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  • 标题:The protagonist's discourse in Juliano Pavollini by Cristovao Tezza: a parallactic structure?/O discurso do protagonista em Juliano Pavollini, de Cristovao Tezza: uma estrutura em paralaxe?
  • 作者:Silva, Marisa Correa ; dos Santos, Estela Pereira
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2016
  • 期号:January
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa

The protagonist's discourse in Juliano Pavollini by Cristovao Tezza: a parallactic structure?/O discurso do protagonista em Juliano Pavollini, de Cristovao Tezza: uma estrutura em paralaxe?


Silva, Marisa Correa ; dos Santos, Estela Pereira


Introducao

O narrador de Juliano Pavollini, de Cristovao Tezza (2002), e autodiegetico, conta a propria historia, assumindo a representacao de todos os aspectos que a caracterizam; no entanto, trata-se de um narrador nao onisciente, pois tem visao limitada dos fatos ocorridos e, alem disso, faz uma reencenacao dos momentos de surpresa. O protagonista narra, de um presente suposto, o passado ocorrido. No plano da narracao, Juliano esta na cadeia, cumprindo pena pela morte de Isabela, a prostituta que o acolheu em Curitiba. Juliano relata a sua historia a Clara, psicologa que acompanha seu caso, mas faz comentarios nos quais esclarece ao leitor que contou a historia de maneira a interessar Clara, a quem deseja seduzir.

Juliano 'vive versus conta', isto e, vivenciou determinados momentos, porem conta-os de maneira a permitir ao leitor a suspeita de que essa 'memoria' seja diferente do que realmente aconteceu. Dessa forma, ja se instaura uma forma de 'paralaxe' (termo que sera discutido detalhadamente adiante) pelo fato de haver no plano da narracao (que rememora) uma distorcao com implicacoes no plano da narrativa (que, em tese, seria um fato), o que, possivelmente, trata-se de opcao narrativa. Resta indagar o que e buscado com a utilizacao desse recurso, que efeito(s) ele cria no romance e na interpretacao do leitor. O 'viver versus contar', a distorcao da linguagem entre tempo vivido e tempo rememorado do narrar provoca estranhamento em um leitor atento: esse recurso do narrador causa uma distorcao de percepcao tanto da interpretacao quanto da personalidade do proprio Juliano, possibilitando duvidas quanto a confiabilidade da narrativa.

O discurso do protagonista: uma estrutura paralatica?

De acordo com Wayne E. Booth (1980), os narradores usam diversos recursos, a fim de manipular o leitor, dentre eles, a diferenca entre 'contar e mostrar'. Quando a narrativa demonstra a personagem agindo, ha efeito de verdade. Porem, quando alguem narra as acoes de uma personagem, elas podem ser distorcidas, apresentadas de maneira subjetiva. Booth estuda, fundamentalmente, de que maneiras um narrador pode 'falsificar' a historia contada.

Em A Visao em Paralaxe (2008), Slavoj Zizek empresta o conceito de 'paralaxe' da Fisica para referir-se a situacoes nas quais um mesmo objeto "[...] que existe la fora e visto a partir de duas posturas ou pontos diferentes [...]" (Zizek, 2008, p. 32) de maneiras totalmente irreconciliaveis. Ele pontua que

A definicao padrao de paralaxe e: o deslocamento aparente de um objeto (mudanca de sua posicao em relacao ao fundo) causado pela mudanca do ponto de observacao que permite nova linha de visao. E claro que o vies filosofico a ser acrescentado e que a diferenca observada nao e simplesmente 'subjetiva', em razao do fato de que o mesmo objeto que existe 'la fora' e visto a partir de duas posturas ou pontos de vistas diferentes (Zizek, 2008, p. 32)

E com base nessa ponderacao que se pode pensar que o personagem Pavollini tenha sido construido, provocando um efeito paralatico: no texto, ha, pelo menos, tres versoes possiveis dele. Em um primeiro momento, ha o Juliano inocente, vitima da pobreza e do destino, possivelmente o mais comum na interpretacao dos leitores. Trata-se de um pobre menino vindo do interior que, durante a viagem a Curitiba, no onibus, conhece Isabela, que o acolhe, cria, alimenta e da-lhe um lar. No bordel de Isabela, o menino sente-se seguro, pois vive em relativo conforto. Juliano, inclusive, fala do lar que Isabela lhe deu, no qual foi instalado em um sotao (onde imperava uma imensa e absurda cama com dossel vermelho), intuindo vagamente que seu mundo ia agora alem dos limites vagamente impostos pela familia que abandonara, mas sentindo-se protegido pela primeira vez na vida:

