A contribuicao da etnometodologia para analise do colunismo social.
Pereira, Wellington ; Mesquita, Tarcineide
The contribution of ethnomethodology to analyze the social columns
Aetnometodologia configura-se como uma corrente da sociologia
americana fundada no final dos anos 60, na California, a partir dos
estudos de Harold Garfinkel, mais especificamente com a publicacao da
obra Studies in Ethnomethodology (Estudos sobre Etnometodologia), em
1967.
A importancia teorica e epistemologica da etnometodologia, herdeira
da fenomenologia social de Schutz e do interacionismo simbolico, deve-se
ao fato de efetuar uma ruptura radical com modos de pensar da sociologia
tradicional. Enquanto a sociologia de cunho positivista encarava os
fenomenos sociais como realidades objetivas, a etnometodologia buscava
compreende-los como construcoes praticas do proprio individuo.
Dessa maneira, o fato social deixa de ser objeto estavel para ser
produto da atividade continua dos homens, que passam a ser encarados
como atores. A nova corrente teorica, entao, passa a dar importancia e
analisar as atividades de "todos os dias" como se fossem
metodos que os membros da sociedade utilizam para tornar essas
atividades racionais.
Privilegiando as abordagens microssociais dos fenomenos, a analise
qualitativa do social e dando maior enfase a compreensao do que a
explicacao, a etnometodologia vai se interessar pelas pessoas em sua
interacao cotidiana e as atividades que elas desenvolvem em seus
contextos imediatos. Dito de outro modo, os estudos etnometodologicos
voltam sua atencao para as atividades comuns, nas quais pessoas como nos
se veem envolvidas (Iniguez, 2004).
A etnometodologia, por tratar justamente da interacao social
cotidiana, pode contribuir para a investigacao de um genero bem
particular do jornalismo impresso: o colunismo social--dedicado a
relatar a vida em sociedade e os fatos do cotidiano atraves de notas. A
etnometodologia aplicada a analise de colunas sociais pode demonstrar
como sao as interacoes promovidas de forma sensivel pelos sujeitos que
dao sentido ao social.
E objetivo deste trabalho resgatar o pensamento da etnometodologia
e apontar suas contribuicoes teoricas para a area da comunicacao, mais
especificamente para o jornalismo impresso e para a analise do colunismo
social.
Pressupostos teorico-metodologicos da etnometodologia
A pesquisa etnometodologica se organiza em torno da ideia segundo a
qual todos nos somos "sociologos em estado pratico". Esta
ideia, por sua vez, e baseada no pensamento de Alfred Schutz que designa
que o real se acha descrito pelas pessoas. Parte-se do principio que a
linguagem comum exprime a realidade social, descrevendo-a e
constituindo-a ao mesmo tempo.
De modo geral, as duas fontes principais da obra pioneira de
Garfinkel sao as obras de Talcott Parsons e Alfred Schutz. Soma-se
tambem a isto a influencia do interacionismo simbolico. Assim, a
perspectiva de Garfinkel parte da base teorica de Parsons, que fora seu
orientador entre 1946 e 1952, mas com profundas reformulacoes advindas
da influencia da fenomenologia sobre ele exercida por meio de Alfred
Schutz e Eduard Husserl, entre outros autores, que o levaram a
posicionar-se contra certas versoes da sociologia dominante (Haguette,
2005).
Para Heritage (1999, p. 323) "os esforcos que Garfinkel
desenvolveu ao longo de sua vida dirigiram-se para um ambito de questoes
conceituais que sempre foram topicos fundamentais da sociologia"
(1). Essas questoes designam a teoria da acao social, a natureza da
intersubjetividade e a constituicao social do conhecimento, com amplas
ramificacoes teoricas e metodologicas. As reformulacoes conceituais
dessas questoes representam o ponto central da inovacao teorica de
Garfinkel.
