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文章基本信息

  • 标题:Family influence in the family company/"O avo constroi, o pai usa e o neto morre de fome": historias de familia em uma organizacao/"El abuelo construyo, el padre usa yel nieto se muere de hambre": historias de familia en una organizacion.
  • 作者:Carrieri, Alexandre de Padua ; Lopes, Fernanda Tarabal
  • 期刊名称:Revista de Gestao USP
  • 印刷版ISSN:1809-2276
  • 出版年度:2012
  • 期号:January
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Faculdade de Economia, Administracao e Contabilidade - FEA-USP
  • 摘要:O presente estudo aborda o tema das organizacoes familiares e tem como objetivo analisar a relacao entre familia e organizacao, tendo como pano de fundo as historias da familia tecidas concomitantemente com o desenvolvimento da empresa.
  • 关键词:Family;Family corporations;Family-owned business enterprises;Family-owned businesses

Family influence in the family company/"O avo constroi, o pai usa e o neto morre de fome": historias de familia em uma organizacao/"El abuelo construyo, el padre usa yel nieto se muere de hambre": historias de familia en una organizacion.


Carrieri, Alexandre de Padua ; Lopes, Fernanda Tarabal


1. INTRODUCAO

O presente estudo aborda o tema das organizacoes familiares e tem como objetivo analisar a relacao entre familia e organizacao, tendo como pano de fundo as historias da familia tecidas concomitantemente com o desenvolvimento da empresa.

E importante destacar a relevancia do estudo sobre tais organizacoes. Segundo Macedo (2002), as empresas familiares brasileiras representam cerca de 90% das empresas nao estatais nacionais e sao responsaveis, em grande medida, pela absorcao de mao de obra, pela geracao de empregos, pela sustentacao da economia e pelo aquecimento do mercado do pais. Em nivel mundial, as organizacoes familiares respondem por cerca de 90% dos negocios.

Dada sua importancia, as organizacoes familiares vem sendo estudadas mediante abordagens conceituais e metodologicas diversificadas. Observa-se uma gama de trabalhos concentrados nas tematicas de questoes sucessorias, economicas, financeiras, funcionais e evolutivas. No entanto, escassos sao os trabalhos realizados sobre aspectos sociais, culturais, simbolicos, politicos, emocionais, relacionais, enfim, sobre as dinamicas subjacentes a esse tipo de organizacao (DAVEL; COLBARI, 2003).

Portanto, o traco singular dessa modalidade de organizacao nao seria justamente a onipresenca de dimensoes humanas influenciando o seu ritmo e logica de funcionamento? Entao, porque nao focalizar outros conteudos e abordagens conceituais e metodologicas para o estudo daquilo que essas organizacoes poderiam fornecer de original a teoria organizacional? (DAVEL; COLBARI, 2003:2).

Os autores citados preconizam o desenvolvimento de estudos sobre organizacoes familiares pautados na abordagem sociocultural e na relacao entre familia e organizacao, que permitem revelar aspectos da dinamica organizacional caracterizados pelas particularidades da instituicao familiar. Tal perspectiva leva em conta diversos fatores, como emocao, poder e cultura, e permite captar o modo pelo qual os significados, crencas, valores, simbolos e formas de exercicio do poder e de manifestacao da dominacao sao instituidos no ambito da familia. Os autores explicitam tambem dimensoes das organizacoes familiares ainda pouco estudadas e que necessitam de maior aprofundamento sob uma perspectiva sociocultural, tais como as dimensoes temporal, emocional, politica, discursiva, linguistica, etnica e de genero. Tais dimensoes estao inseridas tanto na vida familiar quanto no funcionamento das organizacoes.

As pesquisas que adotam um referencial sociocultural preconizam a dinamica entre organizacao e familia, aprofundando a relacao entre esses dois universos e favorecendo a compreensao da complexa relacao entre grupos sociais movidos por interesses e valores distintos, mas que se fundem. Permitem o entendimento "da familia e da empresa como instancias produtoras de significados, crencas, valores e simbolos e como local tanto de experiencia emocional e sentimental quanto do exercicio de poder e de dominacao" (DAVEL; COLBARI, 2003:12).

Nessa perspectiva de estudos insere-se a proposta deste trabalho, que busca refletir sobre a relacao familia e negocio, e sobre as possiveis repercussoes de tal uniao em ambas as esferas. No ambiente da organizacao familiar, mescla-se o papel profissional, racional e objetivo com o papel familiar, indissoluvel, carregado de afetividade, decorrente das respectivas historias de vida. Temse ai o traco singular dessa modalidade de organizacao: a onipresenca de dimensoes humanas influenciando seu ritmo e logica de funcionamento (DAVEL; COLBARI, 2003), caracteristica sobre a qual se debruca este trabalho de investigacao.

Para aprofundar a discussao sobre a relacao familia--organizacao, este trabalho resgatou as historias de vida de membros da familia que trabalham ou trabalharam na empresa abordada. O foco da analise foi desvelar a relacao estabelecida entre o sujeito e a organizacao, observando a influencia dos lacos familiares nessa relacao. A organizacao familiar na qual se inserem os sujeitos do estudo esta localizada em Minas Gerais e celebra atualmente seus 85 anos de existencia.

Para orientar as reflexoes construidas neste trabalho, seguem-se as consideracoes teoricas, que versam sobre os conceitos de organizacao familiar, familia e vinculo. Posteriormente, apresentam-se algumas consideracoes sobre a metodologia utilizada, seguidas da analise das historias dos sujeitos. Ao final, sao tecidas as consideracoes finais do estudo.

2. ORGANIZACOES FAMILIARES: PALCO DA INVESTIGACAO

Segundo Lodi (1998), empresa familiar e aquela em que a sucessao da diretoria esta ligada ao fator hereditario e cujos valores institucionais identificam-se com um sobrenome de familia ou com a figura de um fundador. Para Bernhoeft (1989), e aquela que possui sua origem e historia vinculadas a uma familia. Goncalves (2002) esclarece que o que de fato caracteriza a empresa familiar e a coexistencia de tres situacoes:

A empresa e propriedade de uma familia, detentora da totalidade ou da maioria das acoes ou cotas, de forma a ter o seu controle economico; a familia tem a gestao da empresa, cabendo a ela a definicao dos objetivos, das diretrizes e das grandes politicas; finalmente, a familia e responsavel pela administracao do empreendimento, com a participacao de um ou mais membros no nivel executivo mais alto (GONCALVES, 2002:7).

Para Lima (1999), as relacoes familiares e profissionais das pessoas envolvidas com essas empresas interpenetram-se continuamente. "Ha uma constante sobreposicao entre as pessoas que constituem a familia e os socios da empresa, dando origem a uma permanente articulacao de distintos valores, comportamentos, sentimentos e formas de accao" (LIMA, 1999:88). Dessa forma, nessas organizacoes as pessoas se unem nao apenas por interesses economicos, mas tambem por uma rede densa de relacoes familiares. Segundo o autor, tal situacao e vista como desconfortavel, uma vez que a maioria das pessoas precisa manter um comportamento estritamente profissional no trabalho, apesar de estar em uma empresa familiar. No entanto, o autor afirma que a analise das acoes dessas pessoas mostra contradicoes em tais afirmacoes.