Que me interessavam os limites? Eu estava livre, era o que supunha. Nao sei se Clara concordara, mas para uma crianca e apenas a sensacao imediata que conta. Naturalmente, eu nao tinha ideia precisa de coisa alguma e mesmo me recusava a pensar--nem sabia se aquilo era um hotel. Que importava? Ninguem me disse ali que eu era culpado da minha febre. (Quem mandou sair na chuva sem camisa?) O Parente, as surras, a morte eram coisas de um mundo ja enterrado. Agora sim, aos dezesseis anos e dois dias, a vida era minha. A cama era confortavel, a protecao de Isabela era confortavel (Tezza, 2002, p. 35-36)

Para alem do jovem conduzido pelo acaso, temos o segundo Juliano, um assassino astuto e um calculista frio desde a mais tenra juventude que, depois condenado, percebe o interesse de sua psicologa por ele e tenta manipula-la. Juliano sabe que Clara, a psicologa, poderia ajuda-lo a sair da cadeia mais cedo, pois tinha, segundo ele, contatos e poderes na prisao. E tambem tem consciencia de que sua ambiguidade e atraente para ela:

Clara passou a me ver a cada quinze dias, atras das minhas paginas e de novas revelacoes, que ela anota criteriosamente. As vezes eu me vejo como Juliano, um outro, ela me diz-ha algo importante nisso, e eu nao sabia. Perdi outra inocencia. Minha palavra e minha seducao--a cada capitulo estou mais proximo da liberdade, Clara tem poderes no presidio (Tezza, 2002, p. 113)

O rapaz reconhece que sabe mentir em seus relatos: "Faco duas versoes de mim mesmo: para meu uso--gosto de escrever--e para Clara que gosta de ler" (Tezza, 2002, p. 168). Este Juliano manipulador, e que poderia ser plenamente culpado pelo crime que o levou a cadeia, e perceptivel a um leitor mais atento. Juliano sabe que Clara pode ajuda-lo a sair do presidio, por isso escreve o que deduz que a psicologa gostaria de ler, tentando seduzi-la-e o uso da palavra 'seducao' e proposital, uma vez que reflete tanto o interesse profissional da psicologa quanto a atracao de cunho sexual e/ou afetivo que ele poderia ou nao provocar nela, reencenando a sua situacao com a dona do bordel (que de fato o protegeu) e com a filha do advogado (que poderia ter sido seu passaporte para uma existencia burguesa). Quando o personagem diz que escreve duas versoes de si mesmo, surge a paralaxe na qual existem duas versoes de Juliano: o culpado e o inocente.

O terceiro Juliano distancia-se dos outros dois: seria um Juliano manipulado pelo autor, ou seja, de instancia autoral, que intelectualiza o menino/assassino, por meio da linguagem e de referencias literarias, mascarando, assim, as lacunas presentes na obra. Essa instancia narrativa persuade o leitor de que Juliano e realmente inteligentissimo. A terceira versao de Juliano surge por meio de suas frases filosoficas, leituras, reflexoes e poemas que escreve para Doroti, que Isabela pensa que sao para ela. Porem, tambem e evidente que tais producoes discursivas nao coadunam inteiramente com o Juliano garoto, o que provoca um novo estranhamento, causado pelo hiato linguistico-discursivo: uma paralaxe na estrutura narrativa, que pode ou nao ser proposital, tendo em vista o desejo do narrador, isto e, do proprio Juliano, que se afirma reiteradamente como mentiroso e diz, inclusive, que a mentira e, para ele, uma arte.

Ainda sobre a instancia autoral, Wayne E. Booth declara que "[...] a presenca do autor sera obvia sempre que ele entrar ou sair da mente dum personagem--quando << desloca o ponto de vista>>" (Booth, 1980, p. 34). E que o ato de proporcionar uma ficcao com visoes interiores, e nao so com deslocamentos que requerem ponto de vista, e uma intrusao do autor. "O autor esta presente em todos os discursos de qualquer personagem a quem tenha sido conferido o emblema de credibilidade, seja de que modo for" (Booth, 1980, p. 35). No trecho a seguir, e possivel observar a instancia autoral agindo a fim de justificar a precocidade intelectual do garoto:

No tempo vago, que era o dia inteiro, li todos os livros da gaveta, inclusive o Livro Proibido, que sempre me angustiava e acabava na culpa e no banheiro, e mais os livros que Isabela me trazia, meio que ao acaso, de modo que garanti uma formacao ecletica (Tezza, 2002, p. 76).