Sendo assim, torna-se importante ressaltar as principais
influencias exercidas sobre a obra Studies in Ethnomethodology:
a) Parsons e a teoria da acao: pela teoria da acao, o ator
submete-se as normas sociais, que por sua vez determinam suas acoes. Ou
seja, as motivacoes dos atores sociais sao integradas em modelos
normativos que regulam suas condutas e acoes. Baseado no pressuposto de
que, para nos comunicarmos, servimo-nos sempre de simbolos, que tomam
sentidos atraves da linguagem e sistemas de referencias, Garfinkel vai
dizer que a relacao entre ator e situacao nao se devera a conteudos
culturais nem a regras, mas sera produzida por processos de
interpretacao. "Da-se ai uma mudanca de paradigma sociologico: com
a etnometodologia se passa de um paradigma normativo para um paradigma
interpretativo" (Coulon, 1995, p. 10).
b) A fenomenologia social de Alfred Schutz: apresenta a nocao de
compreender (verstehen) em contraste com explicar (erkluren), que ora
faz referencia ao conhecimento do senso comum, ora ao metodo
compreensivo (2). De acordo com Coulon (1995), Schutz e quem propoe o
estudo dos processos de interpretacao que utilizamos em nossa vida de
todo dia para darmos sentido as nossas acoes e as acoes dos outros.
Garfinkel, entao, define a marca de seus estudos: as situacoes praticas,
adotando para suas investigacoes o exercicio empirico de valorizar desde
as atividades banais da vida cotidiana ate os acontecimentos
extraordinarios. Toma como base tambem a ideia do mundo social (o da
vida cotidiana) como mundo intersubjetivo descrito por seus membros.
c) O interacionismo simbolico da Escola de Chicago: representou uma
nova possibilidade para a sociologia, pois popularizou o uso dos metodos
qualitativos na pesquisa de campo, considerados "metodos adequados
para estudar a realidade social" (Coulon, 1995, p. 14). Da mesma
forma, moveu-se na contracorrente da concepcao Durkheimiana de ator.
Para o interacionismo, deve-se em primeiro lugar levar em conta o ponto
de vista dos atores sociais, pois e atraves do sentido que eles atribuem
aos objetos, as situacoes, aos simbolos que os cercam, que os atores
constroem seu mundo social (3). Esta concepcao sera fundamental para
Garfinkel colocar o sujeito como o centro do mundo das linguagens e
faze-lo seu objeto de estudo.
A etnometodologia vai optar, por influencia do interacionismo
simbolico, pela abordagem qualitativa de pesquisa. Os interacionistas
rejeitaram com veemencia o modelo de pesquisa quantitativa, alegando que
o objetivismo na sociologia isola observadores de observados e nega a
subjetividade do pesquisador. Para esta corrente, o conhecimento
sociologico so pode ser percebido pelo pesquisador a partir da
observacao direta e imediata das interacoes entre os atores sociais, das
acoes praticas dos atores. Tal nocao vai ajudar a etnometodologia a
escolher seu instrumental metodologico de pesquisa.
A etnografia, entao, vai se constituir no instrumental de pesquisa
por excelencia dos etnometodologos (4). Segundo Coulon (1995, p. 85),
como nao produziram instrumentos de pesquisa original, "os
etnometodologos vao tomar esses instrumentos emprestados da
etnografia". Para a etnometodologia, e preciso que o pesquisador
seja testemunha do que se dispoe a investigar--ir a campo observar os
atores em situacao, so assim sera possivel analisar as indicialidades
proprias de suas interacoes.
Entretanto, o termo etnometodologia nao designa seu metodo e sim a
sua investigacao ou objeto de estudo (5). Haguette (2005, p. 48) afirma
que diante de palavras como etnobotanica, etnofisiologia e etnofisica,
Garfinkel entendeu que "etno" referia-se, de alguma forma,
"a maneira como um membro de uma comunidade baseada em
conhecimentos de senso comum desenvolve estes conhecimentos sobre seu
mundo circundante" (6). O termo etnometodologia referir-se-ia,
pois, ao modo de racionalizacao e visibilidade das praticas da vida
cotidiana, sendo considerada por Garfinkel a "ciencia dos
etnometodos"--conhecimentos praticos.
