首页    期刊浏览 2025年02月26日 星期三
登录注册

文章基本信息

  • 标题:Discursive genesis of the formula 'peace culture'/Genese discursiva da formula 'cultura de paz'.
  • 作者:Salgado, Luciana Salazar ; da Silva, Helena Maria Boschi
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2014
  • 期号:April
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa

Discursive genesis of the formula 'peace culture'/Genese discursiva da formula 'cultura de paz'.


Salgado, Luciana Salazar ; da Silva, Helena Maria Boschi


Introducao

Com o presente artigo, gostariamos de contribuir para o conjunto crescente de estudos sobre 'formulas discursivas', apoiando-nos em propostas recentes da pesquisadora Krieg-Planque (2010), considerando o quadro teorico da analise do discurso de tradicao francesa e, com base nele, a nocao de 'genese discursiva' desenvolvida por Maingueneau ([1984] 2008). Focalizamos, para tanto, o sintagma 'cultura de paz', que, entre outros materiais textuais bastante diversos, aparece com proeminencia na cartilha Cultura de Paz: redes de convivencia (DISKIN, 2009), num periodo de intensificacao de sua circulacao no espaco publico.

No que diz respeito a essa cartilha, que se poe em circulacao como um texto disparador de reflexoes e praticas, importa registrar que Diskin foi cofundadora da Associacao Palas Athena, uma das principais entidades que divulgam a 'cultura de paz' no Brasil, e trabalhou como Coordenadora do Comite Paulista para a Decada de Paz, uma parceria entre a Organizacao das Nacoes Unidas para a Educacao, a Ciencia e a Cultura (Unesco) e essa associacao. E considerada uma das principais figuras do movimento brasileiro pela 'cultura de paz'.

Quanto as pesquisas sobre formulas, vale lembrar que seu estudo tem uma larga tradicao nas ciencias humanas, reunindo investigacoes sobre proverbios, ditados, maximas, slogans, bordoes, entre outros enunciados curtos de alta pregnancia. Nos estudos da linguagem, tem-se considerado que sao pontos de relativa 'cristalizacao' da lingua; uma formula seria, assim, uma especie de sintese alcancada pela historia da lingua, que teria levado um elemento polilexical a funcionar como um item do lexico. Nesta ocasiao, vista da perspectiva discursiva aqui assumida, a questao se desloca: essa 'sintese linguistica' supoe um territorio delimitado que, no entanto, ve suas fronteiras a todo tempo ameacadas, estendidas, encolhidas, refeitas.

Trata-se, em linhas gerais, de abordar a lingua como constitutivamente opaca e polissemica, os sujeitos como clivados e as conjunturas de interlocucao como marcadas por lugares sociais definidos na sobreposicao de temporalidades de que se faz a historia. Essa analise do discurso ve nos textos, ou melhor, nas praticas de textualizacao, as marcas da heterogeneidade e da alteridade constitutivas de todos os dizeres. Ve, portanto, a relacao ininterrupta entre intradiscurso e interdiscurso. Com base nisso, podemos pensar que sinteses como slogans, ditados e frases feitas, embora possam parecer territorios de apaziguamento, sao, antes, posicionamentos que denunciam a rede de disputas em que se instituem--trata-se de alvoroco, de efervescencia.

Desse modo, mesmo que se pense em termos de cristalizacao, nao se trata de algo imovel ou imutavel; todo dizer e um movimento e, quando cristalizado, faz-se no de uma rede; nao um ponto final, nao um ponto isolado, mas nevralgico, lugar estrategico na dinamica historica que o institui e salienta. Essa 'saliencia' tem a ver com as polemicas em foco numa dada comunidade discursiva, com as crencas que as sustentam, com os discursos que as alimentam e que podem, tambem, transforma-las. Assim e que toda formula discursiva comporta uma densidade historica que se presentifica na sua circulacao, apoiada em pre-construidos e voltada a novas construcoes.

Nesses termos, pode-se abordar a 'genese' de um discurso: como dizeres coesos se impoem na arena publica? Como ganham volume e delimitam uma identidade? Decerto algo sempre fala antes e alhures, mas podemos investigar movimentos de delimitacao de um discurso, isto e, investigar a constituicao de discursivizacoes, se nos situamos

[...] no lugar em que vem articular-se um funcionamento discursivo e sua inscricao historica, procurando pensar as condicoes de uma 'enunciabilidade' possivel de circunscrever-se historicamente (MAINGUENEAU, [1984] 2008, p. 17).

