosos, nas representacoes
individuais e coletivas alimentadas pelo preterito efetivamente vivido
(Bosi, 1994).
O ato de dissertar oralmente sobre o presente e sobre o tempo
preterito e a busca de significados do que e dito tem coagido, com
imprecisao, a aproximacao e as vezes identificacao entre a
autoetnografia e as propostas da antropologia interpretativa, que tem
como personagem de proa Clifford Geertz. Comparada ao conceito de
"descricao densa", as criticas a autoetnografia confundem
ambos os conceitos e alimentado uma serie de asseveracoes as quais fluem
para um posicionamento comum: a possibilidade de fuga da
"realidade", portanto algo contrario a cientificidade esperado
de um estudo academico, principalmente quando o pesquisador nao dispoe
do respaldo de outras modalidades documentais que nao seja aquela
alimentada pela fala propria ou alheia. Nesse sentido, a autoetnografia
tem sido objeto de oposicoes baseadas, sobretudo nas criticas que foram
desferidas contra as propostas geertzianas (Del Cairo; Jaramillo Marin,
2008; Reynoso, 2005). No entanto, as pesquisas que levam em consideracao
inclusive a participacao direta e nao velada do autor tem resultado em
avaliacoes mais judiciosas. Como instrumento de "organizacao das
proprias experiencias", a autoetnografia e a autoantropologia
relativizam as classicas fronteiras entre sujeito-pesquisador e objeto
de averiguacao tem sido analisadas com maior rigor, sendo Strathern
(2014) uma das principais representantes deste movimento.
Apesar disso, a maior enfase concedida as subjetividades dos
individuos imersos no conjunto de experiencias vividas no cotidiano em
relacao a concepcao de subjetividades metafisicas tem permitido que a
autoetnografia alcance a posicao de um importante metodo de compreensao
do homem, da sociedade e de seus mecanismos de funcionamento. Alem
disso, a autoetnografia favorece a constituicao de novos crivos para o
pensar academico sobre a relacao entre sujeito pensante e objeto de
estudo, desvelando um horizonte no qual ganha destaque sentidos ainda
pouco revelados da experiencia humana, primeiramente individual e, em
seguida, grupal (Watson, 1993; Clifford, 1998).
O empenho em somar, nao sem contradicoes, a percepcao do
investigador com as de outros sujeitos sociais foi claramente destacada
por dois pesquisadores que, apos registrarem os fundamentos da proposta
autoetnografica, concluiram nos seguintes termos:
E assim que se possa entender o autoetnografia como uma estrategia
que prioriza e descreve a experiencia vivida e as variacoes no modo de
outorga de sentido. O pesquisador e parte da "cultura" que
investiga, esta socializado, pondo em jogo elementos pessoais e sociais.
Portanto, e uma estrategia experiencial. Nisto emergem temores proprios
do pesquisador em mostrar-se, assumindo que as criticas teoricas e
metodologicas pretendem represar o afetivo sao uma forma de
"protecao" das experiencias do proprio pesquisador. A
autoetnografia significa dar conta do que se escuta, do que se sente e
do compromisso nao so com o tema, mas tambem com a acao, ao reconstruir
a propria experiencia. Como ja se insinuou, nisto ocorre uma dupla
implicacao: o pesquisador "e arte e parte" do fenomeno que
quer narrar (Scribano e Sena, 2009, p. 8) (1).
A partir desse posicionamento, o autor manteve contato com outras
pessoas que, como ele, na primeira parte da decada de 1960, viveu a
infancia e/ ou a adolescencia em uma area entao denominada vila Nova,
hoje amalgamada com a vizinha vila Gerty, recebendo o nome-sintese de
vila Nova Gerty, um bairro periferico do municipio de Sao Caetano do Sul
que, por sua vez, distancia-se 11 km do centro da cidade de Sao Paulo,
capital do estado com o mesmo nome. Foram cinco pessoas (uma mulher e
quatro homens), incluindo o pesquisador, que tem em comum nao so a
proximidade de idades e de local de moradia ha quase cinco decadas
passadas, mas tambem pertenciam as familias proletarias que, no periodo
analisado, tinham como um dos principais polos de lazer a presenca no
Cine Real, a sala de projecao de filmes localizado no centro do bairro.
Delineou-se assim o objetivo deste texto: discutir as experiencias
individuais e familiares articuladas com a assidua frequencia ao cinema
e seus reflexos, pelo menos parciais, na trajetoria de vida de cada um
dos envolvidos na pesquisa.
O contar das experiencias vividas ha meio seculo por um grupo que
hoje tem idade entre 58 e 65 anos de vida constituiu-se em uma aventura
que, em certos momentos, fazia com que as confissoes de cada um gerassem
ora conflito ora verdadeiras catarses coletivas. Reviver um passado
povoado de alegrias e tristezas tendo como pano de fundo as condicoes de
vida da classe proletaria tambem gerou emocoes intensas, piadas insanas,
lagrimas e, sobretudo, solidariedade as criancas e adolescentes que um
dia fomos. O contato entre os cinco personagens, que a partir de agora
serao invocados como "colaboradores" deu-se inicialmente por
encontros pessoais na residencia da mae de um dos envolvidos e, em
seguida, os dialogos tiveram continuidade por meio de e-mails, chamadas
telefonicas e, sobretudo, pelo Skype.
