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文章基本信息

  • 标题:Trailer semiosis from advertising to aesthetic experience/As semioses do trailer da publicidade a experiencia estetica.
  • 作者:da Silva, Alexandre Rocha ; Iuva, Patricia de Oliveira
  • 期刊名称:Revista Famecos - Midia, Cultura e Tecnologia
  • 印刷版ISSN:1415-0549
  • 出版年度:2013
  • 期号:May
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Editora da PUCRS
  • 关键词:Advertising;Monosaccharides;Sugars

Trailer semiosis from advertising to aesthetic experience/As semioses do trailer da publicidade a experiencia estetica.


da Silva, Alexandre Rocha ; Iuva, Patricia de Oliveira


Dos rastros ao arquivo

A palavra trailer, termo anglo-saxao, enquanto verbete agrega significados tais como "aquilo que arrasta" ou "aquilo que segue a pista". Essas agregacoes nos induziram a pensar no conceito de rastros trabalhado por Jacques Derrida (19302004). O rastro pode tanto remeter a algo do passado, do que ja foi, quanto apontar como uma flecha para o futuro de algo que pode vir a ser. Assim, encarado como um elemento do tempo de Cronos, "[...] o presente divino e o circulo inteiro, enquanto que o passado e o futuro sao dimensoes relativas a tal ou tal segmento que deixa o resto fora dele" (Deleuze, 1989, p. 153). Porem, se pensarmos o rastro no tempo de Aion (1), teremos o "mais pleno presente, presente que se espalha e que compreende o futuro e o passado, eis que surge um passado-futuro ilimitado [...]" (Deleuze, 1989, p. 153). Em outras palavras, "o movimento de significacao trabalha antes com multiplas temporalidades: um elemento presente, que nao esta sozinho mas conserva marca de um elemento passado e, moldando-se por essa marca, relaciona-se com o elemento futuro" (Marcondes Filho, 2004, p. 227).

Ou seja, encontram-se no trailer rastros de uma dada estetica e de formas de producao que apontam para um futuro, mas tambem, que nos remetem a um passado. E possivel dizer, ainda, que se identificam rastros de trailer em certas producoes audiovisuais, como por exemplo, em filmes que prometem outros filmes, em videoclipes que se constroem esteticamente a partir de marcas que remetem ao trailer, e assim por diante. Pois os elementos "trailerificos" se constituem a partir dos rastros de cada um dos outros elementos da cadeia audiovisual, organizandose em um jogo de remissoes, o qual opera uma tessitura, ou melhor, um texto. Dai que "nao existe, em toda parte, a nao ser diferencas e rastros de rastros" (Derrida, 2001, p. 32). Contemplar o trailer como um texto significa assumi-lo como um tecido cujos sentidos nao sao essencialistas, mas que se fazem em um jogo de integracao de fragmentos, que se complementam nas sinteses, nas remissivas, nos tracos e em suas redes intertextuais:

"[...] nenhum elemento pode funcionar como signo sem remeter a um outro elemento, o qual, ele proprio, nao esta siplesmente presente. Ess encadeamento faz com que cada 'elemento'--fonema ou grafema constitua-se a partir do rastro, que existe nele, dos outros elementos da cadeia ou sistema. Esse encadeamento, esse tecido, e o texto [...]."

(Derrida, 2001, p. 32)

O trailer como texto, por definicao, nao esta sozinho: conserva marcas de elementos passados (de um cinema passado), mas tambem se molda para um futuro. A forma textual desse futuro pode tanto ser o filme prometido pelo trailer quanto outra textualidade audiovisual que se encontra em devir no proprio trailer. Propomos observar aqui o trailer nao mais apenas como uma peca que divulga o filme, mas como uma maquina comunicante conectada a outras tantas, de diversas ordens textuais, cujo objetivo e, em primeiro lugar, estetico, na medida em que fundamentalmente divulga a si proprio.

Sendo assim, as analises nao recaem sobre as estruturas de conteudo ou de expressao tal como em uma analise filmica, mas sobre as semioses que formam os objetos dos quais falam. O mesmo discurso se distribui e aparece em diferentes trailers, seja atraves de seus enunciados ou atraves de suas imagens. E por essa razao que, metodologicamente, trabalhamos as categorias do visivel e do enunciavel, discutidas por Gilles Deleuze (2006) a luz de Michel Foucault. Com elas, observamos nos trailers formacoes discursivas relativas a certas praticas audiovisuais que transcendem o propriamente cinematografico.

A proposta teorico-metodologica ainda considera a formacao de um arquivo (Foucault, 1995), local em que o movimento de autonomizacao do trailer se explicita com maior clareza, uma vez que "o arquivo e, tambem, o que faz com que todas as coisas ditas nao se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa [...] mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relacoes multiplas" (Foucault, 1995, p. 149).

Assim, estamos pensando em uma formacao discursiva dos trailers de onde emergem enunciados especificos que, combinados no arquivo, dialogam estruturalmente com outras materialidades audiovisuais. Existe uma especificidade no interior do arquivo que caracteriza o trailer; no entanto, coexistem com esse modo de ser do trailer outros formatos, generos e modos de ser do audiovisual. Queremos dizer: porosidades de outros campos, tais como o cinema, o video, a publicidade, a internet, a televisao, que estabelecem relacoes de tensao com o trailer. Isto e, o projeto consiste em desconstruir (no sentido derridiano) a perspectiva identitaria do trailer como peca autonoma e, em um movimento de desterritorializacao, investiga-lo a partir de novas paisagens audiovisuais relativas a aspectos esteticos e produtivos.

A desconstrucao opera a montagem de um novo arquivo audiovisual de experiencias que escapam aos modelos centrais da publicidade, que habitualmente caracteriza a experiencia produtiva do trailer. Assim, a desconstrucao "E uma fase de inversao necessaria para subverter a hierarquia original, de tal modo que o primeiro componente passe a ser o segundo" (2) (Powell, 1997, p. 30). No interior deste arquivo, a publicidade aparece tal como um fantasma, e perde sua funcao hegemonica, abrindo espacos para "uma pratica que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e a manipulacao" (Foucault, 1995, p. 150). Os diferentes niveis que se formam no arquivo fazem aparecer as regras de uma pratica que permite aos enunciados subsistirem, "e o sistema geral da formacao e da transformacao dos enunciados" (Foucault, 1995, p. 150). Dai que, lembrando as consideracoes acerca dos rastros, reconhecemos ser possivel dizer que o arquivo composto nao e de forma alguma fechado e estatico, ou seja, ele esta ai para ser ampliado. Assim como os audiovisuais que o compoem congregam marcas que direcionam a formacao de um arquivo, esse ultimo deixa pistas para outros audiovisuais que podem vir a integra-lo. Pois as remissivas a outros elementos nao cessam: a cada nova relacao surgem outros questionamentos, outras discursividades, novas paisagens audiovisuais.