Em estudo que realizou com grandes empresas familiares portuguesas, Lima (1999) observou que os codigos, valores, atributos e atitudes da familia sao perpetuados na empresa como concepcoes de valor central da harmonia e da ordem, representadas por ideais de respeito e obediencia ao pai e obediencia das mulheres. Tais concepcoes sao centrais nas grandes familias da elite empresarial portuguesa. Outra caracteristica dessas empresas e sua perpetuacao como uma manutencao dinastica e como sustentacao de relacoes ativas entre os membros de familias alargadas; a empresa atua como fonte de uniao entre parentes distantes, mais ate, muitas vezes, do que a propria relacao de parentesco. Questoes de genero tambem estao presentes nas empresas portuguesas. Os homens sao os mais desejados para a continuacao dos negocios, enquanto as mulheres desempenham papeis exclusivamente familiares. A participacao de acionistas femininas nas empresas familiares e pequena. Quando ocorre, as mulheres costumam exercer papeis de menor responsabilidade, corroborando um sistema cultural que atribui primazia simbolica aos homens, porque e centrado no patriarcalismo e na autoridade masculina, e no qual homens e mulheres sao educados para assumir papeis diferentes: aqueles, para serem os sucessores do negocio; estas, para serem "gestoras familiares".

No Brasil, verificam-se posturas semelhantes ante a questao do genero. Em estudo realizado em empresas familiares gauchas (GRZYBOVSKI; BOSCARIN; MIGOTT, 2002), observou-se que a gestao feminina ainda sofre preconceitos e discriminacao, alem de outras barreiras a sua presenca nos negocios. A pesquisa demonstrou que as gestoras, ao trabalharem no negocio familiar, conduzem a empresa como se esta fosse sua familia, relacionando sentimentos de amor e missao familiar com a organizacao. Alem disso, assumem a empresa por se considerarem a base da familia, de forma que seus desejos e/ou sonhos pessoais sao colocados em segundo plano, para o progresso da empresa e a estabilidade da familia. Dessa forma, e nitida a inter-relacao entre sentimentos pessoais e sentimentos profissionais. Nas organizacoes familiares, "as relacoes economicas estao imersas em relacoes de parentesco de uma maneira que torna dificil saber quais prevalecem" (LIMA, 1999:110). Ainda assim, busca-se separar as esferas negocios e familia, anulando-se essa realidade.

Mas nem sempre foi assim. Vida familiar e vida produtiva comungavam dos mesmos espacos nas sociedades pre-industriais, constituindo-se em realidades entrelacadas. O advento da Revolucao Industrial, no entanto, trouxe consigo um aumento da racionalizacao economica, que acabou por separar a esfera produtiva empresarial da esfera familiar. Essa separacao refletiu-se tambem nas formas de organizacao do trabalho. O trabalho artesanal passou a ser substituido pelo trabalho mecanizado. A racionalidade da "visao cientifica da administracao" buscou neutralizar qualquer influencia da familia na vida organizacional (DAVEL; COLBARI, 2003).

2.1. Familia e organizacoes familiares: contextualizacao e evolucao

Engels (1975) aborda a evolucao da familia segundo uma perspectiva historica. Como exemplo, cita formas primitivas de familia em que "cada filho tinha varios pais e maes", dentre varios arranjos familiares que entram em contradicao com o que se tem concebido atualmente como unico e natural. O autor demonstra que, com o passar do tempo, as relacoes sexuais se tornaram mais estaveis. Do matrimonio por grupos evoluiu-se para a monogamia--fruto da concentracao de riquezas e do desejo de sua transmissao apenas para os filhos -, que esta relacionada as condicoes economicas e de propriedade. Engels afirma que a familia nao permanece estacionaria, constituindo-se em um fenomeno social. O autor defende que "a familia deve progredir na medida em que progrida a sociedade, que deve modificar-se na medida em que a sociedade se modifique; como sucedeu ate agora. A familia e produto do sistema social e refletira o estado de cultura desse sistema" (ENGELS, 1975:91).

Nessa perspectiva, Sarti (2004) afirma que a familia se configura como um mundo de relacoes, mas que estas costumam se uniformizar no discurso social vigente. O discurso social tende a conceber um modelo unico e cristalizado de familia, socialmente instituido pelos dispositivos juridicos, medicos, psicologicos, religiosos e pedagogicos, enfim, os dispositivos disciplinares existentes na sociedade. Esse modelo encontra-se fortemente ancorado numa visao de familia como unidade biologica constituida segundo as leis da "natureza". No entanto, a autora alerta para a necessidade de conceber a familia "como uma realidade de ordem simbolica, que se delimita por uma historia contada aos individuos e por eles reafirmada e ressignificada, nos distintos momentos e lugares da vida familiar, considerando a relacao da familia com o mundo externo" (SARTI, 2004:11). E necessario atencao a singularidade do grupo familiar. Cada familia assimila o discurso oficial culturalmente instituido de forma particular, devolvendo ao mundo social sua imagem, filtrada pela singularidade. "Cada familia constroi sua propria historia, ou seu proprio mito, entendido como uma formulacao discursiva em que se expressam o significado e a explicacao da realidade vivida, com base nos elementos objetiva e subjetivamente acessiveis aos individuos na cultura em que vivem" (SARTI, 2004:13).

A familia constitui-se como importante instancia de socializacao. Berger e Luckmann (1985) enfatizam que a primeira socializacao, ou socializacao primaria, ocorre por intermedio da familia. A socializacao corresponde a introducao do individuo na sociedade, ou em parte dela. A socializacao primaria diz respeito a primeira forma de socializacao experimentada na infancia, por meio da qual o individuo se torna membro da sociedade. E quando a realidade e interiorizada, ou seja, quando acontecimentos de outrem (pais, responsaveis, etc.--a familia) se tornam significativos para o individuo, e este apreende o mundo como uma realidade social. Nesta etapa, o individuo "assume" o mundo no qual os outros ja vivem; um mundo que, uma vez "assumido", pode ser modificado ou ate recriado--"a crianca interioriza o mundo dos pais como sendo o mundo, e nao como o mundo pertencente a um contexto institucional especifico" (BERGER; LUCKMANN, 1985:188). No entanto, os autores enfatizam que dessa assuncao de mundo nao decorrem problemas de identificacao, visto que nao ha possibilidade de escolha de outros arranjos. "Temos que nos arranjar com os pais que o destino nos deu" (BERGER; LUCKMANN, 1985:180). A socializacao primaria torna o individuo um membro efetivo da sociedade; dalhe uma personalidade, um mundo.

Carrieri (2005) afirma que a familia e conferida a socializacao primaria, para adequar os individuos aos papeis e padroes sociais, introjetando neles nocoes de ordem e autoridade que irao atuar na formacao da personalidade individual. Nesse sentido, a familia atua "mapeando" comportamentos desejaveis e indesejaveis em um processo de controle e ajustamento social. Dessa forma, a familia representa um elo intermediador entre o individuo e a sociedade, utilizando aspectos afetivos e emocionais na configuracao de um padrao moral e socialmente aceito.

No entanto, essa interiorizacao da sociedade nunca e total, nem jamais esta acabada, o que remete a outras formas de socializacao, como a socializacao secundaria, que corresponde aos processos subsequentes a socializacao primaria e pela qual o individuo se socializa em novos setores de sua sociedade. Corresponde a interiorizacao de "submundos" institucionais ou baseados em instituicoes. Relaciona-se a aquisicao, direta ou indireta, do conhecimento de funcoes especificas, que tem raizes na divisao do trabalho. Dubar (1997) afirma que os processos da socializacao secundaria podem ou nao concordar com aqueles desenvolvidos na socializacao primaria. Dessa forma, varios casos sao possiveis, desde a vivencia em concordancia com o "mundo vivido" pelos membros da familia de origem, com os saberes construidos anteriormente, ate a transformacao radical da realidade subjetiva construida durante a socializacao primaria, com a possibilidade de mudanca social.

E de facto, gracas a transformacao possivel das identidades na socializacao secundaria que se podem por em causa as relacoes sociais interiorizadas ao longo da socializacao primaria: a possibilidade de construir outros "mundos" para alem daqueles que foram interiorizados na infancia esta na base do sucesso possivel de uma mudanca social nao reprodutora (DUBAR, 1997:99).