Com base nessas consideracoes, elegemos, em um conjunto de dados mais amplo, o foco deste artigo: um documento de farta circulacao que se apresenta em um genero prescritivo, em um periodo de intensificacao da ocorrencia do sintagma 'cultura de paz' na arena publica. Os anos de 2001 a 2010 foram proclamados pela ONU (1999a e b) como a 'Decada Internacional para uma Cultura de Paz e Nao Violencia para as Criancas do Mundo'; nessa conjuntura, tivemos contato com a cartilha Cultura de Paz: redes de convivencia (DISKIN, 2009) distribuida no 'Encontro Internacional En Pie de Paz--Cultura de Paz, politicas publicas e desenvolvimento cultural', realizado na cidade de Sao Paulo em 2011.

Essa cartilha passou a ser, desde ai, o documento de referencia para a coleta de dados relativos a circulacao do sintagma 'cultura de paz', posto apresentar-se como um documento que se pretende fundador de reflexoes e praticas, portanto, de discursivizacoes: autodenomina-se 'cartilha', foi distribuido em um evento que discute amplamente (e internacional) uma forte institucionalizacao politica e cultural. Prescritiva por definicao, essa cartilha, alem de recuperar fontes, evocando memorias discursivas, "[...] busca contribuir significativamente para a mudanca de modelo mental e da construcao de uma cultura colaborativa [...]" (SOUZA apud DISKIN, 2009, p. 3). Para levar a cabo essa missao, traz em suas paginas o registro de acoes variadas, conduzidas por instituicoes bastante diversas, que tem em comum o fato de a 'cultura de paz' estar explicitada entre seus objetivos.

Ha desde programas de educacao e formacao desenvolvidos por escolas, universidades, institutos religiosos e ONGs de diferentes portes, ate o estabelecimento de politicas publicas por algumas Secretarias Municipais. A respeito dessa multiplicidade de registros, le-se na propria cartilha:

Estao em curso no Brasil centenas de programas, projetos, iniciativas e acoes de Cultura de Paz promovidas como politicas publicas em setores governamentais; como cursos de extensao e especializacao em universidades publicas e privadas; em capacitacoes de educacao permanente para professores, agentes penitenciarios, forcas de seguranca, gestores sociais, pais/maes e cuidadores, agentes comunitarios, artistas, articulando as competencias de agencias internacionais, governo, empresas, organizacoes nao governamentais e instituicoes religiosas (DISKIN, 2009, p. 30).

Diante dessa proposta de institucionalizacao, que reune tao variadas iniciativas no que seria uma especie de apice dos debates da decada proclamada pela ONU (1999a e b), pareceu-nos interessante investigar o que, afinal, se pode entender por 'cultura de paz'. O sintagma, presente, por exemplo, em estatutos e editais como condicao sine qua non para o pertencimento a dadas comunidades discursivas, ao mesmo tempo que faz convergirem para um eixo de sentidos 'centenas de programas, projetos, iniciativas e acoes' que se reunem em torno de algo comum, justamente por conta do espraiamento de iniciativas tao diversas, parece tambem abrigar divergencias importantes, sobre as quais possivelmente repousam questoes cruciais para a politica e para a cultura. Essa e nossa hipotese de trabalho.

A nocao de formula discursiva proposta por Alice Krieg-Planque

[...] impulsionada por um acontecimento, uma palavra se impoe. E se impoe a todos como um remedio [...]. Ela simboliza uma solucao. Mas, paralelamente a essa retomada massiva na superficie dos enunciados, a palavra ve seu sentido se dispersar (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 26).

Nessa passagem, Krieg-Planque comenta um trabalho de Simone Bonnafous acerca da 'semantizacao bastante heterogenea' da palavra integration no espaco publico, devida ao affaire du college de Creil [o caso do colegio de Creil], posteriormente chamado de affaire du foulard [o caso dos lencos], quando se verificou a intensificacao das ocorrencias desse sintagma no jornal Le Monde entre os anos 1989 e 1990. Com isso, a autora aborda o que refere como 'intensificacao da vida de uma palavra'.