Baseando-se no primeiro capitulo de Studies in Ethnomethodology,
denominado "What is ethnomethodology?", Coulon apresenta a
seguinte definicao para o termo:
A etnometodologia e a pesquisa empirica dos metodos que os
individuos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas
acoes de todos os dias: comunicar-se, tomar decisoes, raciocinar. Para
os etnometodologos, a etnometodologia sera, portanto, o estudo dessas
atividades cotidianas, quer sejam triviais ou eruditas, considerando que
a propria sociologia deve ser considerada como uma atividade pratica.
(Coulon, 1995, p. 30).
Sendo assim, a etnometodologia se apresenta como uma teoria (7)
social reflexiva que procura explicar os metodos de todas as praticas
sociais, inclusive os seus proprios metodos. E justamente ai que reside
o seu diferencial: os etnometodologos apresentam a pretensao de estarem
mais proximos das realidades correntes da vida social que os demais
sociologos.
A partir dos anos 70, a etnometodologia comeca a cindir-se em dois
grupos: de um lado, os analistas da conversacao, que estudam as
estruturas e as propriedades formais da linguagem; de outro lado, os
sociologos e os seus objetos ja tradicionais (educacao, justica, as
organizacoes, a ciencia, entre outros). Fundada por Harvey Sacks em
meados dos anos 60, a analise da conversacao vai se constituir, segundo
Coulon (1995), em um dos campos mais ricos e desenvolvidos da
etnometodologia. Nesse tipo de analise, nenhum detalhe textual ou
contextual pode ser posto de lado, pois os detalhes sao importantes para
o entendimento da situacao.
Cicourel vai ser um importante representante da vertente da analise
da conversacao, introduzindo os chamados "procedimentos
interpretativos" (8). Seus trabalhos sobre a aquisicao da linguagem
e da competencia interpretativa das criancas vao ajudar a desenvolver a
vertente conversacionista da etnometodologia.
De acordo com Lima (2001), Cicourel (1979) (9) estuda o enfoque
etnometodologico na sociologia cognitiva. Para compreender o dialogo
cotidiano, o autor busca reunir as ideias interacionistas, a
etnometodologia e a analise da conversacao. Buscando atingir esse
objetivo, Cicourel tenta explicar a sociedade utilizando um modelo
linguistico. Sua preferencia deu-se a partir do contato com linguistas
na epoca.
Assim, a etnometodologia e a analise da conversacao sao
responsaveis por aproximar a linguagem da sociologia. "Embora a
linguagem esteja constantemente no coracao do problema da coleta dos
dados, a sociologia nao fez dela um dos seus temas de estudo"
(Coulon, 1995, p. 73).
Principios etnometodologicos
A etnometodologia, como toda corrente teorica, constituiu alguns
conceitos-chave para melhor explicitar o conjunto das ideias que
defende. Tais conceitos, porem, como explica Coulon (1995), nem sempre
podem ser considerados "novos", pois ora tomam de emprestimo
alguns de seus termos alhures: a "indicialidade" da
linguistica, a "reflexividade" da fenomenologia, a nocao de
"membro" de Parsons, ora retoma termos da linguagem corrente,
modificando-lhes o sentido. E o que ocorre, por exemplo, com as nocoes
de "pratica" ou de "accountability".
Obviamente, o que vem interessar e como estes conceitos se
completam, obedecendo a um tipo especifico de solidariedade e
valorizacao. De uma gama abundante de conceitos e termos apresentados
pelos etnometodologos, nos deteremos aqui em apenas cinco, por
considera-los os mais importantes e fundamentais para uma boa
compreensao dos principios etnometodologicos. Sao eles:
"pratica/realizacao"; "indicialidade",
"reflexividade"; "accountability" e "nocao de
membro".
a) Pratica/realizacao: considera que a realidade social e
construida na pratica do dia a dia pelos atores sociais em interacao. Ou
seja, a realidade nao e um dado preexistente (como previa a sociologia).