E importante destacar que, no periodo em questao, Juliano tem dezessete anos e que a instancia autoral insere, na narrativa, algumas cenas nas quais Juliano exibe suas leituras as mulheres do bordel, 'provando' sua inteligencia: obras literarias sao citadas, bem como nomes de pessoas importantes, marcos historicos sao referenciados, trechos de livros sao recitados, alem das frases com certo teor filosofico.

Narrador nao confiavel e seus efeitos

Essas tres versoes de um mesmo Juliano podem causar um certo distanciamento cetico por parte do leitor, que pode indagar se a linguagem culta e a tendencia reflexiva mostradas no discurso do narrador sao verossimeis para uma personagem tao jovem e que fez estudos esporadicos--o que potencializa a nao confiabilidade da narracao. Mas o discurso do narrador tenta postular as discrepancias como aceitaveis, para nao destruir o pacto ficcional com o leitor. Ainda assim, o efeito que esse recurso cria e uma especie de leitura paranoica, desestabilizando as possiveis 'verdades' textuais. O que leva a seguinte questao: ate que ponto o narrador-comentarista, que e o proprio Juliano, quando mais velho, preso e pagando por seu crime, e confiavel? Seria esse hiato linguistico um 'erro' da instancia autoral? Embora narradores cultos e capazes de utilizar a norma culta de forma elaborada sejam comuns em Tezza (como o filho do professor em Uma Noite em Curitiba), em Pavollini o hiato pode ser lido como uma reduplicacao formal da nao confiabilidade do narrador, enriquecendo o texto.

Relatar o acontecido, narrando um fato do passado em um tempo presente, implica trabalhar com o conceito e veracidade da historia, mesmo levando-se em conta que, ao narrar, nossa versao e posta de modo subjetivo. Segundo Zizek (2010, p. 27), "[...] o ato de relatar algo publicamente nunca e neutro: ele afeta o proprio conteudo relatado". Aqui entra em questao o hiato irredutivel entre o conteudo enunciado e o ato de enunciacao proprio do narrador. Com efeito, podemos afirmar que a narrativa e impregnada do ponto de vista subjetivo do narrador-personagem.

A partir da leitura de Booth, fica evidente que um narrador, mesmo heterodiegetico, pode contar outra versao dos fatos ocorridos, assumindo, assim, uma perspectiva paralatica da historia. Segundo ele, a instancia autoral e perceptivel, portanto, em tudo que seja identificado como toque pessoal: alusoes literarias, metaforas coloridas, mitos e simbolos. E afirma que "[...] um leitor esclarecido aperceber-se-a de que todos eles [os toques pessoais] sao impostos pelo autor" (Booth, 1980, p. 36). No entanto, parece-nos exagerado dizer que todos os toques pessoais sao impostos pelo autor de uma obra literaria, pois ha romances nos quais os toques pessoais remetem aos personagens e a sua constituicao especifica; no caso da obra Juliano Pavollini, contudo, a assercao de Booth se aplica, sobretudo, no que diz respeito as alusoes literarias e aos conhecimentos historicos atribuidos ao narrador-protagonista, que estao alem do que seria de se esperar de sua formacao, explicitando a dimensao autoral na tessitura textual.

Essa estrutura narrativa permite interpretacoes subjetivas: Juliano pode ou nao ser confiavel de acordo a interpretacao do leitor. Aqui e preciso recordar O amor impiedoso, no qual Zizek trata das formulas 'ele nao sabe, embora o faca' e 'ele sabe e, portanto, nao pode faze-lo', acrescentando o enunciado: 'ele sabe muito bem o que esta fazendo e, ainda assim, ele o faz'. A primeira formula diz respeito ao "[...] heroi tradicional e a segunda, o heroi do inicio da modernidade" (Zizek, 2012, p. 21). Ja a terceira formula cabem duas leituras distintas: de um lado

[...] e a expressao mais clara da atitude cinica de depravacao moral--'Sim sou um merda, traio e minto, e dai? A vida e assim!'; de outro lado, [...] pode representar tambem o oposto mais radical do cinismo, i. e., a consciencia tragica de que, embora aquilo que eu estou prestes a fazer tera consequencias catastroficas para meu bem-estar e daqueles que me sao mais proximos e caros, eu, nao obstante, simplesmente tenho que faze-lo, devido a injuncao etica inexoravel (Zizek, 2012, p. 21).