O visivel e o enunciavel

Nos termos das audiovisualidades, pode-se pensar as estratificacoes na ordem dos movimentos de territorializacao, desterritorializacao e reterritorializacao. Isto e, existem fluxos, intensidades, movimentos que, ao se sedimentarem, constituem os estratos, os quais, por sua vez, constroem a nocao de territorio. Os estratos articulam um conteudo e uma expressao, ou seja, tais estratos, de acordo com Deleuze (2006), sao feitos de coisas e palavras, de ver e falar, de visivel e de dizivel, de regioes de visibilidade e campos de legibilidade, de conteudos e expressoes. Deleuze apresenta dois aspectos essenciais com relacao aos estratos:

"Por um lado, cada estrato, cada formacao historica implica uma reparticao do visivel e do enunciavel que se faz sobre si mesma; por outro lado, de um estrato a outro varia a reparticao, porque a propria visibilidade varia em modo e os proprios enunciados mudam de regime."

(Deleuze, 2006, p. 58)

Assim, podemos afirmar que, no inicio do seculo XX, o cinema surgia como uma nova maneira de ver e fazer ver, ou melhor, de registrar as coisas do mundo. Ja, um pouco antes da metade do seculo, passou-se a ter o cinema como outra maneira de contar historias, diferentemente da literatura, do teatro. Para Deleuze (2006) ha ai uma evidencia, uma percepcao historica ou sensibilidade, tanto quanto um regime discursivo. "Maneira de dizer e forma de ver, discursividades e evidencias, cada estrato e feito de uma combinacao de duas e, de um estrato a outro, ha variacao de ambas e de sua combinacao" (Deleuze, 2006, p. 58). Hoje, temos outra determinacao de visiveis e enunciaveis: o audiovisual, sendo atualizado neste trabalho, pelo trailer, por exemplo.

O audiovisual entendido nesta perspectiva foucaultiana desenvolvida por Deleuze (2006) seria caracterizado por uma tensa relacao entre os regimes de enunciacao (enunciavel) e de visibilidade (visivel), os quais corresponderiam, respectivamente e para os propositos deste artigo, ao som e a luz. Cabe dizer, no entanto, que para Foucault, o enunciado tem preferencia, mas somente porque o visivel tem suas proprias leis e uma autonomia que o poe em relacao com o enunciado:

"As visibilidades nao se confundem com os elementos visuais ou mais geralmente sensiveis, qualidades, coisas, objetos, compostos de objetos [...] as visibilidades nao sao formas de objetos, nem mesmo formas que se revelariam ao contato com a luz e com a coisa, mas formas de luminosidade, criadas pela propria luz e que deixam as coisas e os objetos subsistirem apenas como relampagos."

(Deleuze, 2006, p. 62)

Se nos remetermos ao cinema, veremos que as consideracoes de Foucault quanto as visibilidades encontram certa correspondencia, quer dizer, a imagem no cinema e a propria luz, que cria suas formas e permite seus movimentos. A luz, inseparavelmente da maquina, cria visibilidades. A formacao historica assim engendrada faz reverberar os sintomas de uma maquina-audiovisual, que no caso do trailer, desdobra-se em dimensoes de um dado desejo maquinico que produz, agencia elementos.

Por outro lado, sobre os enunciados, Foucault afirma que a condicao mais geral dos mesmos nao esta na importancia de um sujeito, e sim, num "Diz-se, murmurio anonimo no qual posicoes sao apontadas para sujeitos possiveis: 'um grande zumbido incessante e desordenado do discurso'" (Deleuze, 2006, p. 64). O autor se opoe a tres maneiras de fazer comecar a linguagem: (1) pelas pessoas, ainda que nao sejam entidades fisicas; (2) pelo significante enquanto organizacao interna; e (3) por uma possibilidade fenomenologica, do tipo o "Mundo diz". O grande murmurio, para Foucault, e o ser-linguagem ou o 'ha' linguagem. Cada epoca tem a sua maneira de reunir a linguagem, em funcao de seus corpus (Deleuze, 2006).

Sendo os enunciados inseparaveis dos regimes, considera-se que o ser-linguagem da contemporaneidade e tambem da ordem de uma dada producao audiovisual, que se enuncia, que se dispersa conforme seu limiar. Uma das formas de enunciacao do audiovisual e o trailer, de modo que as condicoes desse ultimo tornam enunciaveis, diziveis ou legiveis suas promessas enunciadas: "o que se pode concluir e que cada formacao historica ve e faz ver tudo o que pode, em funcao de suas condicoes de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em funcao de suas condicoes de enunciado" (Deleuze, 2006, p. 68).

Sobre as visibilidades, diz-se que elas nao sao definidas pela visao, uma vez que se trata de complexos de acoes e paixoes, de acoes e reacoes, ou seja, ha uma visibilidade virtual, que domina todas as experiencias perceptivas. Deleuze (2006) mostra que entre a luz e a linguagem, entre as visibilidades determinaveis e os enunciados determinantes ha uma diferenca de natureza: "embora eles se insiram um no outro e nao parem de se interpenetrar" entre os dois nao ha isomorfismo. E o que ele chama de uma "nao relacao". Em suma, existem procedimentos enunciativos e processos maquinicos.

"Ha uma disjuncao entre falar e ver, entre o visivel e o enunciavel: 'o que se ve nao se aloja mais no que se diz', e inversamente. A conjuncao e impossivel por duas razoes: o enunciado tem seu proprio objeto correlativo, que nao e uma proposicao a designar um estado de coisas ou um objeto visivel, como desejaria a logica; mas o visivel nao e tampouco um sentido mudo, um significado de forca que se atualizaria na linguagem, como desejaria a fenomenologia. O arquivo, o audiovisual e disjuntivo. Por isso nao surpreende que os exemplos mais completos de disjuncao ver-falar se encontram no cinema."