"O que a sociologia chama de 'modelos' e considerado pela
etnometodologia como 'as realizacoes continuas dos
atores'" (Coulon, 1995, p. 31). Os estudos da etnometodologia
abordam as atividades praticas, as circunstancias praticas e raciocinio
sociologico pratico. Em razao disso, este conceito torna-se central em
seus estudos. Coulon (1995, p. 31) nos diz que "as atividades
praticas dos membros, em suas atividades concretas, revelam as regras e
os modos de proceder". Em outras palavras, a observacao atenta e a
analise dos processos aplicados as acoes permitem por em evidencia os
modos de proceder pelos quais os atores interpretam constantemente a
realidade social.
b) Indicialidade: pressupoe que a vida social se constitui atraves
da linguagem ordinaria (da vida cotidiana). Essa linguagem tem
propriedades e acordos tacitos, provenientes do que os linguistas chamam
de "expressoes indiciais". As expressoes indiciais sao
expressoes, como por exemplo "isto", "eu",
"voce", "etc.", que tiram o seu sentido do proprio
contexto. "Et cetera" e uma expressao linguageira bastante
estudada pelos etnometodologos e manifesta a ideia de existir um saber
comum socialmente distribuido. Garfinkel, ao inves de criticar a
linguagem ordinaria porque seria incapaz de explicar um certo numero de
principios metodologicos, propoe-se estuda-la considerando o seu carater
indicial nao como um defeito (como alguns sociologos chegaram a
sugerir), mas sim como uma de suas principais caracteristicas. A
etnometodologia, portanto, mostrou "interesse em ver como
utilizamos a linguagem e como, de uma maneira totalmente rotineira,
somos capazes de dar sentido as palavras" (Iniguez, 2004, p. 82).
c) Reflexividade: designa as praticas que ao mesmo tempo descrevem
e constituem a realidade social. "Equivalencia entre descrever e
produzir uma interacao, entre a compreensao e a expressao dessa
compreensao" (Coulon, 1995, p. 42). Quando se diz que as pessoas
tem praticas reflexivas, isto significa que refletem sobre aquilo que
fazem, embora nao tenham consciencia do carater reflexivo de suas acoes.
Elas nao se preocupam em teorizar. Esse e um processo automatico e
continuo. Vejamos o exemplo, apresentado por Iniquez, de uma atividade
banal como andar de bicicleta:
[...] para andar bem de bicicleta nao e necessario pensar como se
anda de bicicleta e, portanto, podemos dizer que ha uma especie de
'conhecimento implicito', um conhecimento que nao e
necessariamente consciente e que e esse que esta permitindo que andemos
de bicicleta, mas que, ao mesmo tempo, pode ser explicitado.
(Iniguez, 2004, p. 84)
Assim, a reflexividade e diferente de reflexao e pressupoe que as
atividades pelas quais os sujeitos produzem e administram as situacoes
de sua vida cotidiana sao identicas aos procedimentos usados para tornar
essas situacoes descritiveis (Garfinkel, 1967 apud Coulon, 1995). O
conjunto de percepcoes gerado pela reflexividade serve como base para a
tomada de decisao e para a formacao de uma ideia de mundo.
d) Accountability: assinala a propriedade de relatabilidade ou
descricao, que permite aos atores sociais comunicarem e tornarem as
atividades praticas racionais compartilhaveis. A relatabilidade esta
intimamente ligada ao processo de reflexividade. Sendo assim, pode ser
encarada como as descricoes e relatos que os sujeitos fazem de seus
processos reflexivos, procurando demonstrar a constituicao da realidade
que produziram e vivenciaram. A etnometodologia, de modo geral, vai se
preocupar em elucidar a maneira como estes relatos ou descricoes (de um
acontecimento, de um evento, de uma relacao ou de um objeto) sao
produzidos em interacao.
e) Nocao de membro: para a etnometodologia, membro nao e apenas um
ente que pertence a um determinado grupo, mas, ao contrario, e um ente
que compartilha a construcao social daquele determinado grupo, dominando
sua linguagem natural. Em outros termos, e membro o individuo que domina
a linguagem comum do grupo, que interage com os outros membros,
administrando, com propriedade, essa linguagem. Segundo Coulon (1995), a
filiacao ou pertenca a um grupo repousa sobre a particularidade de cada
um, sua maneira singular de enfrentar o mundo, de
"estar-no-mundo" nas instituicoes sociais da vida cotidiana.
