A vida em cor de rosa: o romance sentimental e a ditadura militar no Brasil.
Barros de Andrade, Roberta Manuela ; Honorio Silva, Erotilde
The life in rose color: the sentimental romance and the military
dictatorship in Brazil
Na atualidade, uma das grandes questoes que movem os estudos sobre
a comunicacao mediada tecnologicamente diz respeito ao desvendamento de
suas relacoes com periodos historicos claramente importantes para a
politica brasileira. Dentre esses periodos de destaque, ressalta-se,
neste trabalho, o ciclo que abarcou o Golpe Militar de 64. Neste
contexto, a academia tem procurado, apos a abertura politica, em meados
dos anos oitenta, tratar, com multiplos vieses de analises, as
interrelacoes entre bens produzidos na cultura de massa e este periodo
de excecao. Entrementes, tem-se deixado sistematicamente em aberto
reflexoes que abranjam um segmento especifico desta cultura de massa: a
literatura popular, em especial, um de seus generos, que se convencionou
chamar de romances sentimentais ou que, na nomenclatura francesa, sao
conhecidos como romances "cor de rosa".
O interesse em nos debrucarmos sobre estes romantes esta na
pertepcao de que a leitura e uma pratita sotial, historitamente situada
que tanto tonstroi novas representacoes sobre o sotial tomo repercute
visoes consolidadas pela ordem dominante (Chartier, 1992).
Este e o caso dos romances sentimentais de Corin Tellado que,
vendidos a precos populares, em meados dos anos 1960, em bancas de
revista, foram uma grande aposta do Regime na repercussao de certos
valores, que na optica das classes dirigentes, eram considerados
condizentes com a nova ordem social. Esta nova ordem social requeria uma
mediacao que atingisse as classes populares, orientando a sua forma de
pensar, agir e estar no mundo. Neste quesito, os romances sentimentais,
pela sua estrutura narrativa, foram os porta-vozes, de certas
representacoes sociais que se adequavam aos ditames das elites no poder.
Um romance sentimental e, antes de tudo, uma obra de ficcao cuja
tematica trata de sentimentos e paixoes. Trata-se, pois, de historias de
amor que concentram sua atencao sobre os estados emocionais e os
conflitos internos das personagens muito mais do que sobre as acoes
externas (Samona, 1980). Este novo genero, surgido, na Europa, em fins
do seculo XIX, derivado dos romances folhetins, se coloca como um dos
carros-chefe da literatura de massa ou popular. Este produto, tipico da
industria cultural, pretendendo atender a um novo publico leitor--o
feminino--tanto do universo burgues como do popular, adaptou os modelos
da alta literatura as exigencias de padronizacao e estereotipizacao da
sociedade de consumo.
No Brasil, a entrada do romance sentimental se da no mesmo periodo,
em fins do seculo XIX, com o movimento romantico. Nas primeiras decadas
do seculo XX ate seus meados, eram vendidos, para as mocas da classe
media, em livrarias, por intermedio de colecoes, cujo maior expoente,
foi, com certeza, a Colecao Biblioteca das Mocas (Cunha, 1999; Andrade;
Silva, 2008; 2009). Este genero encontra sua versao para as classes
populares, nos romances de Corin Tellado, vendidos em banca de revistas,
pais afora.
Entre os anos de 1965 e 1975, periodo de endurecimento do Regime,
que encontra seu apice no AI-5, enquanto a censura modifica
estruturalmente a producao dos noticiosos e as telenovelas comecam a se
instaurar como genero ficcional soberano, as mulheres das classes
populares consomem, pela primeira vez, uma literatura sentimental,
essencialmente destinada a elas, encontrada em bancas de revista. Essa
literatura, entre meados dos anos 1960 ate fins dos anos 1970, encontra,
no Brasil, seu maior sucesso editorial nas Colecoes Trevo, Caricia,
Amor, escritas pela espanhola Corin Tellado, que alcancou uma estrondosa
popularidade em seu pais de origem, durante o franquismo, expressao que
se refere a ditadura militar de Francisco Franco, que dominou a Espanha
de 1939 a 1975, periodo de sua morte.
Corin Tellado, pseudonimo da espanhola Maria Del Socorro Amalia
Tellado Lopez, esta entre as autoras de romance cor de rosa mais famosas
do seculo XX. Tellado teve seu primeiro livro editado em 1946, na
Espanha, se tornando rapidamente sucesso editorial em seu pais de
origem. Em 1962, com sua popularidade assegurada na Espanha, assina
contrato com a editora Bruguera, que abre uma filial no Rio de Janeiro,
e assume a traducao das obras de Tellado para o publico brasileiro, ao
mesmo tempo em que exporta seus livros para a Argentina, o Mexico, o
Chile, a Venezuela, a Colombia, recebendo tambem vultosos investimentos
publicitarios.