(Deleuze, 2006, p. 73)

Percebemos nessa problematica disjuncao/conjuncao um lugar do trailer. As reflexoes que dizem do trailer enquanto um audiovisual que busca justapor as imagens de acordo com os dialogos e textos desconsideram o fato de que entre os regimes de visibilidade e de enunciacao nao ha conformidade necessaria. Dai que nos trailers nao ha encadeamento indo do visivel ao enunciado ou do enunciado ao visivel. Por exemplo: a voz over (3) nao opera conjuncoes entre som e imagem, mas, ao contrario, o que se fala e o que se ve nao sao a mesma coisa. No entanto, e justamente nestas rupturas, e neste movimento que "o visivel e o enunciavel formam um estrato, mas sempre atravessado, constituido por uma fissura central" (Deleuze, 2006, p. 74).

"De um lado, 'por mais que se diga o que se ve, o que se ve nao se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faca ver o que se esta dizendo por imagens, metaforas, comparacoes, o lugar onde estas resplandecem nao e aquele que os olhos descortinam, mas o que as sucessoes da sintaxe definem'; de outro lado, 'e preciso admitir, entre a figura e o texto, toda uma serie de entrecruzamentos, ou antes ataques lancados de um ao outro, flechas dirigidas contra o alvo adversario, operacoes de solapamento e de destruicao, golpes de lanca e os ferimentos, uma batalha [...]', 'quedas de imagens em meio as palavras, relampagos verbais que rasgam os desenhos', 'incisoes do discurso na forma das coisas', e inversamente."

(Deleuze, 2006, p. 75)

Sendo assim, ha que se considerar a heterogeneidade das duas formas: de um lado os enunciados do trailer, e de outro as visibilidades do mesmo. As relacoes de tensao entre o som e a luz, entre a promessa enunciavel e o maquinico visivel, respectivamente. Temos uma composicao estratificada: o visivel e o enunciavel, "a receptividade da luz e a espontaneidade da linguagem, operando alem das duas formas ou aquem destas" (Deleuze, 2006, p. 77).

Do signo a semiose

Entremeada as reflexoes que visam desconstruir uma dada semiologia do cinema, jaz uma ideia que pensamos ser de primordial importancia para a compreensao do trailer e suas audiovisualidades: a semiose, que

"Nessa perspectiva, e um processo dinamico no qual o signo, influenciado pelo seu objeto precedente, desenvolve o efeito do signo num interpretante subsequente. O signo nao serve apenas como um mero instrumento de pensamento, mas desenvolve sua propria dinamica que e, de certo modo, independente da mente de um individuo. Alem disso, semiose nao se restringe a producao e interpretacao de signos nos seres humanos; tampouco existe dualismo entre mente e materia. Trata-se de uma teoria sobre a continuidade entre ambos."

(Noth, 2001, p. 54)

Essa nocao de semiose esta bastante relacionada ao que conhecemos por um continuum virtual. Para Peirce (apud Noth, 2003), cada pensamento tem de dirigir-se a outro, dai que o processo continuo, a que se chama semiose, so pode ser interrompido, mas nunca realmente finalizado. Quer dizer, a ideia de um ad infinitum esta presente: no entanto, podemos associar o processo ilimitado da semiose com um continuum de possibilidades. O plano de imanencia do virtual, os agenciamentos e as conexoes rizomaticas, atraves da criacao de territorios, desterritorializacoes e reterritorializacoes operam no processo continuo de semioses.

Neste artigo, trabalhamos com duas semioses operadas pelo trailer: uma semiose da falta (quando o mesmo e pensando em termos publicitarios enquanto um objeto que promete outro: o filme), e outra que agencia a presenca (pensando o trailer enquanto expressao do desejo como positividade, ao estabelecer relacoes com outros audiovisuais). Neste item gostariamos de acrescentar algumas reflexoes sobre falta e desejo.

As intensidades, os fluxos, as linhas de fuga que se agitam no interior do territorio trailer-cinematografico sao agenciadas por uma maquina-trailer que deseja outros corpos. Dai que o desejo se coloca, aqui, nao como uma associacao a falta, mas como o que viabiliza as passagens entre o virtual das intensidades e o atual das formas.

O problema do desejo associado a lei da falta e o pressuposto de que "ja que tenho um desejo, ha em algum lugar, mas nao neste mundo, esse tal objeto que e a chave do meu desejo" (Marcondes Filho, 2004, p. 122). Instaura-se, assim, o par possivel/impossivel, pois, atormentado pela falta, o individuo supoe uma imagem ideal, transcendente, inacessivel, e se move, entao, pelo desejo. No entanto, o desejo, de acordo com Deleuze e Guattari (apud Marcondes Filho, 2004), nao carece de nada, o desejo, ao contrario, e um conjunto de sinteses (conectivas, disjuntivas, conjuntivas) que fabricam os objetos parciais, os fluxos, os corpos e funcionam como unidades de producao.

A semiose da falta agrega as nocoes de insuficiencia do ser e de culpabilidade, uma vez que estamos sempre atras de algo mais, este 'algo' a que nao se alcanca, pelo qual nos culpamos por desejar e pelo qual continuamos a existir. E a operacao de um regime capitalistico que se apropriou dos discursos de liberdade e de criacao para nos aprisionar nesta 'busca' (jornada) infindavel de uma promessa que nunca sera cumprida, de modo que toda a potencialidade, todo o excesso do desejo fica escondido. Mas continua ali, insiste e subsiste a tudo,

"Ao desejo nao falta nada, nao falta seu objeto; desejo e objeto sao uma e unica coisa. E antes o sujeito que falta ao desejo. O desejo e maquina, o objeto do desejo e maquina ligada, o produto e extraido do produzir, que vai dar um resto ao sujeito nomade e vagabundo: o ser objetivo do desejo e o Real em si mesmo."