Beninca e Gomes (1998) afirmam que a familia, sendo um organismo mutavel, que transforma e e transformado pela sociedade, abre espaco para a mudanca social. Destacam, no entanto, que a instituicao familiar tambem se caracteriza por buscar a manutencao de seus valores vigentes. Dessa forma, configura-se na familia um movimento permanente de oposicao entre valores e regras da heranca familiar (leis internas) e valores e regras da urgencia do tempo presente (leis externas). Para os autores, encontrase ai o drama da sucessao familiar: a diversidade dos valores e comportamentos atuais e a luta entre geracoes pela estabilizacao da identidade:

[...] os pais preocupam-se com a transmissao dos seus valores como forma de projetar sentido e justificacao as suas vidas. Os filhos, ao contrario, querem estabilizar seus proprios valores recorrendo a estrategias compativeis com as modernidades tecnologicas, demograficas e politicas (BENINCA; GOMES, 1998:178).

Alem de configurar-se como importante instancia de socializacao e controle social, a familia se apresenta como fonte motivadora e condicionadora do individuo no processo produtivo. Separada da vida produtiva pelo advento da Revolucao Industrial, a configuracao familiar tornou-se marcada tambem pelo modelo nuclear, com familia de tamanho reduzido e forte autoridade paterna. Esse modelo

[...] torna-se estrategico na sustentacao de uma acao moralizadora de contingentes populacionais errantes que precisavam ser transformados em disciplinados operarios de fabrica e responsaveis provedores de familia. [...] O "familialismo" funcionou como uma "tecnologia politica" de intervencao no tecido social, produzindo os "suportes ideologicos, morais e simbolicos" necessarios a imposicao de um padrao disciplinar requerido pela sociedade industrial (DAVEL; COLBARI, 2000:47).

Alem disso, importa destacar os aspectos emocionais envolvidos na ligacao familiar. Apesar de sua contribuicao e insercao na racionalidade do industrialismo, a familia constitui local de formacao de fortes lacos marcados por solidariedade, afetividade, seguranca e estabilidade, dentre outros fatores, o que a caracteriza de forma dualistica, ou seja, ela oscila entre, de um lado, o conflito, a competicao e a desagregacao, e, de outro, a ordem, a estabilidade e a cooperacao. A dimensao afetiva acaba, muitas vezes, por dissimular outras dimensoes da familia como instancia de poder, de disputa e de competicao. Tambem a afetividade da vida familiar reflete-se em questoes relacionadas a cultura da organizacao e aos padroes de gestao do trabalho, incluindo-se as relacoes de poder (DAVEL; COLBARI, 2000).

Deve ser lembrado que a familia e um pequeno grupo social, no qual sao desenvolvidos os sentimentos mais fortes que possam marcar um ser humano: amores e odios; as empatias e as repugnancias criadas em aparente subjetividade; a proximidade e a rejeicao; a protecao castradora e a indiferenca; e, muito especialmente, a inveja. Esse mundo familiar, povoado por forcas ocultas e alguns fantasmas, pode ser transferido para o mundo da empresa, quando inevitavelmente os resultados serao lamentaveis (GONCALVES, 2000:11).

Esse aspecto dual da instancia familiar, caracterizada, de um lado, pelo pilar da racionalidade do progresso civilizatorio e, de outro, pela afetividade inerente aos lacos parentais, e fundamental para a compreensao das relacoes nas organizacoes familiares.

3. CAMINHOS PERCORRIDOS

Este trabalho consistiu em um estudo de cunho qualitativo e teve como metodo de investigacao a pesquisa em historia de vida. A historia de vida permite captar o modo pelo qual os individuos fazem a historia e modelam sua sociedade, sendo tambem modelados por ela. Neves (2001) cita como importantes fontes de dados os depoimentos de historias de vida, as entrevistas tematicas e as entrevistas de trajetorias de vida. Os primeiros constituem depoimentos aprofundados que buscam reconstituir, por meio do dialogo, a historia de vida do sujeito desde sua infancia ate os dias atuais. As entrevistas tematicas focam experiencias ou processos especificos, ou podem constituir-se em desdobramentos dos depoimentos de historia de vida. As trajetorias de vida sao depoimentos de historias de vida mais sucintos e menos detalhados. Para Barros e Silva (2002), as historias de vida ajudam a ultrapassar os limites das historias oficiais. Como ressalta Bosi (2003), historia que se apoia apenas nos documentos oficiais "nao pode dar conta das paixoes individuais que se encontram atras dos episodios" (BOSI, 2003:15).

As historias de vida compreendem o tempo recomposto pela memoria (GAULEJAC, 2005). Dessa forma, o "contar sua vida" consiste em um encadeamento de recontares, de modo que fantasia e realidade, objetividade e subjetividade, lembranca real e lembranca transformada se misturam, tornando dubitavel o que e verdadeiro e o que e falso, distincao que nao e passivel de vir da narrativa ela mesma. "O homem resiste a ver a realidade como ela e; ele ama travesti-la de acordo com seus desejos, com seus medos, com seus interesses ou sua ideologia" (GAULEJAC, 1996:4, trad.). No entanto, se convem diferenciar real e imaginario, nao se pode perder de vista que o imaginario e tambem a realidade e abre uma possibilidade de sentidos, de significacoes, de direcoes e de explicacoes. Alem disso, o que se busca em um relato de vida nao e um espelho do social, mas sim a forma pela qual o individuo se apropria dele projetando sua subjetividade. Nesse sentido, ao pedir ao sujeito que conte sua historia, o que se busca e compreender o universo do qual ele faz parte a partir de seu ponto de vista, ou seja, de sua subjetividade em relacao aos fatos sociais. Na historia de vida, e o sujeito que ocupa o lugar central do que se conta (BARROS; SILVA, 2002).

Entrar na complexidade de uma vida e analisar o conjunto das influencias, mais ou menos contraditorias, com as quais o sujeito foi confrontado no curso de sua existencia. Como ele "fabricou" para si uma identidade propria a partir de sua identidade familiar e social [...]. Como ele foi produzido pelas multiplas contradicoes que atravessaram a historia de seu grupo de pertencimento, de sua familia, de sua existencia; contradicoes externas de seu meio de vida, mas igualmente contradicoes internas na medida em que ele interioriza o mundo ao qual ele pertence (GAULEJAC, 1996:4, trad.).

Os relatos recolhidos nos depoimentos de historias de vida foram analisados pela tecnica da analise linguistica do discurso. A escolha pelo uso da analise do discurso como ferramenta metodologica deve-se as suas possibilidades analiticas na pesquisa qualitativa. Para Gonzalez Rey (2005), na pesquisa qualitativa e de grande importancia a compreensao do processo de comunicacao e do processo dialogico, visto que o homem permanentemente se comunica nos diversos espacos sociais em que vive. Tal enfase deve-se ao fato de que grande parte dos problemas sociais e humanos se expressa, de modo geral, na comunicacao das pessoas, de forma direta ou indireta. A comunicacao e uma via privilegiada para compreender os processos subjetivos que caracterizam os sujeitos, assim como as diversas condicoes objetivas da vida social que afetam o homem. Dessa forma, por meio do entendimento da comunicacao, busca-se compreender as diferentes formas de expressao simbolica utilizadas pelo sujeito, que constituem vias para o estudo de sua subjetividade.

Na analise do discurso, destacam-se as relacoes que a linguagem mantem com a ideologia. Fiorin (2005) afirma que "uma formacao ideologica deve ser entendida como a visao de mundo de uma determinada classe social, isto e, um conjunto de representacoes, de ideias que revelam a compreensao que uma dada classe tem do mundo" (p. 32). Essa visao de mundo reproduz-se por meio do discurso. As formacoes ideologicas ganham existencia nas formacoes discursivas, ou seja, na linguagem, entendida em seu sentido amplo de instrumento de comunicacao verbal e nao verbal. Desse modo, a formacao discursiva deve ser compreendida, a fim de se depreenderem as determinacoes ideologicas que nela se materializam. Para tanto, faz-se necessaria a compreensao da estrutura discursiva.