Nessas duas leituras, nao ha apenas a cisao entre bem-estar, prazer, lucro e a injuncao etica: "[...] ela pode ser tambem a cisao entre as normas morais que usualmente eu sigo e injuncao incondicional que eu me sinto obrigado a obedecer" (Zizek, 2012, p. 22). Ainda a respeito disso, o filosofo pontua que, nesse fazer, ha sempre um sacrificio a ser vivenciado, isto e, algo ou alguem acaba sofrendo as consequencias quando uma necessidade me faz trair a substancia etica do meu ser.

Nao e possivel afirmar categoricamente que Juliano e ou nao verdadeiro em seus relatos, pois a obra de Tezza deixa brechas para mais de uma interpretacao. A narrativa nao e fixa, mas mutavel: nela cabe mais de uma versao, seja a que inocenta Juliano e mostra-o como uma vitima da exclusao social e do destino ou a que evidencia que ele e, de fato, um manipulador e cinico assassino. Juliano pode ter agido inconscientemente, ou seja, cometeu erros: pode ter assassinado Isabela sem premeditacao ou mesmo em autodefesa, sendo, portanto, compativel com a versao do rapaz ingenuo; mas tambem pode ter agido cinicamente, consciente do que nao deve fazer; mesmo assim, ele o faz--o que seria assumir que suas acoes sao regidas pelo interesse calculado.

Nesse 'fazer' mencionado por Zizek, seja por falta de conhecimento das regras sociais ou falta de consciencia da etica, ha, frequentemente, um sacrificio a ser feito em funcao da acao. No caso, ha dois vitimizados, embora em diferentes graus: o nucleo formado por Doroti e pelo pai dela (e preciso observar que Doroti e reiteradamente descrita como filha de um advogado poderoso), que se envolvem em certo grau com o rapaz, tem a casa roubada, seu cachorro morto e quase sao enganados pela aparencia de bom moco ofertada por Juliano; e a dona do bordel, Isabela, assassinada logo depois de perder tudo o que tinha por vinganca de um examante e de ouvir de Juliano que este a estava abandonando. A escolha do rapaz em contar que ia deixa-la exatamente no momento em que ela nao pode mais oferecer-lhe abrigo e dinheiro pode ser interpretada de forma duplice tambem.

Na narrativa, Juliano da a entender que, em sua ingenuidade e obsessao por casar-se com Doroti, ele nao cogitou que receber essa noticia, naquele momento, seria cruel e aumentaria o desespero de Isabela; mas o leitor prevenido pode se perguntar se o rapaz nao aproveitou exatamente o que seria um instante de extrema fragilidade da mulher, privada de seu meio de vida, de seus amantes e protetores poderosos, para descarta-la de forma fria, com um discurso de gratidao escarnecedor. Juliano temia Isabela, pois conhecia seu temperamento forte e seu habito de comandar. Ambas as interpretacoes sao validas, de modo que cabe ao leitor assumir uma postura participativa, crendo ou nao na inocencia de Pavollini.

Nao e possivel dizer o que e verdadeiro na narrativa de Juliano, por conta de o narrador ser autodiegetico; alem disso, e parte dos ensinamentos de Lacan que toda verdade e parcial. Quando contamos uma historia, nao raro simplesmente a 'passamos a limpo'. E comum que fundamentemos nossas falas de acordo com a nossa aceitacao/interpretacao dos fatos. Ha todo um sistema de regras a seguir dentro de uma sociedade, desde regras gramaticais a regras que sao proibicoes conscientes, como a de cometer um assassinato, por exemplo. Portanto, quando falamos, nao simplesmente interagimos, mas operamos em nivel simbolico (no sentido lacaniano), no qual a fala e modelada de acordo com uma complexa rede de pressupostos; certas regras nos perseguem como proibicoes inconscientes, por isso e comum omitirmos fatos e/ou alterar versoes de uma historia. A realidade pode ser manipulada, ate inconscientemente, por toda uma serie de circunstancias complexas que afetam o curso de uma historia a ser contada. Depende da inteligencia do narrador e, tambem, dos acontecimentos imprevisiveis que podem confundi-lo ou confundir a nos, leitores.