Um membro nao e, portanto, apenas uma pessoa que respira e pensa. E
uma pessoa dotada de um conjunto de modos de agir, de metodos, de
atividades de savoir-faire, que a fazem capaz de inventar dispositivos
de adaptacao para dar sentido ao mundo que a cerca. E alguem que, tendo
incorporado os etnometodos de um grupo social considerado, exibe
'naturalmente' a competencia social que o agrega a esse grupo
e lhe permite fazer-se reconhecer e aceitar.
(Coulon, 1995, p. 48)
A complementacao que a etnometodologia da a nocao de
"membro" de Parsons consiste em passa-la do nivel meramente de
"pertencer a uma comunidade" aquela mais
"linguistica", que ressalta o dominio (e a importancia) da
linguagem natural. Os conceitos-chave da etnometodologia, portanto,
consideram o sujeito como elemento principal do processo de construcao
da realidade social, observando como este se encontra envolvido, por
meio da linguagem, nos intercambios comunicacionais e nas interacoes
cotidianas.
Por tudo isso, a etnometodologia vai oferecer importantes
contribuicoes as diversas areas como educacao, administracao, praticas
medicas, criminologia, justica, sociologia da ciencia, comunicacao,
entre outras. Esta ultima, com pouca enfase, de fato, contudo, nao menos
importante.
No campo do jornalismo, especificamente, tanto a etnometodologia
como o interacionismo simbolico vao dar origem as teorias que percebem a
noticia como construcao social. Estas, segundo Traquina (2005), sao as
teorias estruturalista e interacionista (tambem chamada de
etnoconstrutivista).
O paradigma das noticias como construcao social emerge a partir dos
anos 70 em oposicao as perspectivas que poem em causa diretamente a
ideologia jornalistica e a teoria das noticias como "espelho"
da realidade. A teoria do espelho pressupoe que as noticias sao
determinadas pela estrutura social, por isso, sua configuracao
conceitual parte dos ideais defendidos pela sociologia tradicional. Ja
pela nova perspectiva--a de que nao apenas a estrutura social determina
os individuos, mas eles a constroem--, a noticia e construida por uma
serie de escolhas e selecoes feitas com base em normas organizacionais.
Traquina (2005) explica como a etnometodologia (e seu instrumental
de pesquisa--a etnografia) contribuiu para o surgimento do novo
paradigma das noticias:
Os academicos, seguindo o exemplo dos antropologos em terras
distantes com uma abordagem etnometodologica, foram aos locais de
producao, permaneceram durante longos periodos de tempo, observaram os
membros da comunidade jornalistica com intuito de 'entrar na
pele' das pessoas observadas e compreender a atitude do
'nativo'.
(Traquina, 2005, p. 171)
Podemos perceber entao que a etnometodologia, ao contrario de
outras abordagens que focam o produto jornalistico, permite uma
observacao teoricamente mais informada sobre as ideologias e as praticas
profissionais dos produtores das noticias, justamente por tornar
possivel a observacao de momentos decisivos do processo produtivo.
Segundo Traquina (2005) a contribuicao dos estudos etnograficos a
compreensao do jornalismo e tripla: a) devido a abordagem
etnometodologica, o estudo de jornalismo permitiu ver a importancia da
dimensao trans-organizacional no processo de producao de noticias; b)
permitiu reconhecer que as rotinas constituem um elemento crucial nos
processos de producao das noticias, ou seja, todo o networking informal
entre os jornalistas e a dependencia cultural que provem de ser membro
de uma comunidade profissional; c) serve como corretivo as teorias
instrumentalistas.