Em 1962, a UNESCO declara que ela e a autora mais lida na Espanha,
atras apenas da Biblia e de Cervantes. Seu esquema de producao permitia
que escrevesse uma nova obra a cada cinco dias, perfazendo ao todo mais
de 5.000 titulos, em 50 anos de carreira, englobando ainda roteiros
adaptados para a TV e o cinema. Na America Latina, num periodo de dez
anos, foram publicados mais de 70 titulos de sua Colecao. No Brasil, tal
como em seu pais de origem, os livros eram vendidos em formato de livro
de bolso, assim chamado pelo seu tamanho menor que o usual (15 cm x 10,5
cm), o que facilitava a sua compra e manuseio pelas classes populares.
Assim, a editora Bruguera objetivava garantir vultosas vendas e
para esse fim investia no uso de papel jornal na producao dos livros de
Corin Tellado, deixando o chamariz para as capas feitas em cores fortes
sobre papel brilhante. Para adaptar a tipografia aos habitos escassos de
leitura das classes populares, as letras dos romances eram de tamanhos
garrafais e as frases se caracterizavam pelo estilo curto e telegrafico,
bem ao estilo dos folhetins do seculo anterior. Essas estrategias
chamavam a atencao das jovens leitoras, em meio a outras opcoes
frequentes nas bancas, como jornais e revistas daquele periodo. O
formato que cabia na bolsa, facilitava a leitura, uma vez que garantia o
seu consumo em qualquer lugar, tanto em transportes publicos como em
salas de espera de escritorio e hospitais e em intervalos de trabalho. A
portabilidade foi, com certeza, uma das razoes do seu exito, aliada a
uma estrutura narrativa simples, com personagens estereotipadas, que
representavam jargoes que ja circulavam no meio social e eram
evidenciados nas historias.
Sao as colecoes desta autora, publicadas no Brasil pela editora
Bruguera, o objeto de reflexao deste trabalho. Tal como em seu pais de
origem,
acreditamos que estes romances contribuiram para cristalizar visoes
de mundo e modelar condutas a partir dos usos de um certo imaginario
romantico que foi apropriado pelas elites brasileiras para a
consolidacao de um sistema autoritario.
Este sistema autoritario criou uma ideologia, amplamente difundida
nos meios de comunicacao, que propiciava a legitimacao social necessaria
para a sedimentacao de uma nova sociedade de consumo, baseada na
aquisicao de bens de luxo e/ou superfluos.
Esta insercao das classes populares na sociedade de consumo era
orientada nao so pela publicidade, mas tambem, pela incorporacao dos
habitos e comportamentos protagonizados pela ficcao de Corin Tellado. As
tramas desta autora apresentavam um universo no qual as idas aos clubes,
a frequencia a restaurantes, a aquisicao de carros e lambretas, as
viagens de ferias estavam incorporadas aos habitos de vida de seus
personagens. Tais habitos de consumo compactuavam com a aura de
modernizacao que envolvia o Brasil neste periodo.
Estes romances, apesar de nao fazerem referencias a eventos
politicos especificos nem a simbolos nacionais, enfocavam visoes sobre
decencia, honestidade, forca de carater, que embutidas em relacoes
desiguais de genero, auxiliaram na preservacao do status quo daquele
periodo. A escolha pela analise dos romances sentimentais de Corin
Tellado, como representantes de valores necessarios a nova ordem
politica, esta baseada em duas premissas. A primeira diz respeito a sua
popularidade entre as mulheres das classes populares, o que garante a
sua legitimidade como objeto de estudo, uma vez que, seu sucesso
editorial atingiu a um segmento da sociedade brasileira ainda pouco
estudado pela academia; a segunda deve-se ao uso da ficcao transmitir
atitudes e valores sociais que o poder estabelecido percebia como
necessarios a consolidacao do regime ditatorial no Pais.
Neste sentido, as criticas correntes de que neste tipo de
literatura o social, o politico e o economico estariam ausentes, de que
as personagens existem num vacuo, parece carecer de sentido. O ambiente,
as atitudes e comportamentos das personagens inseridos nestes romances
nos indicam a presenca de um conjunto de pressupostos que, no periodo
historico em questao, refletiram os valores dominantes das elites
militares/ burguesas que governavam o pais.