Quanto ao protagonista, observemos que, apos matar Isabela, seja em legitima defesa ou por desejo de livrar-se dela, ele nao parece estar apto a lidar friamente com as consequencias do crime. Suas acoes subsequentes (confessar e pedir ajuda a Doroti) parecem fundamentadas numa esperanca impossivel, e seu relato parece demonstrar uma ausencia, momentanea ou inata, de calculo. Este 'demonstrar' pode ser ou nao forjado pelo personagem, pode ser ou nao uma verdade: ele pode ter subestimado Doroti, achando que a menina, apaixonada por ele, dispor-se-ia a ocultar o crime e obter para ele a ajuda do pai dela, advogado influente. Esses Julianos deslizam um sobre o outro e o proprio narrador hesita em definir-se. No trecho a seguir, inclusive marcado pelo proprio autor em italico, podemos constatar que Juliano nao e um personagem que se deixa fixar: 'Eu nao sou aquele Juliano', mas tambem nao sou outro. Ha um erro; ha alguma coisa faltando em alguma parte, e eu nao sei mais o que e. Eu nao posso ficar sozinho" (Tezza, 2002, p. 209).

Em relacao a essas possiveis interpretacoes mencionadas, fez-se importante consultar a fortuna critica a respeito de Juliano Pavollini, isto e, quais outras leituras dessa obra literaria foram feitas, a partir de quais perspectivas e teorias. Ate o presente momento, ha apenas o estudo de Rosse Marye Bernardi, intitulado Composicao e confissao--os dois processos de Juliano Pavollini (1990). Esse trabalho aborda o romance como sendo memorialista e caracterizado como autoconfissao, baseando-se em pressupostos teoricos de Mikhail Bakhtin. De modo geral, a pesquisa defende que o autor da obra cria "[...] o discurso de um outro, dotando este discurso de um conjunto de procedimentos esteticos que o fazem expressao de um ponto de vista especifico sobre o mundo" (Bernardi, 1990, p. 09), o que neutraliza a sua aparente caracteristica monologica. Assevera, ainda, que o processo composicional da obra e determinado "[...] pela intensa participacao do discurso do outro [...]" (Bernardi, 1990, p. 19), o que contribui para questionar o suposto carater monologico. Assim, sua pesquisa parte de questoes diversas das que subsidiam este artigo, o que demonstra seu carater inovador, tanto por estudar o romance que ainda nao foi largamente estudado quanto por estuda-lo pelo vies da 'paralaxe'.

Ato simbolico e liberdades (im)possiveis

Em relacao ao modo como Pavollini age, pode-se destacar que, conforme a teoria do 'ato simbolico', postulada por Zizek, ele encena situacoes a fim de estruturar versoes subjetivas dos fatos ocorridos. De acordo com o filosofo, o ato simbolico "[...] e mais bem concebido como um gesto puramente formal, autoreferencial, de autoafirmacao da propria posicao subjetiva" (Zizek, 2012, p. 140). E por meio dele que reafirmamos a nossa propria identidade. Encenar algum evento comum compartilhadamente faz com que a sua mensagem seja "[...] apenas a afirmacao puramente performativa" (Zizek, 2012, p. 140). Ele acontece quando o que e encenado/dito e o que reestrutura as coordenadas simbolicas da situacao do agente, ou seja, quando uma intervencao no curso da propria identidade do agente e modificada de maneira radical.

No romance de Tezza, o personagem Juliano encena para se autoafirmar enquanto agente da historia narrada, defender a si mesmo e mostrar quem ele e (mesmo que de maneira distorcida). Durante a narracao, as afirmacoes do personagem sao puramente performativas, pois a intencao primeira e estruturar todos os acontecimentos de forma subjetiva. O que nao podemos afirmar e, como ja mencionado anteriormente, se essas afirmacoes (sua versao) a respeito dos fatos acontecidos sao, de fato, radicalmente alteradas. A seguir, vejam o ato simbolico no trecho em que o narrador encena que sente falta de sua familia, de quem fugira:

Em pouco tempo nao se falou mais do meu passado; ninguem tocava no assunto. Eventualmente Isabela dizia: 'Voce deve sentir muitas saudades', e eu concordava, uma grossa mentira. Nao sentia saudade de nada. (Tezza, 2002, p. 76, grifo nosso).