Para tal compreensao, e fundamental o entendimento de duas dimensoes: a interdiscursividade e a intradiscursividade. Todo discurso e atravessado pela interdiscursividade, uma relacao multiforme com outros discursos, em geral, categorias de oposicao. O discurso remete a uma concepcao que e construida e a uma oposicao desta concepcao. Faria propoe "a oposicao como categoria para analise das relacoes entre o intradiscurso e o interdiscurso; essa categoria analitica permite, a partir de um dado discurso, caracterizar o outro discurso, a outra 'visao de mundo' em oposicao a qual aquele discurso dado se constitui" (FARIA, 2005:257). Para perceber o contexto interdiscursivo no qual o texto se insere, deve-se tomar como base o intradiscurso presente na narrativa, ou seja, a trajetoria de sentidos que sao desenvolvidos ao longo da narrativa; tais trajetorias configuram-se como os percursos semanticos. Na percepcao dos percursos semanticos e importante desvelar os temas e figuras observados, bem como aspectos explicitos, implicitos e silenciados no decorrer do discurso, alem das estrategias argumentativas da sintaxe discursiva. O entendimento dessas relacoes e importante para compreender o discurso em profundidade. Esses elementos serao resgatados para a analise das historias.

Destaca-se que a dimensao discursiva e resgatada neste trabalho como uma perspectiva da subjetividade (expressada nas historias de vida), como producao essencial desta, sem, no entanto, desconsiderarem-se outras dimensoes do subjetivo e tampouco a capacidade geradora e critica do sujeito individual em relacao aos aspectos discursivos em que transita (GONZALEZ REY, 2005).

4. CONTEXTUALIZACAO DA ORGANIZACAO

A organizacao em estudo, denominada aqui de Empresa Metalurgica, foi fundada em 1924. Possui 85 anos de existencia e membros da quinta geracao em sua direcao. O fundador e um imigrante italiano, que veio para o Brasil, juntamente com a esposa, em 1883, a procura de melhores condicoes de vida. Inicialmente trabalhou na construcao de rodovias; posteriormente, atuou na construcao de altosfornos. Chefiou a construcao de um alto-forno de estrutura de pedras, o primeiro da America do Sul, localizado no interior mineiro. Com o tempo, vislumbrou a possibilidade de montar um negocio com os filhos nesse segmento, dando origem a empresa Irmaos Ferreira. (1) Comecou a fabricar pecas e implementos para o pequeno agricultor, como arados, debulhadores, engenhos para moer cana, trempes para fogao, dentre outros (produtos fabricados ainda hoje, "por honra da casa").

Durante a gestao dos filhos do fundador, a empresa sofreu processos de alteracao societaria e entraram na empresa pessoas que nao eram da familia. A empresa passou a se chamar Ferreira e Cia. Em 1947, os socios "resolveram ficar somente com o alto-forno e a respectiva jazida de minerio de ferro e vender a parte de fundicao mecanica. Foi entao que surgiu a Fundicao Ferreira S/A (2)", que voltou a ser propriedade exclusiva da familia. Nesta empresa permaneceu o ultimo remanescente dos irmaos Ferreira, liderando a fundicao com tres de seus filhos (netos do fundador). Estes permaneceram e se tornaram os tres unicos socios do negocio por um longo tempo, tido como epoca aurea da organizacao. Cada um possuia o capital de 27%, 51% e 22% das acoes, do mais velho para o mais novo, respectivamente. Os filhos destes socios tambem foram para a empresa (bisnetos do fundador), e hoje apenas a familia do neto, que tem o maior numero de acoes (51%), permanece na gestao do negocio. Com o desligamento dos irmaos/socios minoritarios da empresa, os familiares relacionados a eles tambem acabaram se afastando. Tal desligamento ocorreu ha cerca de dez anos e se deu, em relacao ao neto mais velho, por motivos de saude e, ao outro, por ele ter se demitido. Posteriormente, suas acoes foram vendidas aos familiares que permaneceram no negocio.

Localizada no interior de Minas Gerais, a empresa evoluiu sua producao de pecas ao pequeno agricultor para uma linha de pecas pesadas, fornecendo produtos para fiaria e industrias de maquinas e equipamentos. A empresa, hoje denominada Metalurgica Ferreira (apesar de ainda ser conhecida popularmente pelo nome anterior), e referida como locomotiva, comboio ferroviario que percorre os trilhos da historia. (3) Produz cerca de "350 toneladas/mes de fundidos, atendendo principalmente ao mercado de Sao Pedro. Fabrica, dentre outros produtos, lingoteiras, mandaris e carcacas de motores eletricos, mantendo, tambem, a tradicao na fabricacao de produtos agricolas (4)". A empresa conta com 108 funcionarios diretos e e hoje liderada pela bisneta do fundador, que ocupa o cargo de diretora-presidente, e por seu filho, o tataraneto, que ocupa a posicao de vicepresidente.

A atual gestao optou por manter-se a frente da empresa diante da grande crise que esta enfrentava e que quase culminou com sua venda. Na tentativa de reerguer o negocio, compraram as cotas dos outros familiares e submeteram a empresa a um processo de profissionalizacao. Empresa tradicional e de familia tradicional na regiao, enfrentou variadas crises economicas nacionais e internacionais, passando por diversas conjunturas politicas, desde a ditadura militar ate a abertura do pais ao mercado internacional em governos mais recentes. Os problemas enfrentados pela empresa sao evidenciados na utilizacao de lexemas como batalha, luta e dificuldade.

Por sua longevidade e historia, a empresa apresenta grande insercao na comunidade em que se insere, sendo descrita como uma "empresa do povo", tendo em vista a simplicidade e popularidade dos membros da familia envolvidos na epoca de sua fundacao. A imagem do fundador e ainda hoje cultuada. Na entrada da empresa, encontra-se um busto com sua figura. A imagem e reforcada por mais dois quadros com retratos do fundador e de um de seus filhos, localizados na sala de recepcao. Alem disso, a historia da organizacao foi recentemente materia de capa e narrada em uma recente edicao do "jornalzinho" de circulacao interna, onde tambem constam fotografias de membros representantes de cada geracao.

As imagens do fundador (busto, fotografias, "jornalzinho") encontradas na empresa refletem e reafirmam sua historia, reforcando seus valores. Para Faria (2004), a institucionalizacao do mito fundador ocorre como uma tentativa de justificar as acoes e decisoes tomadas pelos dirigentes em nome de sua missao original definida na fundacao. Alem disso, cria-se uma unidade entre os sujeitos e os grupos que irao se identificar afetivamente com a organizacao, partilhando sentimentos de afeicao e amor relacionados ao vinculo social.

5. AS HISTORIAS

Foram entrevistados os membros da familia que nao trabalham mais no negocio e tambem aqueles ainda atuantes. Nao houve abertura para entrevistas com funcionarios que nao fossem membros da familia, fato que nao prejudicou a analise, pois nao era esse o foco do estudo em questao. Da terceira geracao, foram entrevistados dois dos socios que compunham a sociedade entre os netos do fundador: o antigo diretor-presidente, possuidor de 51% das acoes, Antonio (5), 75 anos, que ha pouco cedeu a presidencia a filha e aposentou-se; e Marcos, 72 anos, proprietario anterior de 22% de acoes na empresa e que ha cerca de oito anos pediu demissao e tambem se aposentou. O outro irmao/socio nao pode ser entrevistado, pois se encontra com idade avancada e com problemas de saude. Tambem desta geracao foi entrevistado o cunhado dos irmaos, Mateus, que ainda trabalha na organizacao como funcionario, nao possuindo cotas. Na quarta geracao, entrevistou-se Beatriz, que sucedeu seu pai, tem 51 anos e e a diretora-presidente atual, e Bruno, 45 anos, que se desligou da empresa ha cerca de oito anos. Tambem foi entrevistado o filho de Beatriz, Pedro, de 26 anos, membro da quinta geracao, que vem sendo preparado para a sucessao e ocupa atualmente o cargo de vicepresidente. Segue abaixo uma arvore genealogica resumida, onde consta a posicao dos entrevistados na disposicao da familia, e tambem um quadro com descricoes dos sujeitos.