A caracteristica mais forte apresentada nesta escritora era a
destricao dos habitos e comportamentos de uma classe media urbana, que
se adequava aos sonhos de consumo inseridos nos sistemas midiaticos e
que sustentavam a politica economica que culminaria no Milagre Economico
Brasileiro.
Deste modo, vendidas a baixo custo em bancas de jornal, suas
historias visavam, prioritariamente, a um publico leitor feminino em
processo de urbanizacao. Este impulso para a "modernizacao"
dera seus primeiros passos na era Kubitschek, no seu projeto
desenvolvimentista ousado de realizar 50 anos de progresso em 5 anos de
acao politica. Esse ideal desenvolvimentista foi consolidado num
conjunto de objetivos a serem concretizados em varios setores da
economia. A principal mudanca de seu governo nos tramites historicos foi
a construcao de Brasilia e a transferencia da capital federal para o
novo territorio (Singer, 1981). Neste sentido, a ideia do
desenvolvimento estava baseada na vida urbana industrializada. Segundo
Figueiredo (1998), a cidade e a industria cabia um papel civilizador.
Esse papel aparecia em varios anuncios da epoca como o da Eletrobras que
preconizava "energia para as cidades, desenvolvimento para o
interior".
As metas eram grandiosas e, em sua maioria, alcancaram resultados
considerados positivos. O crescimento das industrias de base,
fundamentais ao processo de industrializacao, foi de praticamente 100%
no quinquenio 1956-1961. O avanco economico aliado a praticas
democraticas, apesar do aumento da inflacao e das consequencias dai
oriundas, deram ao povo a sensacao de que sair do atraso economico era
possivel. A sociedade adquirira uma expectativa de modernizacao, ideal
cuja realizacao dependia da chegada do progresso que se alicercaria na
transformacao de uma economia agraria para uma etapa de crescimento
industrial e urbano (Figueiredo, 1998; Singer, 1981).
Neste contexto, as classes menos favorecidas ja podiam gozar do
privilegio de usufruir das incitacoes de desejos da nova sociedade de
consumo. No entanto, esta demanda esteve em perigo, apos Kubitschek, com
o governo Goulart e o medo das elites da ascensao do regime comunista no
Pais. No campo da politica, a "crise" foi solucionada pela
instauracao do Regime de Excecao de 1964. O golpe militar de 1964
garante, assim, a uma emergente classe media a continuidade de um novo
status social e apregoa para as classes populares a possibilidade de
entrada na sociedade de consumo. Mas, apesar dos ideais modernistas, o
Brasil vivia um processo desordenado de urbanizacao.
Grande parte da populacao ainda era analfabeta ou semianalfabeta,
morava em bairros de periferia, trabalhava em locais distantes desses
bairros. A escola, quando havia, era precaria e o atendimento a saude
tambem de dificil acesso. Os equipamentos culturais disponibilizados
pelo Estado eram muito escassos e os existentes mal chegavam para a
fruicao das elites economicas. Na politica, imperava as oligarquias que
realizavam aliancas entre si e entre o poder religioso. Mas, enquanto
esse cenario se formava, a juventude mais seleta socialmente ouvia os
acordes da bossa nova enquanto as classes populares, pela primeira vez,
se deliciavam com a leitura de Corin Tellado.
Amor Romantico, ideologia e controle social
Os romances de Corin Tellado representam uma percepcao do amor,
construida, datada e ordenada no que a literatura especializada chamou
de amor romantico. O ponto central de sua obra, tal como em seus
congeneres, conjuga sexo, amor e casamento, propondo um amor reciproco e
indissoluvel, cuja finalidade ultima e a felicidade (Aries, 1987). Em
Corin Tellado, ao mesmo tempo em que o amor romantico abarca a
sexualidade, ele tambem rompe com ela, pois, ali, o amor sublime deve
predominar sobre o ardor sexual. Neste sentido, da-se um novo
significado para a "virtude", que passa a compreender
qualidades do carater de uma pessoa, o que a distingue das demais.
O romance ideal, em Tellado, assim tomo a emocao ideal estao
cirtunscritos a nocoes que aliam o amor a paixao, legitimados por
sentimentos de posse.