(Marcondes Filho, 2004, p. 122)

Sendo assim, observamos que, hoje, existe uma producao audiovisual cujas caracteristicas referem-se, de modo homogeneo, a uma logica globalizada. Isto e, produzem-se modelos-padrao que ditam as regras do mercado. Podemos dizer que a producao do trailer esta delineada por aspectos publicitarios do mercado cinematografico (como o desejo construido no trailer que promete o filme); no entanto, dentro desta mesma organizacao ha movimentos de desestabilizacao, provenientes do desejo por outras sinteses, outros corpos, de modo que podemos vislumbrar outros perfis desses trailers. Ou seja, nao importa para onde o trailer e enviado, independentemente de paises, culturas, a producao trailerifica esta infectada por certa homogeneidade, mas esta homogeneidade coexiste com linhas de ruptura, as quais se movimentam no interior do corpo-trailer, tal como atomos; e encontram nos agenciamentos maquinicos vias de acesso para outras atualizacoes (o vir a ser de um trailer que esteticamente se realiza para alem dos parametros da publicidade).

As tecnologias audiovisuais, por exemplo, representam uma dessas vias que pode mudar um dado regime identitario do trailer cinematografico, pois a viabilizacao das copias digitais dos trailers implica na possibilidade de mudancas na producao dos mesmos de uma semana para outra. Assim, se determinado formato final for ao ar e nao estiver agradando, ele podera ser exibido na outra semana com outra configuracao. Alem disso, o nivel de valorizacao estetica cultural, de acordo com o pais em que eles forem distribuidos, sera maior, ou seja, cada pais podera ter um trailer diferente. Isso ja acontece no mercado, porem nao com tanta frequencia, uma vez que as copias em pelicula custam muito mais do que copias digitais.

Para alem das questoes tecnologicas contemporaneas, podemos pensar os trailers referentes a outros periodos/momentos da producao cinematografica, tais como os trailers dos filmes Cidadao Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941, EUA), Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960, EUA) e Laranja mecanica (A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971, EUA). Uma vez considerados os elementos signicos de tais produtos enquanto rastros que apontam para possiveis relacoes maquinicas do desejo, abre-se espaco para os regimes de visibilidade e enunciabilidade referentes a configuracoes esteticas que desestabilizam um dado cenario audiovisual produtivo do trailer, ja estruturado em torno de modelos e de padroes. Isto e, os regimes identitarios cedem aos regimes e semioses imprevisiveis do desejo, que nao cessa suas producoes, conexoes, disjuncoes.

Cidadao Kane, Psicose e Laranja Mecanica: da promessa publicitaria ao agenciamento estetico

Nesta secao do artigo, problematizamos aspectos analiticos do trailer, buscando elucidar os mecanismos de producao do trailer e seus procedimentos esteticos, os quais se situam em uma zona opaca, que se ilumina, se faz ver quando o olhar sobre esse audiovisual ultrapassa o teor conteudistico das imagens. Isto e, quando se compreende que para alem de seus discursos publicitarios existem "contrastes dialeticos" (Benjamin, 2006, p. 501) que sinalizam a potencialidade de o trailer se tornar outro em relacao a si mesmo.

Operacionalmente, partimos para a identificacao das imagens mais expressivas do trailer enquanto visibilidades carregadas de enunciabilidades outras que aquelas que ela da a ver. Trata-se de uma forma de trabalho de realizadores audiovisuais, como Walter Murch, que conceitua tal pratica como "momentos decisivos":

"Ao escolher um quadro representativo, o que se esta procurando e uma imagem que sintetize a essencia dos milhares de outros quadros que formam a tomada em questao. E o que Cartier-Bresson--referindo-se a fotografia--chamou de 'momento decisivo'."

(Murch, 2004, p. 44)

Aqui, o olhar, obviamente, nao recai sobre a fotografia e iluminacao dos frames; porem, a relevancia do seu conceito diz respeito ao aspecto representativo da imagem, isto e, tal frame visibiliza significancias para alem das descricoes conteudisticas. O movimento e sempre direcionado para a desconstrucao, de maneira a passar pelas consideracoes ja habituais do trailer. Assim, propomos: identificar qual a promessa do trailer e seu carater publicitario, buscar o que ha de especifico em cada trailer e agrupar tendencias (se existirem) em um arquivo e, por ultimo entao, buscar as possibilidades de concepcoes sobre o audiovisual: "o que este trailer x me diz sobre uma dada producao audiovisual? De que forma ele contribui na reflexao conceitual e pratica do audiovisual?".

Cidadao Kane

A imagem que abre o trailer de Cidadao Kane e a marca da RKO Radio Pictures, e, logo em seguida, corta-se para o estudio de som, onde um feixe de luz direcional ilumina um microfone. A partir dai a voz de Orson Welles se poe a narrar, em nome dos estudios Mercury. O diretor e narrador se identifica no comeco da fala e logo explicita a intencao do presente trailer: "O que veremos a seguir serve para publicizar nosso primeiro longa-metragem, o nome do filme e Cidadao Kane, e esperamos poder chama-lo de uma possivel atracao" (4).

Este comeco explicita uma dada funcao publicitaria, fortemente ressaltada pelas proprias palavras do diretor. No entanto, o que vemos, posteriormente a isso, foge as regras e estrategias utilizadas nos trailers, pois o que e dado ao conhecimento do espectador, diferentemente de outros trailers que buscam contar a historia do filme, mostrando cenas do mesmo, e o backstage da producao e os artistas que fazem parte da equipe. Orson Welles opta por fazer uma apresentacao de seu elenco de atores e atrizes, para depois, entao, narrar sobre o que trata seu filme. Ele ocupa a posicao de um divulgador dos astros de seu filme (Star system), bem como um propagador das celebridades do estudio responsavel pela producao, uma vez que esses sao membros integrantes ("propriedade") do proprio Mercury Studio (Studio system). O objetivo aqui nao e apenas divulgar um filme, mas uma equipe, um grupo de pessoas que faz o filme acontecer.

Dai que a promessa do trailer recai de forma central nao sobre questoes de genero ou de estetica, mas sobre a figura do personagem-titulo, nao apenas pelo discurso dos personagens, mas tambem, e principalmente, pelo fato de que ao final do trailer Orson Welles, cuja imagem nao nos e mostrada, revela ao espectador que ele mesmo interpreta o papel de Kane.