[FIGURE 1 OMITTED]

As falas dos entrevistados remetem a tematicas e figuras recorrentes utilizadas pelos sujeitos. Inseridos no percurso semantico do trabalho, podem-se depreender os seguintes temas: "entrada na empresa e trajetoria profissional", "trabalho feminino", "profissionalizacao" e "familia".

Sobre a entrada na organizacao, as historias sao divergentes. Beatriz e Pedro, a geracao mais nova, apesar de frequentarem a empresa desde novos, ingressaram nela durante/apos o curso superior. Dessa forma, eles se inseriram na empresa assumindo cargos de maior responsabilidade, tanto na area fiscal quanto no desenvolvimento de projetos especificos.

Ja a entrada da antiga geracao ocorreu na adolescencia, por volta dos 16, 17 anos. Mateus comecou a trabalhar na organizacao a convite de Antonio. Apos quatro anos de trabalho na empresa, casou-se com a irma de Antonio e Marcos, a decima segunda neta do fundador, e passou entao a fazer parte da familia. Esses sujeitos ingressaram em cargos operacionais, como office-boy, e evoluiram para cargos de direcao/gerenciais. O trabalho na empresa e considerado praticamente o unico exercido por eles em toda a vida. A entrada de Bruno ocorreu da mesma forma, uma excecao em relacao a geracao mais nova, Beatriz e Pedro. Bruno ingressou na empresa aos 9 anos de idade trabalhando na limpeza, como faxineiro. Ao longo do tempo, progrediu em cargos na empresa, passando da faxina e servicos na producao para a faxina do escritorio, servicos no almoxarifado e contabilidade, ate chegar ao setor financeiro, onde permaneceu na diretoria financeira ate o momento de sua saida. Destaca-se que a socializacao primaria (BERGER; LUCKMANN, 1985), experimentada na infancia, ocorreu juntamente com o trabalho na empresa, o que certamente solidificou ainda mais o significado das experiencias ali vivenciadas pelo sujeito.

Eu entrei no mais baixo escalao. Quando eu entrei la, desculpa a expressao, mas eu limpava privadas para a producao. Eu tinha 9 anos. Foi uma sugestao que foi dada pelo meu pai, para eu comecar de baixo. Na epoca eu achei ate um pouco esquisito "Po, o dono, diretor do negocio, vai me tacar limpando privadas la na producao?" E hoje eu agradeco ele muito por isto, por ter me colocado la. E eu fui de faxineiro a auxiliar de producao, ou seja, carregar caixa, carregar ferramentas, limpar a area, varrer a area, para turno de producao. Pe no chao mesmo, para fazer as caixas. Se voce conhece producao, sabe que e uma coisa muito suja, muito pesada, ambiente muito poluido, e eu amei essa colocacao la. Agradeco muito ao meu pai por isto ate hoje. E, continuando meu processo, eu fui para a mecanica. Ficava cortando os vergalhoes dos ferros no auxilio a producao e virava implementos de alguns produtos la, agricolas, dentre outras pecas. Anos depois passei para o escritorio, como faxineiro tambem do escritorio e fazendo almoxarifado, guardando papeis e coisas organizacionais. Depois, eu ja estava comecando com contabilidade, curso tecnico de contabilidade, passei no auxiliar, no contador, na digitacao, nos dados, nos balancetes diarios, no diario razao [...]. Depois fui para o caixa, auxiliar do caixa, tesoureiro, depois passei para caixa, depois passei para area financeira, fui assumindo a gerencia financeira, depois diretoria financeira. Quando chegou na diretoria financeira, eu me desliguei. Isto ai compreende dos 9 anos de idade ate o ano de 99/2000. [BRUNO].

Sobre os motivos do ingresso na empresa, destacam-se fortemente a influencia familiar e o desejo de realizar um trabalho semelhante ao das figuras da familia. A admiracao pelo pai/avo esta presente na fala dos entrevistados Beatriz e Pedro, que expressavam, desde a infancia, vontade de ir trabalhar na empresa. Alem disso, e percebido tambem o "problema da tradicao" como motivador da entrada no negocio da familia.

[...] uma admiracao incrivel pelo trabalho que meu pai fazia aqui. A gente era pequenininho e de vez em quando meu pai nos levava pra ver o negocio, e eu achava aquilo fascinante, sabe? [...] Eu tinha um orgulho tao grande do trabalho que meu pai fazia [...] Puxa vida, isso era tudo que eu queria ser. Aquilo mexia comigo, me criava uma emocao tao grande que de pequenininha eu ja pensei: "E isso que eu quero fazer." Pronto. [BEATRIZ]

Eu morava ha muito tempo com meu avo. Desde os 15 anos, eu fiquei um bom tempo morando com meu avo. [...] E meu avo era acionista majoritario, controlador da empresa. Entao, eu sempre vivi, mesmo na infancia eu vinha muito aqui, nem que fosse para ficar pentelhando ai, para brincar e tal. Entao eu vivi muito esse ambiente da empresa [...], entao eu sempre vivi muito ligado ao ambiente da empresa. Entao, isso ai favoreceu que eu fosse crescendo ja com o objetivo de um dia trabalhar la. [...] Por essa convivencia muito grande com a empresa e essa proximidade com meu avo, sempre tinha na cabeca: um dia eu vou trabalhar na Ferreira. [PEDRO]

Ainda sobre os motivos da entrada na organizacao da familia, o discurso de Bruno aparece como excecao. Em oposicao ao depoimento de seus familiares, relaciona sua entrada na empresa a questoes de ambito financeiro/racional, apontando fatores como interesse e curiosidade na area mecanica e no funcionamento do maquinario, e vontade de ganhar "um trocadinho". Questoes relacionadas a familia sao silenciadas na fala do entrevistado quando o mesmo aborda a tematica de sua insercao na empresa, apesar de ele ter sido o filho mais envolvido nela, o que demonstra uma tentativa de anulacao dos conflitos psiquicos de ordem familiar/subjetiva.

Ao longo da trajetoria na organizacao, destacase a intensa relacao dos entrevistados com a empresa. Pelo fato de este ter sido praticamente o unico trabalho dos entrevistados, observa-se o forte laco emocional deles com a organizacao e o trabalho executado.

Mas a minha vida inteira foi aqui dentro. [BEATRIZ]

Deus no ceu, minha familia e a empresa na terra. [MATEUS]

Antonio e a alma da empresa. A vida dele foi Fundicao Ferreira. [...] A vida dele foi pela empresa. [PEDRO]

Para Lima (1999), a intensa relacao dos entrevistados com a organizacao e o sentimento de familia para com o trabalho na empresa garantem a continuidade do negocio no tempo, o que e observado na organizacao, que possui 84 anos de existencia. O autor ressalta que e como se a empresa se tornasse parte integrante da familia, a reificacao de sua unidade, o simbolo de sua identidade. A empresa atua como objeto de transmissao familiar que da continuidade ao legado da familia (CARRETEIRO; FREIRE, 2006).

A tematica do trabalho feminino e recorrente no discurso de Beatriz e de seu pai, Antonio, sobre sua posicao atual na diretoria da empresa. Essa posicao e encarada com dificuldade pelo pai, pois, alem se tratar de uma mulher, seu desejo inicial era de que seu unico filho homem assumisse a lideranca da organizacao. Segundo Antonio, a empresa sempre foi gerida por homens, fato que indica relacoes de poder e genero na organizacao. A transicao da presidencia para a filha, na realidade, so ocorreu quando seu neto, Pedro, entrou na empresa, o que evidencia relacoes de desigualdade e poder na relacao de genero, que remetem, no interdiscurso, a uma situacao de desvalorizacao do trabalho feminino. Alem disso, destaca-se a entrada de Pedro na empresa, que a relaciona com sentimentos de admiracao e identificacao com o trabalho do avo, sem mencionar o trabalho da mae.