Assim como a proposta de unidade entre amor e sexualidade foi
fundamental para o amor romantico (Lazaro, 1996)--proposta esta que faz
com que o casal busque um no outro tanto satisfacao amorosa quanto
sexual--, tambem foram as ideias de reciprocidade e de exclusividade,
tipicas da estrutura narrativa de Corin Tellado. O amor devia se
realizar completa e simultaneamente com reciprocidade e era a unidade de
sentimentos que dava sentido e sustentacao ao relacionamento. A relacao
amorosa era percebida e vivida como um investimento emocional a dois,
mas nao "quaisquer dois", e sim dois individuos especificos,
exclusivos, que com suas proprias "virtudes" despertavam um no
outro o amor (Giddens, 1993.).
Mas, se a escolha amorosa romantica deveria ser realizada
livremente e em funcao do compartilhamento de amor e desejo, sendo a
reciprocidade de sentimentos que dava sentido e sustentacao ao
relacionamento, e de se supor que este estado pudesse nao perdurar para
sempre, que ele se esgotasse e deixasse os individuos livres para mais
uma expedicao conjunta e extensa. Assim, para tentar neutralizar um
certo direcionamento que poderia ousar romper o tecido social das
relacoes dominantes, o amor romantico e domesticado. Ao ser levado para
dentro do casamento, o amor romantico e apaziguado porque colocado como
alicerce para um casamento eterno, consolidando, desta feita, a coesao
da familia (Vainfas, 1986). Assim, a juncao de sexualidade e amor no
casamento torna-se fundamento da relacao e modo de controle das vidas
privadas, perdendo, assim, seu carater transgressor e inovador.
Destarte, qualquer referencia a revolucao sexual que ocorria em
determinados paises ocidentais, neste mesmo periodo, era barrada. Neste
contexto, os romances tinham a funcao de denunciar o desregramento
sexual oriundos de certos paises europeus e norte americanos, cuja
liberalidade apontava para segmentos da elite em franco declinio moral.
Num contexto de censura e restricoes que caracterizou a ditadura militar
brasileira, a autora escrevia historias de amor nas quais
obrigatoriamente a heroina era descrita como uma atraente mulher que
precisava de abrigo-protecao de um parceiro que a sustentasse e
mantivesse dentro da epoca e da moral vigente. Esta caracterizacao
obedecia, desta forma, tanto aos ditames morais da ditadura militar
espanhola quando aos da brasileira, sendo uteis aos governos
totalitarios desses paises.
Durante a ditadura, a nocao de amor romantico de Tellado agradava
aos dois regimes de excecao por duas razoes. Os censores do poder nao
permitiam a publicacao de material que fizesse referencia a
comportamentos sexuais. Os encontros casuais ou de natureza mais
desinibida eram interditados pela censura e pelos editores porque
poderiam ser percebidos como contrarios a moral e aos bons costumes. A
narrativa tinha, assim, seu desfecho com o casamento catolico. O
controle governamental por todas as formas de publicacao, incluindo
historias de amor, significava a impossibilidade de aceite de relacoes
fora do paradigma do amor como atracao heterosexual que culminava no
casamento como resolucao do enredo. Assim, nao existia final sem o amor
romantico e nenhum amor romantico poderia existir sem a virgindade,
virgindade requerida como sacrificio, sacrificio que com certeza e cedo
seria recompensado pelo casamento.
A autora encontrou e repetiu uma formula extremamente eficaz: as
mulheres so tem valor quando resistem ao sexo fora do casamento e nenhum
homem respeitara uma mulher que se entrega antes do matrimonio,
sacramentando, desta feita, as rigidas regras invisiveis do espaco
domestico e suas funcoes no social. Assim,
os romances de Corin Tellado fomentavam, no imaginario de suas
jovens leitoras, a resignacao, a preservacao da virgindade e a abnegacao
frente a perfidia masculina.
Entre corredores que cheiravam a odor de repolho cozido, de
correntes atadas as maquinas de costura e as missas diarias, as classes
populares sonhavam com seu principe encantado.
Nas tramas, em geral, as heroinas compartilham uma dramatica
experiencia de sofrimento e de virtude imaculada. Em geral, como e usual
nestes livros, o sofrimento vem de um isolamento do social (no caso de
serem orfas), de empobrecimento economico ou de maus tratos de parentes
desalmados. A virtude e usualmente apresentada como um modo de submissao
aos ditames morais do catolicismo, em especial, na forma da virgindade.
A combinacao de sofrimento e virtude e recompensada ao final da trama
pelo exito no casamento. O homem nao so complementa perfeitamente a
mulher, mas tambem, e a solucao ideal para seus problemas. Os romances
de Corin Tellado frequentemente tem descricoes de beijos e abracos
apaixonados, mas apesar de conter personagens femininas que sugerem um
sexo pre-marital com seus parceiros, efetivamente o ato nao se
concretiza ate o casamento, sendo condicao para a sua realizacao.