Ao fingir ter saudades de sua vida antes de Curitiba, Juliano mantem a imagem de pobre menino, fruto das fatalidades do destino, que sonha em ter uma boa vida na capital, que teve problemas de cunho familiar e quer ganhar seu proprio dinheiro. Encena, e isso declaradamente, que sente saudades do que deixou para tras em sua vida, como a familia.

Esta questao sobre os atos meramente simbolicos de Pavollini nos leva as seguintes questoes: se o personagem faz encenacao dos fatos, se suas mensagens sao performativas e subjetivas, podemos dizer que ele e perverso? Faz-se importante mencionar que perverso, no sentido zizekiano, "[...] e conhecer as regras e agir deliberadamente como se elas nao existissem" (Silva, 2009, p. 213). E se Juliano e perverso, ele ignora as regras sociais propositalmente ou ele segue as regras obscenas do meio em que vive?

Antes de prosseguir com a analise, e importante destacar que, para Lacan, um perverso nao e definido, em si, pelo conteudo do que faz, mas "[...] reside na estrutura formal de como o perverso se relaciona com a verdade e a fala" (Zizek, 2010, p. 142). E ate que ponto nos somos livres e temos liberdade de escolha na sociedade em que vivemos? Para Zizek, a liberdade esta longe de ser um ato livre e tambem nao e o oposto de uma necessidade causal, mas "[...] ela significa um modo especifico de causalidade, autodeterminacao do agente [...]", todo sujeito e determinado "[...] por causas (sejam motivacoes, sejam causas naturais, brutas ou diretas) [...]", e a "[...] minha capacidade de escolher/determinar de modo retroativo quais causas irao me determinar" (Zizek, 2008, p. 274-275). Atualmente, segundo ele, somos incitados ao 'Goze!', desde o gozo sexual ao gozo na realizacao profissional, financeira e espiritual; o gozo "[...] funciona efetivamente como um estranho dever etico: individuos sentem-se culpados nao por violar inibicoes morais entregando-se a prazeres ilicitos, mas por nao serem capazes de gozar" (Zizek, 2010, p. 128). Nesse sentido, os sujeitos sao como que pressionados pela propria sociedade em que estao inseridos, ou seja, trata-se de uma sociedade perversa, capaz de fazer com que sigamos suas regras obscenas que proveem a violacao sistematica das regras explicitas.

E possivel efetuar uma leitura na qual Pavollini e fruto da exclusao social e da sociedade que habita: o meio leva-o a cometer seus tantos erros. Ele 'segue as regras obscenas' do meio em que vive para se dar bem na vida, ou seja, a sociedade na qual ele se insere e perversa. Desde muito jovem Juliano conviveu com a miseria e, depois da morte do pai, roubou o parente que veio cuidar do velorio, obtendo dinheiro para fugir dali, deixando mae e irmas. Foi para Curitiba, conheceu Isabela, que lhe ofereceu abrigo, sustento e sexo. Tinha certas regalias, mas, mesmo assim, envolveu-se em roubos com Odair e fez isso com gosto, ate o momento em que se apaixonou por Doroti: quis uma vida melhor e se arrependeu das mentiras que contou para conquista-la e dos furtos. Seu desejo era uma vida propria e tentou contar isso a Isabela, que nao aceitou e se enfureceu: com medo de morrer, Juliano matou Isabela e foi preso.

Levando em conta que o bordel de Isabela, embora oferecesse o necessario para o sustento, nao oferecia legitimidade social, mantendo o rapaz em situacao periferica, viver as custas da amante era um segredo vergonhoso e essa pode ter sido a motivacao de Juliano para errar. Nessa leitura, seria possivelmente por isso que Juliano tivesse optado por roubar e mentir, isto e, estas eram as formas que ele tinha para se aproximar do padrao burgues que ambicionava e que a sociedade impoe como modelo. Doroti seria a encarnacao da realizacao desse modelo, o que a torna irresistivel para Juliano.

Em uma outra leitura, lembremo-nos de que existe um sistema de regras simbolicas que regula nossa interacao social, regras explicitas (as leis) e regras 'implicitas' (nao registradas ou escritas) que regulam nosso modo de agir e de falar. Aqui o sujeito, e nao a sociedade, que e perverso, pois infringe tais regras por uma necessidade subjetiva ou um desejo e, ao infringir, o sujeito acaba "[...] encontrando prazer no que lhe e imposto" (Zizek, 2010, p. 130).