[...] o meu pai continuou, como sempre, a frente, nao querendo deixar o pepino na mao da gente, achando que a gente nao ia dar conta, principalmente por eu ser mulher. O eleito dele era o unico filho homem, mas que se interessou por outros negocios, ne, saiu. Ai, nesse processo de crise, o meu filho mais velho veio trabalhar comigo ao meu chamado, como eu, que desde os treze anos pedi pra trabalhar com meu pai. "Ainda vou ser presidente da empresa!" [...] Entao, pra mim foi um pouco mais dificil. Filha de pai descendente de italiano, filha mulher, pai italiano quer por as filhas todas debaixo, proteger do mundo. Entao, eu fui muito superprotegida. Queria aprender, queria fazer, queria ousar. E foi um processo de muita insistencia mesmo pra poder assumir esse posto. Mas quando ele viu que meu filho vinha comigo, tava ali, ai ele resolveu descansar. "Nao, a Beatriz nao vai estar sozinha. Tem um homem do lado dela". Ai meu pai se retirou. [BEATRIZ]

Observa-se no discurso dos entrevistados, com destaque para as falas de Beatriz e Marcos, que o tema da profissionalizacao e algo necessario a sobrevivencia das empresas familiares. A divergencia sobre a necessidade de profissionalizar a empresa e apontada por Marcos como fonte de conflitos entre ele e seus socios. Segundo o sujeito, nao houve, por parte de seu irmao socio majoritario, uma preparacao adequada para a sucessao, o que incluiria a profissionalizacao do filho. Alem disso, alega que familiares eram contratados pela empresa nao por meritos profissionais. Questoes relacionadas a tematica "profissionalizacao" tambem sao percebidas no discurso de Bruno. Sua ideia era dividir a empresa, na epoca propriedade e sob gestao de seu pai e dos dois tios, em tres segmentos, um para cada familia. Seu objetivo com a divisao era minimizar o impacto do grande numero de familiares na administracao da empresa, alem de poder recomecar com um novo negocio, que estaria ainda na primeira geracao.

Pelo fato de uma empresa, pelo meu entendimento, nao comportar tantas pessoas. Se todo mundo almejar, pelo fato de estar numa mesma situacao, almejar o mesmo cargo, que nao existe. [...]. Tentei dividir a empresa, dividir em fundicao leve, fundicao pesada, mecanica e carpintaria, que daria os tres segmentos, um para cada familia, e fazer uma holding administrativa para tocar o negocio, e ai eu acho que nao teria problema nao. Seria a primeira geracao pegando uma empresa, cada um em um segmento [...]. Tem um ditado japones que voce deve conhecer bem, "O avo constroi, o pai usa e o neto morre de fome", algo mais ou menos assim [...]. Entao eu acho que isto e certo, que nem no neto nao chega. Na segunda geracao a coisa ja complica muito e o neto vai herdar so divida, a segunda gera um patrimonio e nao tem ambiente saudavel para poder administrar. A terceira, com certeza, vai morrer de fome. [BRUNO].

O tema "familia" e evidenciado em diversas passagens dos discursos dos entrevistados. Observam-se narrativas que defendem a ideia de que as relacoes parentais inseridas na organizacao sao prejudiciais ao negocio e podem tambem abalar o convivio fora da organizacao. Tambem se destaca a questao da inter-relacao do papel profissional com o papel familiar e das dificuldades em concilia-la:

[...] um dos maiores problemas da empresa familiar e que voce tem medo de tomar decisoes em prol da empresa e comprometer os lacos familiares. [...] empresa familiar tem muitas vantagens, mas tem problemas [com os quais tem que se saber lidar]. Eu tenho tres filhos. Gracas a Deus, os outros dois escolheram areas de atuacao diferentes.

[...] E administrar a carencia de mae, ah, como e que fala? A necessidade da empresaria, ne?! [...] Voce entra no contexto para poder administrar os afetos que sao tao importantes para a gente tambem. Ainda mais mae e filho, pai e filha. [BEATRIZ].

As vezes, tinha que tomar alguma decisao seria em beneficio da empresa, as vezes, tinha ate que protelar para conseguir uma opiniao para nao machucar a familia, porque, as vezes, voce machuca alguem da familia e vai la dentro, reflete em toda a familia, ne? Entao, nesse aspecto eu nao era rapida para decidir, eu demorava. Tinha decisoes que tinham que ser tomadas imediatamente, e eu demorava por causa da familia. [ANTONIO].

Outra dificuldade relacionada a influencia dos lacos familiares na gestao da empresa refere-se as diferencas de poder entre os irmaos na organizacao, fato que culminou com o pedido de demissao de Marcos da empresa. Tais diferencas referem-se ao fato de Antonio ser o socio majoritario entre os irmaos. Com 51% das acoes, ele tinha o dominio no processo decisorio da empresa. Nessa situacao e tendo que "bater de frente" com o irmao nas decisoes, que frequentemente apresentava opinioes divergentes, Marcos resolveu desligar-se do negocio. Por causa do acumulo de estresse, teve ate mesmo de passar por cirurgias. Segundo ele, o desligamento foi preferivel a ter de presenciar maiores conflitos na familia.

Eu nao queria tambem ter nenhuma diversidade com familiares, irmaos ... Se fossem pessoas a parte, eu tornava o caldo, via o que que acontecia, se vendia, comprava, tal ... Mas nao e, nao. E o caso de familiar. Voce, no meu entender, eu prefiro deslocar do que criar um problema. [MARCOS].

Em contrapartida, e expresso o desejo de que a empresa continue sendo gerida pela familia, fato que pode ser corroborado nao apenas pela fala dos entrevistados, mas tambem pela esquiva dos sujeitos em vende-la no periodo da crise. Marcos, mesmo demonstrando descontentamento com sua saida da empresa, expressa sua vontade de que a organizacao permaneca na familia. Dessa forma, podem-se perceber indicios positivos na relacao com a propriedade familiar, o que remete a oposicao intradiscursiva positividade versus negatividade da familia na empresa.

Porque e uma tradicao. E um nome centenario, que a gente gostaria que ficasse vinculado aos futuros netos e bisnetos mesmo fora da atividade. Mas aquilo foi um marco da familia. [MARCOS].

[...] para que ela continuasse mais anos, mais tempo na mao da propria familia ne!? [...] para que a empresa possa ser gerida pela familia durante anos e anos, ne!? [ANTONIO].

Destaca-se na fala de Beatriz, quando aborda um fato ocorrido com seu irmao, a existencia de conflitos na relacao com a familia no trabalho. Tal ideia e percebida implicitamente na fala abaixo, quando Beatriz se refere aos dizeres do irmao, que afirma nao querer passar pelo que o pai passou.

Meu irmao [...] um dia, ele veio a falar comigo em reuniao: "O dia que eu assumir a presidencia, eu vou te demitir". Falei: "Uai, por que, meu irmao? Porque eu nao tenho problema nenhum de trabalhar com voce". E ele falou assim: "Mas eu tenho. Eu nao quero passar pelo que meu pai passou". [BEATRIZ].