A publicidade paira sobre a atmosfera do trailer de Cidadao Kane tal como um fantasma, pois ainda que Welles realize um trailer distinto e inovador, ha que se considerar que tal realizacao funciona como uma estrategia persuasiva, a fim de que o diretor conseguisse vender e fazer sucesso com seu primeiro filme. Ora, em uma epoca em que as disputas entre os grandes estudios comecavam a se delinear cada vez mais fortes, os trailers instigantes e 'diferentes' constituiam boas armas do negocio cinematografico. Consideramos, evidentemente, que o apelo comercial esteja rondando o trailer de Cidadao Kane. Mas, para alem das fortes marcas da publicidade e da inovacao, tambem identificamos neste trailer uma discussao mais profunda que se refere as dimensoes sonoras e visuais da producao cinematografica. Tal aspecto pode ser identificado a partir de elementos especificos que o trailer de Cidadao Kane contem. Podemos dizer que, mais do que saber sobre o filme, o que importa, e conhecer quem faz o filme, quem esta por detras das 'mascaras dos personagens'. Com relacao a isso, o regime operado por Welles no trailer e o de enunciar o ator ou atriz que estaremos visualizando na tela. Porem, vale mencionar que o que vemos sao cenas mostrando esses artistas nos seus momentos de ensaio, de preparo, de intervalo; enfim, o espectador e conduzido ao backstage, e inserido no universo da producao cinematografica, o que, obviamente, da a sequencia um tom do que hoje conhecemos por making of.

Todas as cenas que aparecem nao estao relacionadas ao filme ou a historia do filme. Mas, entao, o que essas imagens produzem? Se lembrarmos das consideracoes de Derrida acerca dos rastros, podemos entender que tais imagens presentes nao estao sozinhas, nem mesmo encerram em si suas significacoes. Ao contrario, operam marcas remissivas a outro "tipo" de trailer. Um trailer que se faz ao mostrar o backstage, ao revelar o que acontece por detras das cameras, ao enunciar e tornar visivel o making of das producoes. Isso nos leva a considerar um jogo de devires entre os making of e os trailers. Nao se pode mais falar em definicoes universais, apenas no vir a ser dos objetos.

O que tambem podemos observar no trailer e a estrategia de Orson Welles em se colocar como narrador e, para isso, utilizar a imagem de um microfone. O diretor que ganhou notoriedade com suas locucoes no radio ocupa esse lugar novamente, e acaba possibilitando, tambem, uma reflexao sobre o som e a imagem no cinema. E relevante lembrar que o advento sonoro no cinema data de 1930, e por mais que tenham se passado dez anos quando do lancamento de Cidadao Kane, tal problematica ainda se fazia presente, como se faz ate hoje. Ha quem diga que cinema e imagem em movimento, e que o sonoro nao desempenha papel determinante, que esse e apenas um preenchimento da obra. Ha tambem aqueles que na epoca, tal como Chaplin, detestaram a possibilidade de falas no cinema, e ha aqueles que por causa disso perderam seus empregos como atores ou atrizes, ja que seus rostos ficavam otimos na tela, mas suas vozes nao.

Ao se esconder atras da voz e da imagem do microfone, Orson Welles faz despontar uma relacao tensa entre som e imagem. Tensa, pois se valoriza extremamente, no seu trailer, o regime sonoro, e atraves de seus comandos verbais e audiveis (palavras de ordem) que a imagem se da a ver. Ou melhor, a palavra, o som, tem voz de comando no cinema; ela tambem, tal qual a imagem, "ilumina", ja que sao as falas e os dizeres os responsaveis por "iluminarem" um dado Cidadao Kane. De uma maneira geral, o trailer de Cidadao Kane pode ser dividido nessas tres grandes partes (inicio, meio e final do trailer) que sao intercaladas pelas imagens do elenco no backstage e pelas cenas dos personagens falando sobre Kane. O curioso e que essas imagens em que os personagens aparecem nao fazem parte do filme, sao cenas que foram cortadas da edicao final do filme. Tudo o que o espectador ve neste trailer nao esta no filme. Acreditamos que essa falta de referencialidade ao filme e a maior especificidade do trailer de Welles, aspecto que vem ao encontro das ideias de desreferenciacao do trailer em relacao ao filme e da sua potencialidade de gerar textos diferentes daqueles a que estamos habituados.

Psicose

Assim como o trailer de Cidadao Kane, o trailer de Psicose agrega o carater inovador ao apresentar o diretor Alfred Hitchcock como o condutor do passeio pela locacao de seu novo filme. Aqui a marca da autoria parece ser mais forte pelo fato de que podemos ver Hitchcock. Este trailer faz dos locais e dos cenarios personagens do filme, e a forma como eles sao descritos busca mostra-los nao como algo construido para a obra, mas como algo pertencente a realidade. Isso fica bastante claro quando o diretor diz "Eu acho que nos podemos entrar porque a casa esta a venda. Oh, mas nao sei quem poderia compra-la agora" (5).

O trailer de Psicose e pura promessa, pois a todo o momento o relato e suspenso por comentarios do tipo "e dificil de descrever", "so voce vendo" ou entao por cortes da fala interrompida por novos direcionamentos do espectador na locacao, do tipo "vamos ate la embaixo", "vamos ate o quarto". Todos esses movimentos contribuem para que o publico fique imaginando a cena e como ela e filmada, isto e, a brincadeira de comecar a contar uma historia e subitamente interrompe-la, certamente, instiga e captura a atencao da audiencia. Porem, retomando a ideia da figura de Hitchcock como investimento de valor e credibilidade, tambem vemos a presenca do diretor como a evidencia de uma promessa personificada, que usa das omissoes descritivas das cenas para desviar do fato de que aqui o autor e a promessa e o fantasma, e nao o genero do filme ou o suspense das cenas. O aspecto publicitario, neste caso, e o proprio fantasma Hitchcock, que perambula pelo cenario de seu mais novo filme e, ainda por cima, conversa com o espectador.

Vale referir ainda que no final do trailer o espectador e surpreendido pelo corte brusco de Hitchcock para a cena do chuveiro em que o grito da vitima e a trilha sonora bastante forte criam a atmosfera do horror. Subsequente a isso, aparecem as inscricoes graficas direcionadas ao publico: "O filme que voce DEVE assistir desde o comeco ... ou nao ... porque ninguem ficara sentado depois de comecar PSICOSE (6)" (sic).