Para cumprir a tarefa proposta pela pesquisa, em um primeiro
momento optou-se por enquadrar os personagens no cenario da vila Nova e
no contexto cultural tipico do proletariado sulsancaetanense para, em
seguida, apresentar a experiencia deles e de suas familias quando
frequentavam o Cine Real.
Sao Caetano do Sul e a vila Nova
Denominada no final do seculo XVI como fazenda Tijucucu, o
territorio a sudoeste da entao vila de Sao Paulo foi logo em seguida
doada a Ordem Beneditina que rebatizou as terras recebidas como fazenda
Sao Caetano. A qualidade pobre do terreno fez com que seus primeiros
habitantes a abandonassem, sendo o territorio habitado mais por
indigenas do que por ocupantes brancos, caindo em esquecimento ate o ano
de 1877, quando tornou-se um nucleo colonial imperial para o qual foram
enviadas familias de imigrantes oriundos do sul da Italia, os quais
rebatizaram a area com o nome de Sao Caetano de Thiene, em homenagem a
cidade italiana de onde eram oriundos. Apesar de ai se estabelecerem com
a proposta de se dedicarem a vinicultura, os recem-chegados logo
constataram que o solo era argiloso, portanto improprio para a pratica
agricola, dedicando-se a partir de entao aos trabalhos de olaria,
ceramica e carvoaria.
No inicio do seculo passado, o sucesso das empresas de ceramica e a
disponibilidade de ligacao com Sao Paulo por rodovia e por estrada de
ferro favoreceram que Sao Caetano atraisse novos habitantes - sobretudo
de origem iberica e, em menor escala, niponica -, e a instalacao de
varias industrias de beneficiamento de milho e amendoim, inclusive duas
unidades fabris que garantiram a prosperidade economica local: a
Ceramica Sao Caetano e uma grande unidade das Industrias Reunidas
Francisco Matarazzo, dedicada a producao de oleos (Martins, 2002).
O pequeno, mas importante parque industrial e o comercio local
permitiram que, em 1947, depois de duas decadas de tentativa, o antigo
nucleo de imigrante que havia se tornado distrito de Sao Bernardo do
Campo ganhasse autonomia administrativa, tornando-se um municipio de
apenas 15 [km.sup.2], momento no qual adotou a designacao oficial de Sao
Caetano do Sul. Gracas a politica desenvolvimentista que emblematizou o
governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), Sao Caetano e os
dois municipios vizinhos, Santo Andre e Sao Bernardo do Campo, passaram
a corporificar o ABC paulista, a principal regiao industrial de todo o
pais, contando Sao Caetano com varias industrias de ponta com matrizes
nos Estados Unidos e na Europa, inclusive uma unidade da fabrica General
Motors e outra da siderurgica Mannesmann.
A concentracao industrial, especialmente automobilistica, alterou
profundamente o perfil da populacao sulsancaetanense. No final da decada
de 1950, o municipio contava com cerca de 60 mil habitantes, o dobro de
habitantes computados no inicio da mesma decada, fazendo com que os
imigrantes estrangeiros e seus descendentes, que reclamavam para si a
posicao de elite municipal, ganhassem como concorrentes os migrantes
nordestinos que chegaram a cidade, fazendo com que Sao Caetano fosse
considerada "a maior cidade nordestina fora do nordeste",
passando a fazer parte da Regiao Metropolitana que tem sua sede na
cidade de Sao Paulo.
Refletindo as transformacoes da cidade, a vila Nova, localizada na
periferia da cidade, perdia seus espacos verdes, chacaras e terrenos
baldios, os quais foram substituidos por novas residencias, um cemiterio
e uma favela (cujos habitantes e barracos, por volta de 1967, foram
transferidos, sob escolta militar, no espaco temporal e no sigilo de uma
unica madrugada, para Sao Bernardo do Campo). As ruas, que eram de terra
batida, foram sendo pavimentadas com paralelepipedos e mais tarde com
asfalto, chegando as residencias agua encanada e esgoto subterraneo. Nas
ruas centrais, passaram a correr onibus arcaicos e mal-conservados,
cujas rotas conduziam os moradores da vila para o centro comercial e
politico do municipio e tambem para a cidade de Sao Paulo. Tais
coletivos, sempre apinhados de passageiros a ponto de varios deles
ficarem literalmente pendurados na parte externa do veiculo,
perpetuaram-se na memoria dos colaboradores, pois ostentavam em sua
parte interna cartazes com uma inscricao ironica: "quem nao nasce
para sofrer, nao serve para viver".
No plano da cultura e do lazer, o municipio criava seus polos
proprios. Times de futebol profissional, como a Associacao Atletica Sao
Bento e o Saad Esporte Clube movimentaram as tardes de domingo na cidade
por uns poucos anos, enquanto que o futebol de varzea criava rivalidade
entre os bairros. Desprovida de aparelhos de televisao e de geladeira,
as familias dedicavamse a audicao de programas de radio, sendo que a
Radio Cacique, inaugurada em 1958, tornou-se a voz privilegiada das
questoes locais, lancando para um efemero estrelato duplas de cantores
caipiras e, em seguida, grupos de musicos nordestinos. Para alem disso,
restavam poucas outras opcoes de lazer, como os bares onde se reuniam os
homens a noite e nos finais de semana e as igrejas, onde as mulheres se
encontravam, ou ainda os portoes das residencias, onde no final da tarde
conversavam com as vizinhas. Para as criancas restavam as ruas, onde se
reuniam para jogar bola, trocar figurinhas e contar vantagens.