Este imperativo da virgindade chega a construir uma moralidade que
legitima o uso da violencia fisica para constranger o outro no ato
sexual. Em Primeira Noite de Casados, Maud pensa ter sido estuprada,
apos um desmaio resultante de uma briga, gerada por ciumes, na qual
Marx, seu primeiro amor, fora de si, a forca com beijos a aceitar suas
ousadias. Ao se recuperar do desmaio, Maud acaba aceitando sua proposta
de casamento porque, segundo Marx, nenhum homem honesto querera para
esposa uma mulher "marcada" por outro, independente desta ter
ou nao colaborado para o ato em si.
Desta feita, o governo vigiava a literatura de massa e esta
funcionava como um mecanismo eficiente para conduzir e controlar o
processo de producao de ideias no Pais. No Brasil, a midia trabalhava em
conjunto com o ideario difundido por tal literatura, promovendo certos
tipos de imagens cuja formula agregava valor ao engajamento dos autores
e editores a esta ideologia que propagava a continuidade das
desigualdades nas relacoes de genero. Neste principio de
intertextualidade, as revistas destinadas ao publico feminino ilustravam
como casais famosos que nao selecionavam parceiros conforme as normas do
amor idealizado eram objeto de criticas, olhados com desconfianca, como
eram os casos das artistas de teatro, de radio e da TV. No enredo, as
mulheres eram sempre alguns anos mais jovens que seus parceiros e com
padrao economico inferior ao dos seus companheiros. O homem tinha que
ser forte, ter nivel economico e exibir uma alta educacao. Ele deveria
repassar preceitos sociais a sua parceira, enfim, era o
"cabeca" do casal.
Neste contexto, o amor romantico que passou a servir de alicerce
para o casamento burgues, marcado pela enfase no amor eterno, pela
liberdade de escolha e pela exclusividade e reciprocidade dos parceiros,
reproduzia uma ordem que confinava a mulher a esfera privada (Del
Priori, 2006). Portanto, nestes romances, os papeis masculinos e
femininos eram bem demarcados, vigiados e cumpridos a risca. No romance
Carolina, se a heroina da historia, iniciava a trama insatisfeita com o
casamento, nao era porque estava confinada ao aprisionamiento da esfera
privada, mas porque nao havia aprendido a revelar seus verdadeiros
sentimentos ao marido e ainda era incapaz de compreender os sentimentos
deste em relacao a si propria.
As promessas do amor romantico, assim, se definem pela satisfacao
sentimental, jamais pela mudanca da ordem social. Esta ideia serviu
essencialmente ao regime de excecao. Neste contexto, a felicidade iria
re-energizar, fortalecer, o homem que se confrontava cotidianamente com
as adversidades da vida laboral, publica, e que chegava em seu
"lar" necessitando do amparo, da compreensao e do amor de sua
esposa. (Lipovetsky, 2000). Assim, no amor romantico temos a criacao do
"lar" como um ambiente distinto do trabalho, onde, ao menos a
principio, o individuo poderia encontrar apoio emocional. Incentivadas a
ocupar tal lugar na ordem social, as expectativas e sonhos das jovens
leitores de transformacoes estavam vinculadas ao casamento, que
significava o encontro com a felicidade.
Com o casamento, estava em jogo, para estas jovens mulheres da
classe popular, a possibilidade de satisfacao amorosa, de ter acesso a
um novo estilo de vida e a uma mudanca no rumo de seus destinos. Assim,
os romances de Corin Tellado, ao mesmo tempo em que tornavam
possiveis sonhos de intensidade emocional, colocavam esta mesma mulher,
em situacao de dependencia do homem provedor, presa a esfera domestica,
destinada a cuidar dos filhos e da casa (Costa, 2005).
Cabia, pois, a mulher, contribuir para a construcao de um espaco
privado acolhedor, protetor, que se contrapusesse a subjetividade,
dificuldades e frustracoes da vida cotidiana publica, a qual, ela nao
deveria fazer parte. Quando, em Carolina, a protagonista pensa em se
separar do marido, devido a ciumes infundados de ambas as partes
(principal razao dos desentendimentos dos casais em Corin Tellado), e
procura sua mae, apos uma discussao na qual foi estapeada, a mae nega a
possibilidade de separacao, afirmando que o sofrimento fazia parte da
vida das mulheres, e aconselhando-a a nao ser tao provocadora dos
instintos primitivos dos homens. Essa era, para Corin Tellado, a formula
para o casamento burgues bem sucedido, a ser seguido pelas mulheres
populares deste periodo.