O que se percebe nesse trailer e o cuidado e a intencionalidade da narrativa. Existe o objetivo de contar algo, e o relevante nisso tudo e que, por mais que Hitchcock saiba que se trata de um filme, de uma historia ficcional, ele busca contar os acontecimentos inserindo-os em uma dada realidade (1) extra-diegetica ou (2) diegetica. Se observarmos o tempo do verbo utilizado na narracao, veremos que se trata de um tempo passado: ou (1) os eventos realmente aconteceram (sao reais, estao para fora do filme); ou (2) sao eventos que fazem parte de um filme, de um filme que ja foi feito, quer dizer, o trailer localiza-se num tempo pos-filme, desse modo os acontecimentos seriam diegeticos. De uma maneira ou de outra, o que parece despontar neste trailer e a relacao de Hitchcock com o cinema, com a imagem: uma imagem sem tempo, uma imagem que e conceitual. Sua preocupacao jaz sobre os enquadramentos que valorizam a cena filmica e investem valores sobre ela. Ele complementa tal perspectiva ao recobrir sua narracao com adjetivos e tentativa de descricoes minuciosas, mas que sao suspensas com o intuito de instigar a curiosidade do espectador.

O relato verbal, que e enunciado por Hitchcock, nao e inteiramente dado a conhecer, pois as enunciacoes descritivas dos assassinatos nao sao visiveis. O que acontece no trailer e o atento acompanhamento da camera, que se preocupa em tornar visiveis os ambientes em que o diretor se encontra. Dai que temos planos abertos para inserir o espectador na atmosfera do cenario, planos fechados no rosto do diretor para legitimar sua posicao de contador e orquestrador da historia, e planos medios, de modo a enquadrar a movimentacao de Hitchcock pelo espaco. Devemos ressaltar tambem, o tom bem-humorado da narrativa, que combina uma trilha sonora dividida entre os momentos tensos e ironicos das falas.

Com Hitchcock, temos um trailer em que nenhuma cena corresponde ao filme original. Podemos identificar aqui uma peca audiovisual bastante independente do filme, uma vez que a narrativa, ainda que faca mencao a algo ja ocorrido (no caso, o proprio filme), pode ser, suficientemente, fechada em si mesma. E como se estivessemos diante de um trailer-curta-metragem ou ate mesmo um trailer-making of, isto e, as linhas de fuga que coexistem no interior do trailer-publicidade de Psicose movimentam-se no sentido de agenciarem e reivindicarem outros lugares de ocupacao para o trailer: "as multiplicidades definem-se pelo externo, pela linha de fuga, segundo a qual elas mudam de natureza e se conectam a outras multilplicidades" (Marcondes Filho, 2004, p. 150). Em outras palavras, teriamos a mobilidade das fronteiras da publicidade e do cinema configurando experimentacoes e transformacoes que conduzem a formacao de outros territorios, tais como o trailer-curta-metragem e o trailer-making of, uma vez que "as linhas de fuga, que atravessam as territorialidades, dao provas da presenca nelas do imperceptivel, do inencontravel (da desterritorializacao) e de sua intervencao efetiva (reterritorializacao)" (Marcondes Filho, 2004, p. 151). Trailers que assumem o papel de versoes curtas do longa-metragem, ou trailers em que as marcas de uma narrativa making of se sobressaltam, sao exemplos de elementos que escapam aos modelos preconcebidos de uma dada producao audiovisual, mas que obviamente irao encontrar reorganizacoes que estratificam, novamente, essas producoes.

No trailer de Psicose "falar e ver, ou melhor, os enunciados e as visibilidades, sao elementos puros, condicoes a priori sob as quais todas as ideias se formulam num momento e os comportamentos se manifestam" (Deleuze, 2006, p. 69). Assim sendo, Hitchcock se faz ver, mas nessa visibilidade existe tambem um enunciado, pois como diz Deleuze (2006, p. 69), que tudo seja sempre dito, em cada epoca, talvez seja esse o maior principio historico de Foucault: atras da cortina nao ha nada para se ver, mas seria ainda mais importante, a cada vez, descrever a cortina ou o pedestal, pois nada ha atras ou embaixo. Ou seja, ha que se olhar para a complexidade da construcao audiovisual trailerifica procurando nao o que se esconde, pois nao ha nada ali, e sim, procurando observar o modo como as coisas se fazem ver num determinado tempo. Dai que os enunciados estao do lado de uma formacao historica, mas neles subsistem formas e funcoes relacionadas a outros discursos produtivos e esteticos do trailer, que permitem uma reescrita dos conceitos e das regras que lhes dao materialidade.

Laranja Mecanica

Ao som da Abertura de Guilherme Tell de Rossini, em ritmo mais acelerado, Kubrick faz do trailer de Laranja mecanica (7) um espetaculo visual que desorienta qualquer espectador, ao mesmo tempo em que o convida para uma viagem ao desconhecido, sem revelar nada da trama do filme. Mistura cenas aleatoriamente, intercalando-as com inscricoes de palavras na tela. Sao essas palavras que, de certa forma, constroem uma possivel promessa da obra, ou seja, temos adjetivos e substantivos qualificando o filme: "mordaz, engracado, satirico, excitante, bizarro, politico, emocionante, assustador, metaforico, comico, sarcastico, Beethoven" (8).

Tais palavras sao referencias para a obra, que possibilitam dizer que sobre elas recai o potencial de vender uma ideia do filme, ou melhor, uma ideia dos temas que circundam o filme, pois o carater nao narrativo do trailer impossibilita a construcao ordenada de qualquer tipo de trama. Dai que o aspecto publicitario deste trailer se encontra no fato de que nada da historia do filme e revelado, ou seja, temos uma valorizacao e promessa do plano expressivo em detrimento do narrativo. E nesta construcao que o fantasma publicitario se manifesta, com promessas que nao sao objetivas, cujo funcionamento se instaura no nivel da experiencia estetica provocada no espectador, que podera ou nao engajar-se na proposta. De qualquer forma, o espirito consumidor e despertado no plano de expectativas pelo que podera ver, o que se instaura enquanto uma marca da estrategia publicitaria.

Sustentado por uma montagem ritmica, que acompanha a aceleracao da musica de Rossini, bem como por uma alternancia de cenas e palavras, tal como a clipagem, o trailer de Kubrick encontra sua especificidade na experimentacao de uma linguagem bastante proxima do que hoje conhecemos por "videoclipe". "Com efeito, nao e raro verem-se montagens destinadas a produzir um conceito [...] associado a um produto, mais do que a narracao de uma historia demonstrativa" (Joly, 2002, p. 223). Isto e, o que o trailer de Laranja mecanica se propoe e jogar com os "conceitos" propostos pelas palavras que aparecem na tela entre as cenas.