No leque das opcoes de lazer, poucas outras possibilidades eram
disponiveis. Para os menos afortunados economicamente, as esporadicas
apresentacoes de circos mambembes e as romarias programadas segundo o
calendario cristao eram viaveis. Outras praticas, no entanto,
despontavam como exclusivas das elites locais, como a ida regular as
raras lanchonetes, casas noturnas e restaurantes, e a pratica de
esportes no clube social local, dominado a mao de ferro pela elite dos
velhos imigrantes.
Nesse cenario, a frequencia as salas de cinema despontava como o
principal lazer disponivel para a camada proletaria (Rufini, 1990) e,
ainda mais, como significativa forma de discriminacao dos habitantes do
municipio. Consenso entre os colaboradores, cujas falas dao sentido a
este texto, havia tres tipos de sulsancaetanenses na primeira metade dos
anos 60. Os "ricos e sofisticados", que frequentavam os
cinemas do centro da cidade, como os cines Vitoria, Max e Lido ou ainda
que, sendo proprietarios de automoveis, podiam se dar ao luxo de ir ate
os cinemas da cidade de Sao Paulo, sem ter problema de regressar as suas
residencias, ja que os onibus deixavam de circular a meianoite; os
"pobres", assalariados de baixa renda que frequentavam os
cinemas de bairro, ja conhecidos como "pulgueiros", tais como
o cine Atila, na vila Gerty, o Real na vila Nova, o Planalto, no bairro
Barcelona e o Alvorada, proximo ao centro da cidade. Por fim, existia
tambem o grupo dos "miseraveis", composto pelos mais pobres e
pelos desempregados, que nao tinham recursos suficientes para se tornar
frequentador assiduo de um cinema e que so viam imagens projetadas na
tela quando um paroco resolvia oferecer graciosamente a comunidade a
projecao de filmes em locais abertos. Para atender a um publico sempre
crescente, em meados da decada de 1960, Sao Caetano do Sul contava com
mais de uma duzia de salas de projecao, algumas delas, como os cines Max
e Primax, com cerca de 2.500 assentos, sendo que a maioria acomodava em
media 1.000 espectadores por sessao.
O cine Real foi inaugurado em 1961, na rua Nelly Pellegrino, via
fronteirica entre as entao vila Gerty e vila Nova. Diferentemente dos
cinemas dos "ricos", que contava com um saguao amplo e com
decoracao sofisticada e com o auditorio com poltronas estofadas, o cine
Real dispunha de um saguao acanhado e austero, rimando com uma sala de
exibicao sem qualquer atrativo e com cadeiras de madeira. De propriedade
da familia Santarelli, que possuia varias outras salas de cinema na
cidade, o cine Real destacava-se tambem por dispor de 1.200 lugares,
contando ainda com dois projetores da marca Triunfo. Igual a todas as
salas do periodo, a parte frontal do cinema era recoberta por chamativos
e coloridos cartazes que anunciavam as fitas que estavam sendo exibidas
durante a semana ou que seriam projetados nas semanas seguintes (Relacao
de cinemas..., 2013; Moura; Lima; Nascimento, 2012).
E necessario destacar tambem que, igualmente a muitos outros
cinemas de periferia, os filmes projetados eram antigos, sendo que a
geracao do autor pode assistir no cine Real filmes produzidos desde o
advento do cinema sonoro ate os realizados poucos anos antes de ser
exibido para o publico da vila Nova. Aqueles que desejavam se inteirar
de filmes mais recentes, que estavam sendo comentados nas paginas dos
jornais, tinham que obrigatoriamente dirigir-se aos cinemas "de
ricos" do municipio ou ir ate os principais cinemas de Sao Paulo,
nos quais os ingressos eram mais caros.
O ritual de ir ao cinema
A frequencia assidua a sala de exibicao incorporava e ainda
incorpora um ritual complexo que ja foi assinalado por varios estudiosos
do cinema (Ranciere, 2013; Gabler, 2000; Canevacci, 1984). No entanto,
tais autores pecaram por nao dispensar maior atencao a questao no
referente as classes subalternas, o mesmo acontecendo no referente as
pesquisas nacionais, circunstancia que impoe que boa parte das
informacoes esteja preservada apenas nas recordacoes das pessoas,
condicao que confere ainda mais valor ao metodo da autoetnografia na
realizacao deste estudo (2).
No decorrer do periodo vistoriado, comparecer ao cinema no sabado a
noite constituia-se em uma especie de ritual para as familias
trabalhadoras, definindo-se tambem em um dos pontos altos de reforco dos
lacos de sociabilidade entre os moradores do bairro. A maior parte dos
homens adultos trabalhava ate o meio-dia do sabado nas fabricas e no
setor comercial; quando chegavam em suas residencias, dava-se inicio ao
ritual, cuja primeira acao era o banho de cada um dos membros da
familia, sendo que, em regra, era o unico banho tomado pelo chefe do cla
durante a semana. Esse momento era crucial para as criancas mais
rebeldes, pois a grande punicao para elas era a ameaca de nao
acompanharem seus pais nesse programa familiar; na verdade, raramente
elas eram impedidas de ir ao cinema, pois geralmente nao havia onde e
com quem deixa-las nas noites de sabado.