Dentro dessa leitura alternativa (que Juliano seja perverso e 'ignore propositalmente as regras sociais' impostas), ha um ponto importante: ele deixa para o Outro (o leitor) a responsabilidade de dizer quem ele e verdadeiramente. O perverso aqui desloca para o Outro a responsabilidade de decidir sobre sua suposta inocencia, uma vez que, para nao dizer a verdade, seja ela qual for, distorce seus relatos, aparentemente objetivos.

Juliano mente para a psicologa: "O texto que escrevi nao e o que vivi" (Tezza, 2002, p. 136); tenta seduzi-la. Mente para Doroti, com quem desejava casar: invade sua casa e mata seu cachorro. Posteriormente, ao se aproximar dela, mente sobre sua vida, ate ser desmascarado. Tambem mente para Isabela a respeito de Doroti, escolhendo, para contar a verdade, o momento em que a cafetina, fragilizada, acabava de perder tudo o que tinha e de ser ameacada pela policia. Ele ja havia declarado sua vontade de matar Isabela, mas nao so ela:

[...] matar Odair, matar Rude, matar Isabela, assim como eu ja havia matado meu pai e minha mae, ir matando todos os monstros da floresta, um a um, ate chegar ao lado encantado onde eu pudesse, finalmente, ver minha propria face (Tezza, 2002, p. 145).

A morte dos pais ai mencionada parece-nos, em principio, uma forma de dizer que, para ele, a familia morreu, uma vez que isso e explicito no texto, mas nao devemos ignorar o fato de que nao existe inocencia em texto literario: nao ha indicios no texto que nos permitam aventar a hipotese de ele ter, de fato, matado os pais, mas essa explosao testemunha o desejo de matar como forma de rompimento dos lacos familiares verdadeiros.

Uma cena que vale a pena retomar e a da morte de Isabela. Esta parece uma classica historia de provacao etica, o momento em que um personagem e posto a prova, exposto a tentacoes. Inicialmente, tem-se a impressao de que Juliano estava buscando purgar-se do passado ao contar a Isabela seus planos e agradecer por tudo o que fizera. A seguir, ele afirma ter desejado que "[...] os policiais tivessem matado Isabela com um tiro na testa [...]" (Tezza, 2002, p. 207) no momento em que a policia acabou com seu 'hotel'. O protagonista relata que, quando Isabela soube de seus planos, ficou enfurecida e deulhe um golpe violento:

Ela ia me matar, senti as unhas na minha garganta e o urro profundo da memoria: ela tambem se livrava de um pesadelo, mas comecou a chorar antes do tempo enquanto tentava bater minha cabeca no assoalho, ja sem forca. Fui estrangulando Isabela como pude, mas nao bastou ve-la inerte, a baba escorrendo. Era a minha vez de esmurra-la, bater aquela cabeca dura na quina do balcao, trezentas vezes, e depois ainda quebrar a garrafa de uisque na testa e ficar com o gargalo na mao, enfurecido, acuado, esperando que Isabela se levantasse (Tezza, 2002, p. 208).

Juliano ja sentira vontade de matar Isabela em outras ocasioes. A partir do relato, temos o desdobramento entre o menino que foi derrotado na provacao etica, vencido pelo desejo de matar Isabela e pelo medo que sempre teve dela, e o sadico que segue surrando o corpo ja sem vida de sua antiga protetora. Afinal, o narrador-personagem Juliano Pavollini, com todas as suas inconstancias, e perverso e 'ignora propositalmente as regras sociais' ou a sociedade em que ele vive e perversa e ele 'segue, sem plena consciencia disso, as regras obscenas que o ensinaram que o unico pecado nao perdoavel e fracassar na persecucao da existencia burguesa e abastada?' O romance deixa brechas para ambas as interpretacoes. Cristovao Tezza nao escreveu uma obra com verdades incontestaveis, ela e aberta. Cabe a cada leitor, corporificando um Big Other previsto na internalidade do texto, esse julgamento.

E aqui voltamos ao conceito central da obra A Visao em Paralaxe (2008), de Slavoj Zizek: as estruturas paralaticas. Chamamos 'paralatica' a configuracao do romance Juliano Pavollini porque o protagonista possui caracterizacao triforme: ingenuo, cinico ou brilhante. De acordo com a interpretacao (subjetiva) de cada leitor, a narracao de Juliano pode ser confiavel ou nao, o que ja instaura duas versoes distintas da historia; estas duas leituras sao obliteradas pela leitura objetiva de que ambas tem razao de ser. Alem disso, o autor deixa brechas para interpretacoes quanto a perversao instaurada no romance, que pode ter partido tanto do proprio personagem quanto das regras obscenas da sociedade.