O colunismo social
A coluna social e o genero do jornalismo impresso que se dedica a
relatar a vida em sociedade e os fatos do cotidiano atraves de notas. Em
sua epoca aurea no Brasil, durante as decadas de 50 e 60, deteve-se em
consagrar o estilo de vida das elites, buscando sempre descrever com
detalhes os trajes e as festas suntuosas.
Na atualidade, o genero vem ampliando o leque de assuntos
abordados, trazendo alem da cobertura dos eventos sociais e a exposicao
da vida privada de famosos, comentarios ligados aos acontecimentos
advindos do cotidiano do espaco publico--noticias de politica, economia,
esportes, cultura, problemas urbanos, entre outros.
Nesse sentido, podemos considerar que a coluna social publicada no
jornal impresso, vem convivendo com a tensao entre o, publico e o
dominio privado; entre o entretenimento associado a publicizacao da vida
privada e a informacao de carater mais claramente subjetivo (Souza,
2005).
Ao oferecer notoriedade e um vies publico as questoes particulares
(10), acredita-se que a midia impressa, por meio do colunismo social,
pode contribuir para a formacao de um imaginario cotidiano de
ostentacao, prazer e beleza em seus publicos. Se por um lado, as colunas
sociais contemporaneas expoem a vida privada de famosos e ricos
empresarios, a fim de atingir ou mesmo fascinar o leitor, por outro,
divulgam fatos de interesse publico, antecipando as noticias que
figurarao nas outras secoes do jornal e nas agendas dos cidadaos no dia
seguinte (11).
Tal aposta simbolica da midia constroi representacoes que tomam o
lugar da realidade, atraves de um discurso--o do colunista--que se
encontra materializado em pequenos textos e legendas. Dessa forma, a
partir da divulgacao de opinioes e interpretacoes do jornalista sobre as
questoes do espaco publico, social e privado, diferentes niveis do
cotidiano sao apresentados ao publico-leitor--o cotidiano dos famosos,
dos lideres politicos, da rua, da vida festiva em sociedade, etc.
O colunismo pode ser considerado o genero em que mais e livre a
opiniao jornalistica sobre os fatos noticiosos. Nele, as informacoes sao
veiculadas, muitas vezes, com intuito de persuadir o leitor. A linguagem
utilizada e repleta de adjetivos e ironias, criticas e elogios. Muitos
colunistas criam marcas discursivas proprias.
Melo (1985) acredita que as colunas, de um modo em geral, exercem
um trabalho sutil de orientacao da opiniao publica por terem fisionomia
levemente persuasiva, nao se limitando a emitir uma simples opiniao. A
coluna "vai mais longe: conduz os que formam a opiniao publica,
veiculando versoes dos fatos que lhes darao contorno definitivo"
(Melo, 1985, p. 106). Alem disso, mantem periodicidade que acompanha o
ritmo dos acontecimentos, o que lhe confere uma maior ligacao com as
emocoes e proeminencias do dia a dia.
Na esfera de producao noticiosa, o jornalista/colunista dispoe de
artificios particulares para selecionar os fatos e personagens a
merecerem registro. Assim, alimentam a ambicao narcisica dos que
circulam na sociedade, prestando-se a manutencao dos modelos ideais de
vida da cultura de massa, baseados no consumo, beleza e espetaculo.
Sem duvida, a formacao desse imaginario de ostentacao (bem como a
construcao do espaco publico) passa pelo discurso da midia que atende a
uma necessidade substituta existente no publico leitor, dando-lhes a
sensacao (o prazer) de participar desse mundo (estar-no-mundo) atraves
dos colunistas.
Por isso tudo, a coluna social constitui-se num dos espacos de
linguagens e experiencias mais complexos do jornalismo impresso para se
investigar. Nesse espaco, geralmente, os sujeitos sao vistos por suas
razoes materiais, mas nunca como sujeitos que abarcam as reflexividades
do valor estetico de nossa cultura. A etnometodologia juntamente com
seus construtos teoricos pode nos ajudar a observar os pormenores
"praticos" que circunscrevem o colunismo social.