Os banhos eram seguidos de um jantar cujo cardapio diferenciava-se
daquele adotado nos outros dias da semana, pois compostos de lanches ou
pasteis comprados em bares e pastelarias. Em seguida, fizesse bom tempo
ou chovesse, cada um colocava a melhor roupa; os homens de terno e
gravata, as mulheres de vestidos mais requintados, saltos altos e
penteados preparados para aquela ocasiao, enquanto que os adolescentes e
as criancas ostentavam os trajes que eram utilizados em poucas situacoes
alem da ida ao cinema, como casamentos, festas de aniversarios, de fim
de ano e ainda velorios.
Neste processo, vislumbra-se varias etapas da sociabilidade grupal.
Primeiramente, a propria familia unia-se para o desfrute de um momento
de recreacao coletiva, da mesma maneira que anos mais tarde o grupo
postar-seia frente a um aparelho de televisao para assistir aos seus
programas favoritos. Em seguida, na rota que partia da residencia ate a
sala de projecao, a familia juntava-se casualmente a outros grupos
familiares conhecidos que seguiam na mesma direcao, alimentando
conversas que versavam sobre praticamente tudo, do estado da saude das
criancas e dos idosos ate futebol, trabalho e fofocas nutridas pela
vizinhanca.
Ja nas sempre longas filas para a compra dos bilhetes de ingresso
na sala de espetaculo abria-se oportunidade para os adultos entabularem
conversa com desconhecidos, mas que eram de alguma maneira vistos como
proximos, ja que com certeza moradores no bairro. Os mais jovens
afastavam-se um pouco dos pais; os adolescentes agregavam-se por genero,
permitindo que os rapazes se identificassem pela escola que estudavam
e/ou empregos que ocupavam, contando casos curiosos e proezas, enquanto
admiravam o grupo formado pelas mocinhas que, por sua vez, tentavam
corresponder, com certa indiscricao, aos olhares masculinos em meio a
rizinhos encabulados. Para as criancas, alem de brincadeiras
improvisadas, era reservada uma missao especial: "furar a
fila", isto e, ir ate a proximidade do guiche de venda dos
ingressos, esperar a oportunidade para se infiltrar na fila e assim
comprar em pouco tempo ingressos para toda a familia, operacao que, de
regra, era tolerada pelos adultos "enganados" pela petizada. A
maior parte dos filmes anunciados era proibida para o publico infantil,
mas os gerentes do cinema nao levavam a lei a serio, pois sabiam que o
comparecimento ao espetaculo era um programa familiar e que as criancas
nao poderiam deixar de estar presente.
De posse dos ingressos, o grupo familiar dirigia-se a portaria do
cinema e adentrava no saguao apinhado de gente, onde se deparavam com
novas filas para a aquisicao de pipoca, doces, balas e refrigerantes
baratos, momento que era aproveitado para os adultos alimentarem novas
conversas e tambem para os rapazes se aproximarem mais empolgadamente
das garotas. Esta etapa era realizada ate o momento em que eram abertas
as portas do auditorio; com as luzes acesas e ao som de musicas entoadas
pela orquestra de Ray Conniff ou pela bigband Tabajara, cada familia
procurava animadamente as poltronas com posicoes mais privilegiadas para
assistirem os filmes, em meio a conversas em tom alto, fazendo um dos
colaboradores, lembrar que "parecia um mercado de peixe".
A congregacao familiar sobrevivia por pouco tempo, ja que os
adolescentes masculinos novamente se reuniam nos fundos da sala,
enquanto que os mais jovens brincavam em grupo por todo o recinto. Tais
atividades se desenvolviam ate o momento em que as luzes da sala eram
gradualmente reduzidas e a musica era interrompida e substituida pelo
som de gongos que, soando por tres vezes, anunciava o inicio da projecao
dos filmes. Ocorria entao um silencio geral e a ocupacao das ultimas
poltronas que ainda estavam livres por aqueles que chegavam atrasados ou
que estavam no saguao do cinema comprando novos quitutes para consumo
durante o filme. Nesse momento entravam em acao os
"lanterninhas", funcionarios contratados para fiscalizar os
comportamentos na penumbra da sala, fazendo piscar a lanterna que
portavam quando constatavam beijos prolongados ou a acao de maos
atrevidas, tendo o poder de expulsar do recinto as pessoas que insistiam
em continuar com os atos tidos como imorais e, especialmente, aqueles
que estivessem se comportando inadequadamente por estarem apresentando
elevado estado etilico. Mesmo que proibido, os mesmos funcionarios
toleravam amigavelmente aqueles que teimavam fumar durante o espetaculo.
A sessao de cinema era composta por momentos especificos,
prolongando-se das 19h30 as 23 horas e, dependendo da extensao dos
filmes, ate uma hora mais tarde, ja que ninguem precisava contar com
conducao para retornar ao lar e, o dia seguinte, era domingo, momento em
que os trabalhadores poderiam dormir ate mais tarde. Isto nao impedia
que a gerencia dos cinemas cortassem propositalmente cenas dos filmes
mais longos, para assim a sessao ser encerrada no horario que achasse
conveniente.