A ordem do coracao e o conformismo social
O prazer na leitura de Corin Tellado parece, assim, derivado da
habilidade da narrativa em negociar e resolver as desigualdades de poder
nas relacoes de genero atraves do triunfo do matrimonio que supera toda
e qualquer adversidade. (Radway, 1987). Segundo Mattelart (1982), nas
historias romanticas esta "ordem do coracao" invalida qualquer
forma de luta contra as desigualdades sociais, apesar de sua existencia
ser admitida, porque difunde a ideia de que somente o amor ultrapassa
barreiras. Nao somente a solucao e individual--nunca coletiva--mas esta
sempre ligada a um milagre. O amor passa a ser a explicacao universal
que resolve as contradicoes sociais, negando-as.
Neste sentido, a nocao do amor romantico, se presta, ao controle e
vigilancia sobre as praticas consideradas inapropriadas pela ordem
dominante vigente no Brasil. Este controle era exercido pelas familias,
pelos puritanos e moralistas com o objetivo de cercear as possibilidades
de movimento ou mudanca dos individuos, regular suas relacoes de
intimidade, exigir deles autocontrole e impor restricoes as satisfacoes
sexuais e sentimentais. A obra de Corin Tellado parece revelar uma
estrutura conformista, baseada no uso de certa estrutura melodramatica,
herdada do folhetim, que se centra na construcao/ solucao dos obstaculos
que separam um par romantico heterossexual. Nesse sentido, o romance
parece ser uma forma dramatica cujo enredo sentimental sacrifica
caracterizacoes por extravagantes incidentes, fazendo sensacionais
apelos as emocoes que terminam sempre em licoes morais. As personagens,
nessa optica, sao tomadas por suas emocoes violentas, dentro das quais
parece nao haver lugar para a reflexao, para o distanciamento
intelectual ou para a relativizacao.
Estes romances expoem praticas morais particulares que distanciam
seu publico alvo dos movimentos de liberacao sexual tolerados nas
sociedades democraticas. Ao contrario, tais enredos propagam ideais de
romance e amor que reforcavam certo comportamento sexual que compactuava
com interesses politicos e religiosos, em especial, os da Igreja
Catolica, aliada tanto do franquismo quanto do militarismo brasileiro,
pelo menos, em seus primeiros anos, continuando a ser uma referencia
para a sociedade brasileira, durante todo o periodo de excecao pelo qual
o pais passou.
A leitora decente deveria encontrar uma forma de negociar suas
concepcoes de amor, sexo, casamento com uma so pessoa, que deveria ser
do sexo masculino, de preferencia, honesto, trabalhador e cumpridor de
seus deveres sociais. Entre esses deveres, cumprir o que manda a lei,
parecia ser o maior deles, o que servia, de forma, seminal aos ditames
do regime. Se nao fossem partidarios desse comportamento, eram tratados
como licenciosos, e rapidamente, passavam a pertencer ao grupo de viloes
da trama. Assim, as pessoas decentes deveriam compreender os limites
dessa fronteira, utilizando-se das armas de um codigo moral hipocrita
que as governava. Quem nao estava dentro dessas fronteiras, era
denominada de divorciada, mae solteira e/ ou prostituta e jamais
apareciam nestes romances, nem sequer em posicao secundaria.
Assim, os romances cor de rosa contribuiam para o governo militar
reconstruindo o Brasil. Os textos ficcionais estavam ali para refletir
as virtudes da nova classe media, e para preservar estas virtudes. Suas
experiencias deveriam ser adaptadas a partir dos moldes estabelecidos
pelo regime. Neste contexto, os romances alcancaram seus objetivos. Os
finais felizes, entre pessoas de bem belas e bem sucedidas, serviam para
mascarar a miseria do pais, para aqueles que nao estavam sendo
beneficiados pelo milagre economico. Ao mesmo tempo em que a energia
sexual dos individuos era sublimada, o controle ideologico e etico da
Igreja e do Estado estava preservado.
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Roberta Manuela Barros de Andrade
Professora dos Cursos de Ciencias Sociais, Historia, Geografia e
Servico
Social da UECE/CE/BR
manubarros@secrel.com.br
Erotilde Honorio Silva
Professora do Curso de Comunicacao Social da UNIFOR/CE/BR
eroh@unifor.br