As marcas da etnometodologia na analise de colunas sociais
A etnometodologia aplicada ao cotidiano jornalistico demonstra como
sao as interacoes promovidas de forma sensivel pelos sujeitos que dao
sentido ao social. Na analise de colunas sociais, esta corrente
sociologica, contribui, entre outras coisas, para elucidar o conjunto de
atitudes e reacoes dos sujeitos em face de seus tipos de socialidades.
Os etnometodologos poem enfase nas atividades interacionais que
constituem os fatos sociais, por esse motivo, podemos perceber as
colunas sociais como sendo um campo de confluencias de experiencias
concretas vividas pelos sujeitos. Experiencias essas que constituem e
descrevem a realidade social.
A atividade pratica do colunismo designa as formas de apresentacao
dos atores em um evento social--as festas (de casamentos, de
aniversarios e demais comemoracoes) e manifestacoes artistico-culturais
presentes em nossa localidade (lancamento de livros, shows, etc.). A
apresentacao dos atores exige deles um cuidado especifico com a
aparencia. E e aparencia no fim das contas quem governa o modo de
estar/figurar nas colunas.
Com base no conceito de "reflexividade", podemos pensar a
apresentacao dos atores nas colunas sociais como sendo extensao de uma
reflexividade socioeconomica, pois "estar na coluna social"
significa "fazer parte de"--fazer parte de uma
"classe" social, de uma profissao, de uma familia, etc.--um
acordo simbolico.
Presume-se que no espaco do colunismo social estao sendo
simultaneamente produzidas as normas e a inteligibilidade dos atores
envolvidos. Sem duvida, a norma e apresentar-se bem: "bem
vestido", "bem magro", "bem casado", "bem
amigo", "bem viajado". Desse modo, a reflexividade nao e
um conceito inscrito numa moral, mas sim comedido por competencias,
"ser capaz de fazer".
As capacidades dos atores "colunaveis" (12), suas
aptidoes e competencias vulgares, sao necessarias para as producoes
constitutivas do fenomeno cotidiano da ordem social. E, principalmente,
reunem a familiaridade para se tornarem "membros" dessa
coletividade.
A apresentacao dos atores nos eventos em sociedade reflete tambem a
forma como o jornalista/colunista ira construir seu discurso, ou seja, a
linguagem comum do grupo. Os adjetivos utilizados na producao dos
textos-legendas irao ganhar contornos definitivos quando confrontados
com a aparencia fisica e os modos de vestir dos atores. Basta buscar no
jornal nosso de cada dia para perceber: "beleza estonteante",
"presenca reluzente", entre outros termos.
Os adjetivos, ou ainda outros termos empregados pelo colunista
social, constituemse de marcas discursivas proprias do genero em que
pertencem, por isso podem ser apreendidos como
"indicialidades". Compreender uma palavra ou frase implica
sempre uma "avaliacao" da situacao que vai alem da informacao
efetivamente dada em um momento concreto. Assim, a palavra nao expressa
plenamente o significado; ela adquire esse significado plenamente no
cenario concreto de sua producao. "Nao ha significado possivel fora
das condicoes de seu uso e do espaco social de sua enunciacao"
(Iniguez, 2004, p. 82).
E importante destacar que as colunas sociais contemporaneas (13)
nao sobrevivem apenas dos adjetivos, dos "bajulos" classicos e
das frivolidades cotidianas, mas buscam, por outro lado, satisfazer a
necessidade de informacao do publico-leitor. Esta e a hipotese que
defendemos e que, por ora, nao podemos aqui comprovar (14). Nesse
sentido, as colunas sociais trabalham com uma gama diversificada de
conteudos, objetivando estar mais proximas de um genero aglutinador de
assuntos--politica, economia, esportes, etc.
Consideracoes finais
A etnometodologia contribui teorica-epistemologicamente com a
elucidacao de caracteristicas especificas do genero colunismo social do
jornalismo impresso. Contudo, ha que se atentar para sua contribuicao
metodologica, em razao de seu instrumental de analise--a etnografia.