O abandono de Bruno do negocio, o entao indicado sucessor, revela facetas de uma situacao conflituosa que nao e explicitada diretamente pela fala do proprio sujeito. Pelo discurso de Beatriz e Marcos, depreende-se que sua nao vinculacao relaciona-se com desgastes no ambiente de trabalho. Bruno relaciona sua saida as dificuldades em conciliar a multiplicidade de interesses dos diversos familiares envolvidos no negocio, que nao se mostraram dispostos a fazer a divisao da empresa como ele propos. Dos filhos de Antonio, membros da quarta geracao, tres trabalharam na empresa: seu unico filho homem e duas filhas. As outras filhas assumiram profissoes diferentes do trabalho industrial: uma e medica e as outras duas sao bailarinas. Beatriz e a unica que ainda permanece no negocio. A outra, formada em Engenharia, trabalhou por um periodo, mas desligou-se da organizacao ha mais de vinte anos, pois se casou e mudou para outro municipio com o marido. Ja o filho abandonou a organizacao ha cerca de oito anos por motivos conflituosos relatados nas falas dos entrevistados, mas silenciados na fala do proprio sujeito.

A vinculacao dos sujeitos a organizacao e explicitada nos discursos por questoes afetivas relacionadas ao vinculo familiar. Tal afirmacao se confirma nos motivos de ingresso dos sujeitos no negocio, nas falas recorrentes de admiracao pelos gestores parentes e, por fim, na metafora da empresa como uma familia, utilizada pelos sujeitos na expressao de seus sentimentos de afeto em relacao a organizacao. O controle social exercido na metafora da empresa como uma grande familia e na incursao de sentimentos de afetividade no ambito da racionalidade do trabalho torna-se um "um meio eficaz de submeter e alienar o individuo a organizacao" (FARIA; SCHMITT, 2007:42). Para Carrieri (2005), o familialismo promove uma maior identificacao do trabalhador com a organizacao. As bases dessa relacao "estariam nas relacoes pessoais do fundador para com os empregados, de cunho afetivo e subjetivo (confianca, amizade, carisma, etc.) e que proporcionariam aos membros tornarem-se cumplices em relacao a organizacao e seus valores" (CARRIERI, 2005:15).

[Familia (palavra que define a organizacao). [...] Entao e como se fosse uma familia, e uma extensao da minha casa. [...] [PEDRO].

A gente desligou a pessoa, mas o coracao nao desliga. [...]

E um coracao metalurgico que pulsa dentro da cidade ha anos. [ANTONIO].

Alem disso, destaca-se o fato da saida de Marcos da organizacao, que ocorreu em razao do desgaste das relacoes societarias com os irmaos devido a conflitos relativos as diferencas de forcas na propriedade do capital. Os conflitos pelo poder na empresa entre os irmaos/socios culminaram com a nao vinculacao do sujeito a organizacao, fato expressado com emotividade em razao do grande apego desenvolvido por ele ao trabalho no negocio da familia, unico emprego que possuiu: "Eu so trabalhei na empresa". Alem disso, sua saida foi reforcada pela decisao de evitar maiores conflitos com a familia, o que fortalece a afirmativa acima da preponderancia de vinculos familiares no trabalho. Por fim, destaca-se que a saida de Marcos da organizacao ocorreu por questoes relacionadas ao socio/irmao, mantendo intima relacao nao apenas com questoes racionais relativas a diferencas societarias, mas com conflitos de trabalho que vinham sendo levados para o ambito familiar, e vice-versa. Apos o pedido de demissao da empresa, Marcos organizou para si e os filhos um empreendimento rural no setor pecuario e de hotelaria, no qual ainda hoje atua.

A saida de Bruno da organizacao e relatada pelo sujeito como tendo sido devida a conflitos de interesses relacionados ao grande numero de familiares (irmaos, tios, primos) inseridos na gestao do negocio. Pelo fato de os entes nao aceitarem a divisao do negocio proposta, o entrevistado resolveu abandonar a empresa, pois visualizou que la "nao ia dar certo", segundo ele, por motivos como esse, alem das dificuldades encontradas no cenario politico-economico mundial em crise. A ocorrencia de relacoes conflituosas e silenciada em seu discurso e parcialmente relatada na fala da irma, conforme ja mencionado. Mesmo assim, a influencia da familia e corroborada neste caso, visto que o sujeito se ausenta em razao do elevado contingente de familiares no negocio. Sobre sua saida, alega que "esta muito ligada ao objeto da entrevista, ou seja, a empresa familiar". Ainda assim, a analise dos fatos leva a conclusao de que relacoes conflituosas nao estao ausentes neste caso. Bruno era o unico filho homem do entao socio majoritario. Marcos afirma que Antonio fez todos os esforcos na organizacao para que seu filho o sucedesse, ainda que este nao tivesse preparo para tanto. Ele anuncia conflitos em relacao ao fato:

Ele (Antonio) tinha muitas filhas, mas era assim maioria mulher, todas mulheres e um homem. E essa sucessao, ele confiava que o filho homem desse conta de dar a ele uma tranquilidade de sustentar um capital maior. Tanto que ele colocou ele com toda a forca la dentro sem o garoto estar preparado de forma nenhuma. [...] Ele nao tinha nenhum preparo pra isso, era o dono da verdade, da informacao. [...] Entao, hoje o filho dele ... Ele chegou depois que eu sai, chegou a conclusao que realmente, acho que ate os proprios familiares recomendaram que ele nao permanecesse, nem na empresa ele nao esta hoje mais. Mas no periodo que eu estava foi uma situacao muito dramatica por causa dessa confianca, porque o pai dava toda a forca para que aquele menino o sucedesse, o unico homem da filiacao. [MARCOS].

Outra questao de destaque refere-se ao modo como Bruno ingressou na organizacao. Ainda crianca, passou por diversos setores da empresa, desde aqueles puramente operacionais, como faxina e producao, ate o cargo de alto executivo na diretoria financeira. E importante destacar que a socializacao desse sujeito ocorreu vinculada ao trabalho fabril, visto sua insercao na empresa ainda na infancia. Dessa forma, ha indicios de que sua socializacao primaria estaria intrinsecamente relacionada ao trabalho na empresa, pois ainda garoto ja estava presente na organizacao. Considerando-se a socializacao primaria como bastante arraigada e constitutiva da formacao da personalidade do individuo (BERGER; LUCKMANN, 1985), nao ha como nao refletir sobre o "drama" que tal saida pode ter representado. Alem disso, Berger e Luckman (1985) tambem se referem a "imposicao" da socializacao primaria, em que os sujeitos, sem possibilidades de escolha, assumem o mundo arranjado pelos pais. Nesse caso, o individuo e socializado primariamente na empresa, o que caracteriza uma socializacao solidificada e uma possivel interiorizacao deste mundo como sendo o mundo, o unico caminho. Tal fato e reforcado na fala de Bruno, quando trata de seu filho e da possibilidade de ele trabalhar na empresa familiar: "Eu nao falaria nada [...]. Uma das coisas que eu tenho e nao predeterminar um passo de um filho meu, que seja um terceiro, que me peca opiniao". Dessa forma, ha indicios de que sua trajetoria na organizacao teria sido predeterminada por outra pessoa--no caso, o pai. A socializacao primaria atua como instancia de controle, tendo em vista que introjeta no individuo nocoes de ordem e autoridade que irao mediar comportamentos desejaveis e ajustamento social (CARRIERI, 2005). Nesse sentido, o fato de o filho ter sido inserido na organizacao ainda com 9 anos reforca essa perspectiva.

Tambem ha que destacar a estranheza que a atitude do pai causou em Bruno quando este era crianca--"Mas eu limpava privadas para a producao, eu tinha 9 anos. Foi uma sugestao que foi dada pelo meu pai para eu comecar de baixo. Na epoca, eu achei ate um pouco esquisito: 'Po, o dono, diretor do negocio, vai me tacar limpando privadas la na producao'?". Tal estranheza pode estar relacionada a condicao socioeconomica elevada da familia, que na epoca desfrutava dos anos aureos da organizacao. Ou seja, o filho do dono, rico, vai trabalhar na faxina. Apesar de hoje o sujeito afirmar que "agradece ao pai por isso", nao ha como negar possiveis repercussoes do fato na subjetividade do sujeito.