As etapas ideais da sessao de filmes eram geralmente as seguintes:
primeiramente a projecao de uma pelicula que mais tarde seria enquadrada
como "filme B", isto e, producoes baratas que pouco superavam
uma hora de duracao, tematizada por tramas protagonizadas por cowboys,
gangsteres, fantasmas, vampiros, cientistas ensandecidos, invasores
espaciais e por qualquer aberracao que chocava ou aterrorizava a
plateia. Assim, sempre se esperava deparar-se na tela com antigas
encenacoes protagonizadas por Edward G. Robinson, John Wayne, Boris
Karloff, Bela Lugosi capitaneando uma legiao de atores fadados ao
esquecimento.
Finda a primeira pelicula, as luzes eram acesas e tinha inicio o
intervalo, o qual durava entre 20 ou 30 minutos, momento no qual era
projetado um capitulo de seriados antigos, sendo lembrado pelo grupo de
discussao Flash Gordon (Flash Gordon, 1938), Super-Homem (Superman,
1948), O homem foguete (King of the rocket man, 1949) e sobretudo
Nacional Kid (National Kid, 1960-1961), alem de seriados com os
personagens Tarzan e Jim das Selvas. Este era a parte do espetaculo
preferido pela garotada, nao so pelos herois que apareciam na tela, mas
tambem porque tais seriados eram dublados, permitindo que mesmo os
pequenos analfabetos, ou proximo disso, entendessem as tramas.
O intervalo poderia se prolongar caso o proprietario do cinema
suburbano, buscando maximalizar os lucros, burlasse a soma que deveria
ser paga as empresas distribuidoras dos filmes. Isto se dava quando um
empresario possuia varias casas de espetaculo ou, por acordo com outro
dono de cinema, predispunha-se a projetar os mesmos filmes na mesma
noite em dois cinemas, invertendo a ordem de apresentacao das peliculas.
Nestes casos, era comum o proprio responsavel por atuar junto as
maquinas de projecao ser encarregado de, logo apos o termino da primeira
projecao, apoderar-se das latas de filmes e rumar a pe ou de bicicleta
ate o outro cinema e voltar com um novo filme (Barcinski e Finotti,
1998). O fato de a familia Santarelli ser proprietaria de varios cinemas
no municipio permitia que isto ocorresse com certa frequencia,
especialmente quando os dois filmes da sessao nao eram de boa qualidade;
isto fazia a alegria das criancas, pois o tempo do intervalo era
estendido, abrindo espaco para a apresentacao de dois ou ate tres
capitulos seguidos dos seriados que elas tanto gostavam.
Pouco depois de finalizada a projecao do seriado, as luzes voltavam
a serem apagadas e dava-se inicio a projecao do filme principal, o qual
nao se restringia a producoes hollywoodianas, apesar de ja serem estas
as predominantes. Certamente para atender a demanda representada pelo
publico imigrante e por seus descendentes, era comum tambem a projecao
de peliculas produzidas nos paises ibericos e na Italia, havendo ainda
apresentacoes de filmes alemaes, sovieticos (isto no periodo anterior ao
golpe militar de 1964) e japoneses.
Gracas ao diario preservado pela esposa de um dos colaboradores da
pesquisa, alguns desses filmes puderam ser lembrados, alem daqueles que
ficaram na memoria dos membros do grupo que forneceu informacoes para a
realizacao deste artigo. A conjugacao da fonte escrita com as
informacoes lembradas por mais de um colaborador permite afirmar que,
dentre as producoes vistas no cine Real encontravam-se desde O cantor de
jaz (The jazz singer, 1927), o primeiro filme sonoro da historia
cinematografica, ate Cidadao Kane (Citizen Kane, 1941), A um passo da
eternidade (From here to eternity, 1951), Palavras ao vento (Written on
the wind, 1956) e Dr. Fantastico (Dr. Strangelove, 1964), alem das
primeiras peliculas protagonizadas pelo agente James Bond.
Fora do circuito Estados Unidos/Inglaterra, o publico chorava com
fitas nacionais como O ebrio (1946) e Floradas na serra (1954), ria com
as chanchadas estreladas por Oscarito, Grande Otelo e Costinha e com os
inumeros filmes estrelados por Mazzaropi. Tambem se sensibilizavam com
os espanhois Marcelino pao e vinho (Marcelino, pan y vino, 1955) e Um
raio de luz (Un rayo de luz, 1960), que fizeram os atores mirins Pablito
Calvo e Marisol astros cultuados inclusive pela garotada
sulsancaetanense. Da mesma forma, peliculas italianas, principalmente as
de cunho romantico, alcancaram sucesso na periferia do municipio, sendo
a principal delas A doce vida (La dolce vida, 1960) e, especialmente,
Dio, como ti amo (Dio, come ti amo, 1966), antecedida pela producao
italo-norte-americana Candelabro italiano (Rome adventure, 1960).
Findo o ultimo filme, o clima de sonolencia parecia dominar a
plateia. Com bem menos barulhos e conversas que no inicio da noite,
todos abandonavam a sala de cinema. Os menores ja ha muito haviam
adormecido e eram carregados no colo pelos seus pais ou por irmas mais
velhas; as familias caminhavam vagarosamente para suas casas, em um
periodo no qual ainda nao haviam maiores receios de serem vitimadas por
atos criminosos. Tambem diferentemente de quando rumavam para o cinema,
os aglomerados familiares voltavam para seus lares em quase-silencio,
evitando conversas mais longas com os vizinhos que tambem tinham ido ao
cine Real.