Consideracoes finais

A estrutura da obra de arte--e, em especial, a do texto literario--opera com lacunas de sentido a serem preenchidas pelo leitor. Tais vazios, preenchidos no ato da leitura, permitem interpretacoes diversas, por vezes nao previstas pelo autor, do constructo como um todo. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que a obra literaria aqui estudada sofre um efeito paralatico, uma vez que sua configuracao de sentidos se altera conforme cada individuo realiza seu percurso de leitura em relacao a ela. Em outras palavras, o locus ocupado pela obra no Imaginario pode ser renegociado a cada nova interacao. Entretanto, o romance de Tezza escolhido como objeto de nossa analise possui uma caracteristica especial: as versoes de Juliano surgem nao apenas da problematica confiabilidade do narrador, mas tambem da propria opcao da instancia autoral em dota-lo de um discurso refinado e erudito, correndo o risco de tornar-se inverossimil (e por isso a preocupacao reiterada em 'explicar' a origem dessa erudicao nos monologos do personagem) e pairando sobre o que poderiamos considerar uma tenue fronteira de verossimilhanca. A construcao do discurso desse narrador instaura a grande paralaxe do romance, que ilumina fortemente a nao confiabilidade do texto.

A linguagem elaborada e culta do narrador nao coaduna com a linguagem do personagem e isso marca a duplicidade e a ambiguidade do sujeito. As inconstancias desse narrador autodiegetico fizeram perceber que o personagem apresenta tres versoes de um mesmo (e nao apenas duas), pois ha um narrador-personagem bem intencionado, um narrador-personagem manipulador e um narrador-personagem cuja instancia autoral se responsabiliza por sua intelectualizacao.

Juliano encena momentos para se autoafirmar (o chamado 'ato simbolico'), como forma de mostrar quem e, mesmo que de forma distorcida. Essa encenacao, no romance, se da atraves da linguagem do narrador, que, como mencionamos, e culta e parece manipulada a fim de sustentar, perante um leitor mais ingenuo, sua versao. A forma como o personagem age remete a questao da perversidade. Nesse caso, a pergunta e se Juliano e ou nao perverso, no sentido lacaniano; se ele mente, rouba, mata e manipula porque ignora propositalmente as regras sociais ou se ele segue as regras obscenas do meio em que vive. E, mais uma vez, as duas versoes cabem no romance, criando a paralaxe textual.

Eis o que pretendiamos significar quando afirmamos que Juliano Pavollini, de Cristovao Tezza, e paralatico. Ao longo desta pesquisa, demostramos que as inconsistencias do narrador autodiegetico especifico desse texto acabam por minar e por fragilizar sua verossimilhanca, o que causa um estranhamento no leitor, permitindo-lhe definir as versoes em que deseja acreditar, isto e, em quais instancias autorais confiar. E tal movimento se da em diversas camadas do romance, fazendo com que a visao do leitor seja obrigada a construir representacoes sempre distintas do material narrado, dependendo exclusivamente do ponto no qual esse leitor se situa para lancar seu olhar ao universo do texto.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.27715

Referencias

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Booth, W. C. (1980). A retorica da ficcao. (Maria Teresa Guerreiro, trad.). Lisboa, PT: Arcadia.

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Tezza, C. (2002).Juliano Pavollini. Rio de Janeiro: Rocco. Zizek, S. (2008). A Visao em Paralaxe. (Maria Beatriz de Medina, trad.). Sao Paulo: Boitempo.

Zizek, S. (2010). Como ler Lacan. (Maria Luiza X. de A. Borgs, trad., Marco Antonio Coutinho Jorge, rev. tec.). Rio de Janeiro: Zahar.

Zizek, S. (2012). O amor impiedoso (ou: sobre a crenca). (Lucas Mello Carvalho Ribeiro, trad.). Belo Horizonte, MG: Autentica.

Received on May 7, 2015.

Accepted on November 30, 2015.

Marisa Correa Silva * e Estela Pereira dos Santos

Centro de Ciencias Humanas Letras e Artes, Departamento de Letras, Universidade Estadual de Maringa, Avenida Colombo, 5790, 87020-900, Maringa, Parana, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: mcsilva5@uem.br
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