Aliados a tais reflexoes, somam-se a longa permanencia de Bruno na empresa e o fato de esta ter sido praticamente seu unico local trabalho ate sua saida, fatos que influenciaram na formacao de sua identidade e na centralidade dessa ocupacao em sua vida. Enfim, o silenciamento sobre relacoes conflituosas no discurso do sujeito e tambem no de seu pai Antonio (sujeito envolvido diretamente em sua historia) nao exclui o fato de que elas estavam presentes. Ao sair da empresa, Bruno montou seu proprio negocio: inicialmente, uma loja de artigos religiosos; em seguida, uma distribuidora e, atualmente, e tambem proprietario de uma editora. O entrevistado considera-se um empreendedor nato, caracteristica herdada da familia Ferreira. Dessa forma, sua saida relacionase com questoes que remetem ao ambito familiar.

6. REFLEXOES FINAIS

O estudo buscou demonstrar, por meio das historias apresentadas, a relacao entre familia e organizacao. A influencia familiar pode ser percebida na entrada dos sujeitos na organizacao, no fato de que os mesmos relacionam esse ingresso a sentimentos de admiracao pelos familiares que trabalham na empresa e por sua historia, incorporando seus valores e comportamentos. Essa situacao tambem remete ao trabalho na empresa e a propria organizacao, objeto de transmissao familiar, cuja continuidade garante a permanencia do legado da familia e a manutencao de lacos entre os familiares (CARRETEIRO; FREIRE, 2006; LIMA, 1999). De forma similar, a permanencia e a saida dos sujeitos tambem sao marcadas pelas relacoes familiares. No primeiro caso, disposicoes afetivas, relacionadas ao amor e ao sentimento de familia para com a organizacao, sao apontadas. A saida dos sujeitos da organizacao tambem e fortemente marcada pela dimensao familiar. Nesses casos, a relacao conflituosa de trabalho na empresa e transferida para o ambito familiar, e vice-versa, fazendo com que tais sujeitos abandonem a organizacao. Tambem se destacaram os conflitos de gestao ligados as atividades do trabalho na empresa. No entanto, mesmo nessas situacoes eram evidentes as influencias do tecido familiar, que aparentou estar indissociavel da vida organizacional.

Acredita-se que este estudo contribui para o debate sobre empresas familiares, visto que se debruca sobre aspectos da instituicao familiar. E importante pensar a familia em seus aspectos simbolicos, nos valores e historias reafirmadas e ressignificadas nos distintos lugares e momentos da vida familiar (SARTI, 2004). Cabe a familia a socializacao primaria, aquela na qual o individuo se torna membro da sociedade, interiorizando valores, normas, regras e padroes de conduta, que irao atuar na formacao da personalidade individual (BERGER; LUCKMANN, 1985; CARRIERI, 2005). Tal socializacao e permeada de aspectos afetivos e emocionais, que vao se arraigar fortemente nas subjetividades dos individuos e manter relacao com estagios de desenvolvimento subsequentes, como a socializacao secundaria, na qual o individuo experimenta novos submundos institucionais, com raizes na divisao do trabalho, podendo ou nao romper com os saberes anteriormente construidos. Tem-se aqui um dos aspectos paradoxais da empresa familiar--a sobreposicao de processos de institucionalizacao e desenvolvimento, que ocorrem praticamente de forma concomitante nos sujeitos envolvidos. Como no caso estudado, os membros da familia inserem-se no cotidiano da organizacao ainda criancas, em estagios iniciais de desenvolvimento e processos de institucionalizacao. Circunstancias com as quais os individuos tradicionalmente se deparam em situacoes mais avancadas de suas historias, como sua introducao no mundo do trabalho, sao interiorizadas pelos sujeitos em etapas iniciais de suas vidas, ainda no processo primario. Os valores relacionados a empresa tornam-se para esses sujeitos tao fortemente arraigados quanto aqueles relacionados a familia em si. As historias destacadas nesta investigacao ilustram as repercussoes dessa constatacao nas subjetividades dos sujeitos, nos vinculos por eles estabelecidos com a empresa e na trama da propria organizacao, que tem sua historia enredada por tais acontecimentos.

Por fim, este trabalho indica que, para compreender as organizacoes familiares, e fundamental desprender-se de analises pautadas apenas na racionalidade instrumental, e voltar-se para a compreensao da relacao social. Nessa perspectiva, a pesquisa almejou contribuir com o que Davel e Colbari (2003) denominam de "perspectiva sociocultural". Este enfoque so foi possivel porque se preconizou a subjetividade dos individuos, compreendida como uma dimensao do sujeito imanente as suas individualidades e fundamental para a compreensao do trabalho humano.

DOI: 10.5700/rege 448

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(1) Sobrenome ficticio da familia.

(2) Informacoes obtidas de pesquisa sobre o inicio e penetracao da siderurgia na regiao (1977), encontrada em documentos do acervo pessoal da familia.

(3) Informacoes obtidas do "jornalzinho" de circulacao interna da empresa (ano 1, edicao 3, fev. 2007).

(4) Informacoes noticiadas em veiculo de comunicacao local sobre aspectos economicos do municipio (ano III, n. V, maio 2003).

(5) Foram utilizados nomes ficticios para todos os entrevistados.

Alexandre de Padua Carrieri

Professor Titular do CAD/Face/UFMG--Belo Horizonte-MG, Brasil Coordenador do NEOS--Nucleo de Estudos Organizacionais e Sociedade. Doutor em Administracao pelo Cepead/UFMG. Pesquisador Produtividade do CNPq E-mail: Alexandre@cepead.face.ufmg.br

Fernanda Tarabal Lopes

Psicologa. Doutoranda em Administracao pelo CEPEAD--Centro de Posgraduacao e Pesquisas em Administracao da Universidade Federal de Minas Gerais--Belo Horizonte-MG, Brasil Mestre em Administracao pelo CEPEAD E-mail: fernandatarabal@hotmail.com

Recebido em: 15/1/2010

Aprovado em: 17/9/2010
Quadro 1: Descricao dos entrevistados

Beatriz                             Pedro

51 anos                             26 anos

                                    Graduacao em
                                    Direito. Pos-
                                    Graduacao
                                    em
Graduacao em                        Controladoria e
Administracao de Empresas.          Gestao
Pos-Graduacao                       Empresarial e
em Gestao da                        MBA em
Qualidade                           Direito da Economia da

                                    Empresa
                                    (ambos em
                                    curso)

Diretora-
                                    Vice-Presidente
Presidente

28 anos de                          7 anos de
trabalho na                         trabalho na
empresa                             empresa

Fonte: Elaborado pelos autores.

Beatriz                             Antonio           Mateus

51 anos                             75 anos           63 anos

Graduacao em
Administracao de Empresas.          Tecnico em        Graduacao em
Pos-Graduacao                       Contabilidade     Economia
em Gestao da
Qualidade

                                                      Diretor-
                                                      Presidente da
                                    Diretor-          Fundicao
Diretora-
                                    Presidente        (antiga
Presidente                          (aposentado)      empresa).
                                                      Coordenador da
                                                      area esportiva

28 anos de                          60 anos de        46 anos de
trabalho na                         trabalho na       trabalho na
empresa                             empresa           empresa

Fonte: Elaborado pelos autores.

Beatriz                             Marcos             Bruno

51 anos                             72 anos            45 anos

Graduacao em
Administracao de Empresas.          Tecnico em         Graduacao
Pos-Graduacao                       Contabilidade      em
em Gestao da                                           Economia
Qualidade

Diretora-                                              Diretor
                                    Diretor            Financeiro
Presidente                          (aposentado)       (antes do
                                                       afastamento)

                                    50 anos
28 anos de                          aproximadamente    28 anos de
trabalho na                         de trabalho na     trabalho na
empresa                             empresa            empresa

Fonte: Elaborado pelos autores.
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