As sessoes de cinema nao ocorriam todos os dias da semana,
acontecendo apenas aos sabados, domingos e quartas-feiras. Nas projecoes
de domingo a tarde o publico era bem menor, composto por jovens casais
que namoravam "serio", isto e, que pretendiam se casar em
breve e que, portanto, recebiam a permissao de irem sozinhos ao cinema
ou de familias que, por algum motivo, nao puderam ir ao cinema no
sabado. Tais sessoes so lotavam quando ocorria a falta de energia na
noite anterior, fato nao muito raro em Sao Caetano nos primeiros anos da
decada focada, circunstancia que obrigava a gerencia a oferecer a todos
que ja havia adquirido o bilhete de ingresso um passe valido apenas para
o dia seguinte. As sessoes de domingo a noite e quarta-feira a noite
eram pouco frequentadas e dizia-se que so os desocupados compareciam a
elas, qualificacao desabonadora no ambiente do proletariado.
A experiencia estetica-cultural
Entende-se por experiencia estetica a capacidade humana de, ao se
deparar com determinadas situacoes e objetos comprometidos ou nao com a
arte, sensibilizar-se a ponto de vivenciar um conjunto de reacoes e
pensamentos que podem ampliar as possibilidades de o sujeito se orientar
no mundo. Invocada por Walter Benjamin como "iluminacao
profunda" e por Robert Musil como "outro estado", tais
designacoes remetem a "um estado mental ou intelectual que
definitivamente transcendem o comum cotidiano, mas insistem, ao mesmo
tempo, no expressamente intramundano" (Bohrer, 2001, p. 18). As
reacoes que compoem a experiencia estetica, especialmente no referente
aos produtos gerados pelas empresas de comunicacao sao inclusive de
ordem fisica e isto porque, no caso estudado, um filme fala para o
corpo, instigando-o a (cor) responder aos apelos das imagens em
movimento, sons e cores projetadas na tela (Kerckhove, 2009, p. 26).
Nesses termos, assistir semanalmente a dois filmes constituia-se em
uma quebra da monotonia cotidiana da vida comprometida com o trabalho
industrial, com as atividades domesticas, com as brincadeiras grupais,
em suma, com os grandes e pequenos arranjos da existencia proletaria. Em
um mundo relativamente fechado, no qual as conversas entre os membros da
comunidade e as mensagens radiofonicas eram, de regra, as formas de
conviver com um mundo mais amplo, o cine Real definia-se como uma forma
mais abrangente de conhecer e experimentar a realidade distanciada de
Sao Caetano e, certamente, tambem sonhar . Dai o silencio respeitoso
mantido quando se iniciava o filme e a punicao aqueles que teimavam em
perturbar as horas dedicadas a sessao cinematografica; dai tambem os
risos e lagrimas, os "uhs!!!" e "ohs!!" que
acompanhavam as cenas mais tensas e chocantes que eram expostas na tela.
A possibilidade oferecida pelo cinema de o publico desligar-se
momentaneamente dos seus problemas cotidianos esta longe de resultar
naquilo que os criticos mais exaltados classificam como intento
alienador da industria cultural. Enquanto experiencia estetica e
cultural, as mensagens midiaticas instigam seus receptores a refletir
sobre suas proprias existencias e, ainda mais, permitia que o publico
entrasse em contato, mesmo que mediado pelo meio de comunicacao, com
novas opcoes de vida, culturas e valores impossiveis de serem entao
conhecidos por outro meio, ja que a propria aquisicao e leitura de
jornais era raro entre os trabalhadores que, geralmente so os compravam
quando estavam desempregados e recorriam aos classificados para saber
das vagas de trabalho disponiveis.
A experiencia cinematografica nao se esgotava com o encerramento da
sessao de cinema. As questoes representadas nos filmes ocupavam uma
parcela consideravel das conversas travadas durante a semana. Um dos
colaboradores, que entao era adolescente, reportou-se ao fato de, quando
sua familia compareceu a exibicao do filme Farrapo humano (The lost
weekend, 1945), o qual discorre sobre instantes da vida de um
alcoolatra, sua familia e "varias vizinhas da minha mae"
identificaram-se com o enredo, ja que seu pai, assim como varios chefes
de familia da rua em que morava, eram viciados em alcool tanto quanto o
personagem interpretado por Ray Milland. Ainda segundo o mesmo depoente,
o filme sensibilizou a tal ponto que as decisoes apresentadas na trama
filmica passaram a instigar as conversas sobre como resolver o problema
dos pais e maridos bebados. Os filmes e os dialogos por eles alimentados
nas ruas da vila Nova tambem serviam para que a vida fosse (re)pensada e
(re) encaminhada.
Os portoes das casas era o local preferido para as donas de casa se
encontrarem e dialogarem sobre a vida, ganhando espaco privilegiado os
filmes assistidos recentemente. As tramas romanticas, tal como aquela
explorada em E o vento levou (Gone with the wind, 1939) e Tarde demais
para esquecer (An affair to remember, 1958) nao so sensibilizaram a
plateia como tambem alimentaram os sonhos e os dialogos de muitas
mulheres. Uma colaboradora lembrou que, ja no inicio da adolescencia,
havia brigado com uma amiga a ponto de se estapearem, porque insistia
que ambos os filmes "nao eram bons", pois no primeiro,
Scarlett O'Hara e Rhett Butler "nao terminaram juntos",
enquanto que no segundo, Nickie Ferrante "so resolveu namorar a
serio" Terry McKay quando esta ficou aleijada. Passados mais de
meio seculo desde que assistiu a ambos os filmes e conflituou com a
amiga, a colaboradora parece ainda se mostrar inconformada com o
desfecho das fitas, invocando com precisao os nomes dos personagens das
duas peliculas.