De forma emocionante, mas tambem assustadora, politica e comica, temos um trailer cuja estetica rompe com a logica narrativa da epoca, bem como com a logica expressiva, ja que as sobreposicoes de imagens sao experimentalmente realizadas. Tais sobreposicoes serao fortemente desenvolvidas a partir da decada de 80 com as producoes videograficas. Ou seja, quando Kubrick gritava no set "Luz, video, acao", e como se ele estivesse antevendo as transformacoes esteticas. Dai que os movimentos de significacao em suas obras contenham elementos cujos rastros nos remetem a um dado futuro.

No caso do trailer de Laranja mecanica, existem imagens que conservam marcas de uma producao audiovisual passada bem como futura: o analogico com inscricoes e modificacoes que remetem as tecnicas digitais contemporaneas. O conhecimento da tecnica, e tambem da linguagem, passa a ser exigido do espectador. Isso passa a ser intensificado no final do seculo XX com a imagem analogicodigital.

No caso do trailer de Laranja mecanica, trata-se de uma modalidade de discurso audiovisual energetico, "neste caso, a tendencia e que a ideia de producao de sentidos propriamente dita seja substituida pela producao de afetos" (Bamba, 2005, p. 321). O enunciavel e tambem visivel, e sua importancia se da em termos de direcionamento do olhar sobre a propria obra do trailer, ou seja, e como se as palavras fossem referenciais a ambos, ao filme e ao trailer, pois os conceitos de "mordaz, engracado, satirico, excitante, bizarro, politico, emocionante, assustador, metaforico, comico, sarcastico, Beethoven" estao presentes na propria estetica do trailer.

A aproximacao com a linguagem videocliptica se da pela fragmentacao da narrativa e do significado, "podendo acarretar em adiamentos de sentido ou um "soterramento" deste sentido (o sentido encontra-se "submerso", no meio das tramas das imagens "recortadas")" (Soares, 2004, p. 15). Cabe ressaltar que a relacao com a musica tambem e um elemento chave no trailer de Laranja mecanica; mais um motivo que nos leva a pensa-lo paralelamente ao videoclipe, uma vez que neste a musica e um constituinte responsavel pelo ritmo da montagem: "se a cancao apresenta-se mais "rapida", por exemplo, atraves de arranjos eletronicos e batidas sincopadas, ha uma tendencia que o videoclipe tambem se referencie com uma edicao mais rapida" (Soares, 2004, p. 31). E e justamente isso que acontece nesse trailer: a relacao entre a musica e a imagem se efetiva.

As cenas que aparecem alternadamente fazem parte do filme; no entanto, a alternancia acelerada, no intuito de acompanhar a musica, gera bastante desconforto e confusao no espectador, de modo a nao comprometer a historia. Kubrick proporciona inovacoes na linguagem trailerifica, as quais estao mais proximas de obras de valor estetico do que comercial, no caso de Laranja mecanica. Alem disso, percebe-se que tal como os trailers de Cidadao Kane e de Psicose, o trailer de Laranja mecanica apoiase no fator diretor, ou seja, ressalta-se o fato de que o filme e de Stanley Kubrick, pois isso confere legitimidade e credibilidade a producao. Tanto na abertura do trailer como no encerramento, aparece na tela "Stanley Kubrick's Clockwork Orange", sob as variacoes de fundo colorido, que sao quase imperceptiveis devido a rapidez com que surgem na tela.

As producoes atuais incorporam muitos aspectos da estetica videocliptica: no entanto o mais comum e encontrarmos uma composicao trailerifica que conjuga momentos de objetividade narrativa com momentos de espetaculo audiovisual. Geralmente, em uma primeira parte do trailer existe uma preocupacao com o fornecimento de informacoes atraves de uma construcao discursiva em que se salientam aspectos concernentes ao genero do filme, ao diretor, ao elenco e a trama, e, em um segundo momento, opta-se por uma montagem que justapoe cenas, aleatoriamente, combinadas a uma determinada musica. Em alguns casos esses momentos nao ocorrem separadamente, mas de forma concomitante, isto e, a trilha sonora dita o ritmo da montagem das imagens, dos dialogos, das insercoes graficas que acontecem ao longo de todo o trailer, tal como uma composicao.

Por vezes essa composicao sofre rupturas, diferenciacoes as quais merecem uma atencao redobrada, pois e diante desses movimentos, aparentemente estranhos, que conseguimos identificar as potencias produtivas e esteticas que coexistem dentro das padronizacoes e dos modelos. E o caso de trailers de Laranja mecanica, Cidadao Kane, Psicose, os quais, ainda que assombrados pelos fantasmas da publicidade, instauram relacoes para alem do filme, evidenciando preocupacoes tambem de ordem estetica tanto quanto o filme que anunciam, porem a partir de procedimentos semioticos diversos.

O arquivo trailerifico: Welles, Hitchcock e Kubrick

A composicao de um arquivo constitui, neste artigo, uma pratica desconstrutiva, ja que, em primeiro lugar, trabalhamos para entender uma dada logica de composicao do trailer, para observar e capturar elementos que escapam a essa logica e que configuram outra ordem de construcao, minoritaria, um cinema menos, em lingua menor (9).

No que diz respeito a Cidadao Kane, Psicose e Laranja mecanica, evidenciam-se neles certas regularidades especificas, certas tendencias narrativas, produtivas e esteticas.

No arquivo que montamos com os trailers desses filmes, o traco mais importante esta vinculado a um fazer autoral do trailer e nao apenas do filme. Haveria um trailer de autor? Welles, Hitchcock e Kubrick produzem pecas trailerificas autorais, e cada uma delas revela suas concepcoes sobre o audiovisual.

Em Cidadao Kane, Orson Welles tensiona a relacao entre o som e a luz no cinema, uma vez que o fio narrativo condutor de todo trailer diz respeito a voz do diretor, que em momento algum e iluminada pela imagem. Quer dizer, o som e o que comanda a imagem, ja que essas apenas aparecem quando Welles "ordena" que elas aparecam. Alem disso, o fato de nao utilizar cenas do filme e de visibilizar o backstage da producao instaura um movimento que pensa o trailer como uma peca com certa autonomia, que funciona sem precisar recorrer aos pedacos do filme.