Metodologicamente, para se investigar o colunismo social com ajuda da
etnometodologia faz-se necessario "adentrar" no mundo das
festividades socioculturais de uma dada localidade.
Apesar disso, a etnometodologia traz importantes revelacoes no que
se refere a analise qualitativa na pesquisa comunicacional,
especificamente, as analises das formas de socialidades presentes no
colunismo social. E, em razao disso, acreditamos que a abordagem
etnometodologica pode somar-se a uma abordagem discursiva propriamente
dita.
Assim, defender a postura intelectual etnometodologica e acreditar
que o mundo social so e possivel por causa desta densa estrutura
coletiva de entendimentos tacitos de atividades mundanas, ordinarias e
comuns do dia a dia, como insistia Garfinkel.
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Wellington Pereira
Professor Doutor no Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao da
Universidade Federal da Paraiba--UFPB. <wjdop@uol.com.br>
Tarcineide Mesquita
Mestranda no Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao da
Universidade Federal da Paraiba--UFPB. tarcimesquita@gmail.com
NOTAS
(1) O proprio Coulon (1995, p. 8) alertou para tal fato: "A
etnometodologia nao e um ramo separado do conjunto da pesquisa em
ciencias sociais. Pelo contrario, acha-se em relacao, mediante multiplas
ligacoes, com outras correntes que, como o marxismo, a fenomenologia, o
existencialismo e o interacionismo, alimentam a reflexao contemporanea
sobre a nossa sociedade".
(2) Schutz confronta a fenomenologia com a sociologia de Weber,
procurando clarificar a nocao de Verstehen.
(3) Segundo Coulon (1995, p. 16) a teoria da atribuicao de rotulos,
que faz parte do interacionismo simbolico, "leva ao extremo essa
orientacao segundo a qual o mundo social nao e dado, mas construido
'aqui e agora'".
(4) O metodo documentario de interpretacao vai ser posteriormente
qualificado e utilizado por Garfinkel. Esse metodo, segundo Garfinkel
(1984 apud Heritage, 1999, p. 339), "consiste em tratar uma
aparencia real como 'o documento de', como 'apontando
para', como 'favorecendo um' pressuposto padrao
subjacente".
(5) Etimologicamente "etno" (do grego ethnos) que dizer
raca, nacao, povo. Ja "metodologia" (de metodo + logia)
significa o estudo dos metodos e, especialmente, dos metodos das
ciencias.
(6) Seu primeiro trabalho se efetua observando a maneira pela qual,
em um juri, os jurados formavam juizos de valor. Ele percebeu,
observando um certo numero de conversacoes entre jurados, o uso de um
tipo especifico de conhecimento para julgar. Os jurados revelavam um
saber comum (levando em conta: experiencias pessoais, as descricoes e
evidencias) sobre o funcionamento dos atos cotidianos adaptados ao
funcionamento da justica.
(7) Coulon (1995) afirma que a etnometodologia e mais do que uma
teoria constituida, e, antes, uma "nova" postura intelectual.
(8) Tedesco (2003) considera Cicourel o co-definidor da corrente
etnometodologica. Segundo este autor, os "procedimentos
interpretativos" propostos por Cicourel sao muito proximos do que
Garfinkel ja havia discutido como "raciocinio sociologico
pratico".
(9) Speech acts and conversations: Bringing language back into
sociology.
(10) Consideram-se questoes particulares: fofocas sobre famosos,
divulgacao de datas de aniversarios, viagens de ferias, festas de
casamentos, entre outras.
(11) De acordo com Melo (1985), as colunas procuram trazer fatos e
ideias em primeira mao, antecipando-se a sua apropriacao pelas outras
secoes dos jornais. Isso acontece devido ao amplo circulo de
relacionamento que os colunistas possuem.
(12) Utiliza-se a expressao "colunavel" para designar a
pessoa que aparece corriqueiramente na coluna social.
(13) Referimo-nos aqui as colunas mantidas por jornalistas.
(14) Na realidade, tal hipotese ja foi comprovada em trabalhos
anteriores.