O cine Real, como portal para representacoes de realidades mais
abrangentes disponibilizadas a comunidade, tambem dispunha de filtros
para a selecao dos conteudos cinematograficos que poderiam ser exibidos.
Se a busca de lucros por parte da familia Santarelli associava-se aos
interesses dos distribuidores de filmes, e provavel que outros motivos
tambem concorressem para que um filme fosse ou nao levado ao publico.
Definido como um cinema da e para a familia do bairro, e provavel que
algumas producoes fossem vetadas para exibicao por motivos puramente
morais. Mesmo que a regra implicita adotada pelo cine Real era
apresentar filmes que contavam com varios - ou muitos - anos desde sua
realizacao, ate o final do periodo avaliado nem os registros preservados
no diario anteriormente mencionado nem a memoria dos colaboradores desta
pesquisa permitem afirmar que filmes gerados pelo Nouvelle Vague
francesa ou pelo Cinema Novo brasileiro foram apresentados, assim como
uma as producoes com cenas e tematicas mais ousadas assinadas por
diretores italianos e norte-americanos.
Houve tambem nos dialogos entre os colaboradores que levavam a
momentos que poderiam ser classificados como de autoirritacao. Isto
porque a memoria preserva cenas que pareciam cruciais para a
constituicao de medos na infancia e que, em alguns casos se prolongaram
na vida adulta. Perguntas sem respostas como "voce se lembra do
titulo daquele filme no qual um pirata foi morto e enterrado, e depois
nasceu uma arvore sobre a cova e o morto encarnou a dita arvore que
passou o filme inteiro andando e matando as pessoas?"; "qual
era o titulo daquele filme russo que a toda hora aparecia uma rosa de
pedra?" e "sabe aquele filme que contava as horas finais da
vida dos passageiros de um onibus que caiu num precipicio e todos
morreram?" Mas tambem ocorreram confissoes mais claras, como a de
um depoente que disse que, ainda crianca, assistiu os episodios A
invasao dos incas venusianos da serie National Kid e a partir de entao
passou a ter pesadelos com os invasores. Mais ainda, o mesmo depoente
disse que, em anos recentes, numa madrugada deparou-se com a exibicao
dos mesmos episodios em uma emissora de televisao interiorana e
descobriu que ainda alimentava os antigos medos a ponto de nao reunir
coragem suficiente para reassisti-los. Em resposta a essa confissao,
outros colaboradores desta pesquisa brindou o assustado colega com a
frase "Celacanto provoca maremoto!", a qual ficou famosa pelo
fato de o endoidecido Dr. Sanada a proferir aos gritos em varias cenas
do seriado japones.
Se a experiencia estetica-cultural alimentada pelo consumo filmico
suscita amores e medos, tambem e possivel registrar que tal experiencia
contribui tambem para a formacao da personalidade (Lopez Quintas, 2010).
Foi unanime entre os colaboradores a ideia de que os filmes assistidos
no cine Real foram fundamentais em suas formacoes; as concepcoes de
amor, honra, heroismo, reacao frente a adversidade, sentido da vida e da
morte, dentre tantos outros elementos mencionados, foram formatadas -
mas nao ditadas - a partir dos conteudos expostos nas telas do cinema.
Enredos filmicos lembrados em toda extensao ou simplesmente a partir
cenas fragmentarias permanecem nas lembrancas de todos e sao estas pecas
e fragmentos cinematograficos que se mantem como elementos inspiradores
das acoes e pensamentos assumidos no cotidiano de suas vidas.
Um dos membros do grupo de colaboradores afirmou: "acredito
que sou o que sou por ter assistido aqueles filmes!" Esta sentenca
nao implica a admissao que a industria cultural "fez a cabeca"
ou alienou as criancas e adolescentes que hoje sao idosos, ou proximos
disso. Nao. Mesmo que alguns colaboradores desconhecam os fundamentos
teoricos que embasam suas observacoes, parece claro que os valores
expostos na tela foram e continuam sendo objetos de reflexao e
reavaliacao, servindo de alguma forma como pontos de apoio para a
fluicao das sensibilidades e da tomada de decisoes na esfera do
cotidiano. Neste sentido, pode-se inferir que o posicionamento do grupo
se aproxima dos ensinamentos de Garcia Canclini:
Hoje vemos os processos de consumo como algo mais complexo do que
uma relacao entre meios manipuladores e doceis audiencias. Um bom numero
de estudos sobre comunicacao de massa tem mostrado que a hegemonia
cultural nao se realiza mediante acoes verticais, nas quais os
dominadores capturariam os receptores; entre uns e outros mediadores,
como a familia, o bairro e o grupo de trabalho. (...) deixou-se tambem
de conceber os vinculos entre aqueles que emitem as mensagens e aqueles
que as recebem como relacoes, unicamente, de dominacao. A comunicacao
nao e eficaz se nao inclui tambem interacoes de colaboracao e transacao
entre uns e outros (Canclini, 2008, p. 59-60).