No caso de Psicose, Hitchcock tambem nao utiliza cenas do filme e reforca a autoralidade, tornando-se visivel e presente durante o trailer. Produz uma reflexao sobre a dimensao temporal da imagem, pois o tempo do trailer, que via de regra e anterior ao filme, neste caso situa-se no pos-filme. Isso fica evidente na sua fala, ao descrever aquilo que ja aconteceu no cenario--o proprio filme. Hitchcock, ao fazer isso, de certa forma, tensiona a preocupacao do cinema de localizar suas historias em um espaco-tempo determinados, e propoe uma operacao com imagens sem tempo, imagens que sao conceituais.

Ja em Laranja mecanica, Kubrick explicita suas criticas sobre as producoes cinematograficas industrialmente organizadas. Por isso busca no ritmo acelerado e no acompanhamento da trilha sonora o desenvolvimento de uma linguagem desarmonica, ironica e fragmentada, passivel de comparacao com o videoclipe, cujos elementos apontam outros rumos para a producao audiovisual.

De uma maneira geral, as experiencias de Cidadao Kane, Psicose e Laranja mecanica podem ser consideradas "trailers de autor", ou melhor, de diretores que se colocaram imersos no universo de uma dada producao, e que vislumbraram nos trailers um novo espaco--independente do filme--, de expressao politica e conceitual sobre a realizacao cinematografica. A formacao de um arquivo audiovisual permite, portanto, o reconhecimento de modos de expressao minoritarios do trailer e a criacao de acontecimentos audiovisuais 'menores' (na perspectiva deleuzeana). As relacoes entre os seus componentes evidenciam praticas e concepcoes de autoria, originalidade, producao e circulacao do audiovisual. Os trailers analisados sao obras com abordagens especificas (visuais, narrativas e tematicas), extrapolam a funcao publicitaria, e instauram uma ordem discursiva que movimenta as experiencias autonomas da producao trailerifica. Dai que o arquivo "e o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; e o sistema de seu funcionamento" (Foucault, 1995, p. 149).

A formacao de um arquivo audiovisual permite, portanto, o reconhecimento de modos de expressao minoritarios do trailer e a criacao de acontecimentos audiovisuais inusitados, por vezes. O que se reforca, portanto, e que o trailer nao esta relacionado apenas com o cinema ou com a publicidade, mas, para alem deles, conecta-se com outras maquinas audiovisuais agenciando novas paisagens. Sendo assim, descrevendo os componentes do arquivo, constata-se que a maquina trailer funciona e produz reflexoes acerca de si mesmo.

Enunciados recorrentes em diferentes trailers integram o arquivo, de modo que os mesmos se poem em relacao com outros enunciados e outras visibilidades, o que produz as multiplicidades do ser, ou seja, a cada relacao o ser-trailer pode vir a ser outro. Trata-se de observacoes em dispersao que, agregadas no arquivo, permitem perceber um movimento de autoria trailerifica que se constroi nas relacoes com outros corpos audiovisuais.

O arquivo, trabalhado nessa perspectiva, enquanto um lugar em que se agrupam tendencias esteticas visiveis e enunciaveis, propoe uma postura metodologica capaz de dar a ver dimensoes inusitadas do trailer, tantas vezes pensado como mera peca mercadologica.

REFERENCIAS

BAMBA, Mohamed. Proposta para uma abordagem critica do trailer. In: CATANI, Afranio Mendes; GARCIA, Wilson; FABRIS, Mariarosalia (Org.). Estudos Socine de Cinema: ano VI. Sao Paulo: Nojosa Edicoes, 2005. pp. 317-324. Disponivel em: <http://www.socine.org.br/livro/VI_Estudos_Socine.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2013.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

DELEUZE, Gilles. Kafka, por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

--. Logica do sentido. Sao Paulo: Perspectiva, 1989.

--. Foucault. Sao Paulo: Brasiliense, 2006.

DERRIDA, Jacques. Posicoes. Belo Horizonte: Autentica, 2001.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

JOLY, Martine. A imagem e a sua interpretacao. Lisboa: Edicoes 70, 2002.

MARCONDES FILHO, Ciro. O escavador de silencios. Sao Paulo: Paulus, 2004.

MURCH, Walter. Num piscar de olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

NOTH, Winfried. Maquinas semioticas. Revista Galaxia, Sao Paulo, v. 1, n. 1, pp. 51-73, 2001.

--. Panorama da semiotica de Platao a Peirce. Sao Paulo: Annablume, 2003.

PELBART, Peter P. O tempo nao reconciliado. Sao Paulo: Perspectiva, 2004.

POWELL, Jim. Derrida para principiantes. Buenos Aires: Era Naciente SRL, 1997.

SOARES, Thiago. Videoclipe: o elogio da desarmonia. Recife: Autor, 2004.

NOTAS

(1) De acordo com Pelbart (2004, pp. 67-68), o tempo de Aion e o tempo incorporal, da co-presenca, nao linear.

(2) Traducao do revisor. "Es un estadio de inversion necesario para subvertir la jerarquia original de modo tal que el primer componente pase a ser al segundo".

(3) A voz over e aquela cuja fonte encontra-se fora do universo diegetico, tal como uma instancia narradora fora do filme e/ou do trailer. Esse e um uso bastante recorrente na producao 'trailerifica'.

(4) "What follows is supposed to advertise our first motion picture, Citizen Kane is the title and we hope it can correctly be called a coming attraction".

(5) "I think we can go inside because the place is up for sale. Oh, I don't know who could it buy it now".

(6) "The picture you MUST see from the beginning ... Or not at all! ... for no one will be seated after the start of ... PSYCHO".

(7) Trata-se de uma adaptacao do romance de Anthony Burgess do ano de 1962.

(8) "witty, funny, satiric, musical, exciting, bizarre, political, thrilling, frightening, metaphorical, comic, sardonic, Beethoven".

(9) Em Kafka, Gilles Deleuze (1977) refere-se a uma literatura menos para discutir questoes semelhantes as nossas.

Alexandre Rocha da Silva

Professor do Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao e Informacao da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicacao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul--UFRGS.

<arsrocha@gmail.com>

Patricia de Oliveira Iuva

Doutoranda em Comunicacao e Informacao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul--UFRGS.

< patiuva@yahoo.com.br>

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