Alem disto, a presenca semanal durante anos a fio frente a tela do
cine Real e o continuo consumo de filmes produzidos no decorrer de mais
de tres decadas desde o advento das peliculas sonoras serviu como uma
especie de improvisado curso de historia do cinema. Esta circunstancia
deixou marcas indeleveis em varios aspectos da trajetoria de vida e, em
pelo menos dois casos, na trajetoria profissional dos cinco
colaboradores. Se todos continuam cinefilos e cultuadores dos filmes
antigos a ponto de empenharem parte significativa de seus recursos na
constituicao de colecoes particulares de DVD's e Blu-Rays, dois
deles, acredita-se - nao por acaso - dedicam-se a atividades ligadas ao
universo filmico, um como produtor cultural e outro como docente
universitario.
Consideracoes
O cine Real foi a ultima das grandes salas de exibicao de rua
inaugurada em Sao Caetano do Sul. O inicio do seu declinio e de todas as
salas de cinema localizadas nas ruas das cidades brasileiras e datado do
ano de 1968, quando o projeto economico do governo militar, conhecido
como "milagre brasileiro" favoreceu parte dos trabalhadores
especializados, permitindo que muitos deles adquirissem aparelhos de
televisao e eletrodomesticos pagos em parcelas. Paralelamente a isto, em
1965, foi inaugurada a Rede Globo de Televisao que, gracas ao apoio
governamental, em poucos anos passou a transmitir para praticamente todo
o territorio nacional. O novo polo privilegiado de lazer passou a ser o
aparelho de televisao, ostentado com orgulho na sala das casas
operarias.
As novas circunstancias afastaram paulatinamente as camadas
subalternas dos cinemas que, frente ao declinio de publico, viu-se na
contingencia de anunciar filmes apelativos, nos quais a nudez passou a
ser frequente. O cine Real incluiu na sua programacao filmes proibidos
de serem veiculados pela televisao, como por exemplo, a entao lancada
producao nacional Esta noite encarnarei no teu cadaver (1967), a qual
permaneceu durante semanas em exposicao na tela por dois motivos
basicos: o primeiro era a apresentacao de corpos nus e, o segundo, o
fato de uma das atrizes que revelava sua nudez ser Tania Mendonca, uma
mulher voluptuosa que pouco tempo antes havia sido coroada miss Sao
Caetano do Sul.
A agonia do cine Real deu-se durante uma decada. As pornochanchadas
e as fitas propriamente pornograficas foram atraindo cada vez menos
interessados e em 1978, finalmente, a sala foi fechada, sendo o recinto
ocupado no decorrer dos anos por uma discoteca, uma pizzaria e, por fim
por uma igreja evangelica. Mais recentemente, o predio foi desocupado,
encontrando-se atualmente abandonado e em ruinas. O que fora o principal
centro de encontro e sociabilidade da comunidade, alem de janela cultura
para o mundo, hoje e um estorvo que a vila Nova Gerty deseja que seja
demolido.
A morte do cine Real foi acompanhada pelo fim de todos os cinemas
de rua de Sao Caetano do Sul, existindo agora apenas acanhadas salas de
cinema incrustrada em um shopping center. O que restou dos cinemas
suburbanos reside sobretudo na memoria dos mais velhos e nos parcos
frutos de esforcos esporadicos dos orgaos publicos municipais em
preservar alguns dados sobre aqueles estabelecimentos, conferindo
sentido e importancia a recorrencia a autoetnografia. No entanto, a
importancia para a vida daqueles que frequentaram, na meninice, as salas
como a do cine Real, e inegavel. Eles ainda sonham e vivem o que
assistiram ha mais de meio seculo; eles ainda fantasiam que um dia as
noites de sabado serao tao especiais como aquelas que um dia eles
experimentaram.
DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2015.3.19301
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Recebido em 08 de novembro de 2014.
Aceito em 30 de janeiro de 2015.
Endereco do Autor:
<ADD> Claudio Bertolli Filho <cbertolli@uol.com.br>
Universidade Estadual Paulista Departamento de Ciencias Humanas da FAAC
Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 1401 Bauru, SP - CEP 17033-360
</ADD>
Claudio Bertolli Filho
Livre-docente; docente no Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao
e no Programa de Pos-Graduacao em Educacao para a Ciencia da
Universidade Estadual Paulista.
<cbertolli@uol.com.br>
(1) "Es asi que se puede entender la auto-etnografia como una
estrategia que prioriza y describe la propia experiencia vivida y las
variaciones en el modo de otorgarle sentido. El investigador es parte de
esa "cultura" que investiga, esta socializado com ella, se
pone em juego elementos personales y sociales. Por lo tanto es uma
estrategia experiencial. Emergen los propios temores en tanto hay um
mostrarse del investigador, asumiendo que las criticas teoricas y
metodologicas que pretenden poner um dique a lo afectivo son tambien un
modo de "proteccion" a la aparicion de las vivencias del
mismo. La autoetnografia significa dar cuenta de lo que se escucha, lo
que se siente y del propio compromiso no solo con la tematica sino con
la accion, al reconstuir la propia experiencia. Como ya se ha insinuado,
hay una doble implicacion: el investigador "es arte y parte"
del fenomeno que quiere narrar".
(2) O livro assinado por Barcinski e Finotti (1998), apesar de
privilegiar a biografia de um diretor e ator de cinema, constitui-se em
excecao, apresentando algumas informacoes fragmentadas sobre os cinemas
suburbanos e seu publico.