Em entrevista concedida a Philippe Sheppens para a revista Semen em 2006, a pesquisadora diz tratar-se de

[...] um objeto descritivel nas categorias da lingua e cujo destino--ao mesmo tempo invasivo e continuamente questionado--no interior dos discursos e determinado pelas praticas linguageiras e pelo estado das relacoes de opiniao e de poder em um momento dado no seio do espaco publico (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 12).

Na obra A nocao de 'formula' em Analise do Discurso: quadro teorico e metodologico (KRIEG-PLANQUE, 2010), esse objeto e delimitado pela autora como uma sequencia linguistica que manifesta quatro propriedades com implicacoes reciprocas, que depende, portanto, de uma rede de imbricamentos. Assim, uma 'formula discursiva':

1. Supoe um sintagma cristalizado;

2. Inscrito em uma dimensao discursiva;

3. Funcionando como um referente social;

4. Comportando um aspecto polemico.

No que diz respeito ao 'carater cristalizado', a formula deve se materializar em "[...] uma forma significante relativamente estavel [...]" (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 61), seja ela uma unidade lexical simples (por exemplo, 'globalizacao') ou uma unidade lexical complexa (um substantivo composto como, por exemplo, 'desenvolvimento sustentavel', ou mesmo uma frase, desde que apresente as propriedades acima). Essa sequencia cristalizada e condicao para tornar possivel tanto a circulacao da formula quanto o seu rastreamento pelo analista, o que nao quer dizer que nao possa condensar formas menos estaveis, na forma de parafrases ou variantes dessa sequencia mais cristalizada. Segundo a autora (2010, p. 71), [...] e a concisao que permite a formula circular, no sentido material do termo, e ela que permite a sequencia ser integrada a enunciados que a sustentam, a incluem, a retomam, a reforcam, a reiteram ou a recusam.

No caso do sintagma 'cultura de paz' (com as variantes 'cultura da paz' e 'cultura para a paz'), temos uma unidade lexical complexa que se cristalizou ao longo dos ultimos vinte e tres anos, se considerarmos o que nos diz a cartilha, na qual se registra que a expressao 'cultura de paz' tem sua primeira aparicao em 1989, na Conferencia Internacional sobre Paz na Mente dos Homens, realizada pela Unesco, em Yamoussoukro, na Costa do Marfim.

O documento que resultou do encontro e a 'Declaracao sobre a paz na mente dos homens' (COMITE DA CULTURA DE PAZ, 1989), tratando-se, para Diskin, de [...] um dos primeiros documentos internacionais a salientar a 'mudanca conceitual' da Paz e as implicacoes disso na formulacao das agendas e prioridades dos governos (2009, p. 19, grifo nosso).

Entre novembro e dezembro de 2012, o sintagma 'cultura de paz' contava com mais de dois milhoes de ocorrencias na ferramenta de busca do Google, entre rastros detectaveis majoritariamente em sites institucionais (principalmente governamentais e ligados a ONGs), alem de um verbete na Wikipedia, figurando, portanto, numa forma bastante estabilizada, identificavel e possivel de rastrear.

Alem dessa circulacao na web, o proprio lancamento de uma cartilha contribuiu para essa cristalizacao, dada ja pela propria assuncao desse genero prescritivo, destinado, tambem, no caso em tela, a documentar um evento de grande porte que, de certo modo, resulta de uma decada de reflexoes oficialmente deflagradas por uma organizacao internacional.

A producao de uma cartilha evidencia a necessidade de 'ensinar' o que significaria essa sequencia linguistica 'cultura de paz'. Em todo caso, segundo a abordagem teorica com que lemos esse material, entendemos que, devido a heterogeneidade semantica que a formula supostamente subsumiria, essa cartilha acaba por extrapolar a rigidez conceitual tipica do genero, como veremos adiante.

No que tange a dimensao discursiva do sintagma cristalizado, deve-se ao fato de se constituir em uma materialidade linguistica que "[...] nao existe sem os usos que a tornam uma formula [...]" (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 81). Assim, nenhum sintagma verbal esta destinado a ser (ou nao) formulaico, e necessaria a analise de sua circulacao em um determinado recorte temporal para que se verifique se alcanca essa condicao. Cabe notar que a sequencia pode tanto surgir ja com o status de formula, como supomos ser o caso da 'cultura de paz', quanto desenvolver esse carater em sua trajetoria, devido a algum uso particular (ou uma serie de usos), como ocorre na maioria das vezes (CF. KRIEG-PLANQUE, 2010). A pesquisadora exemplifica com a sequencia sans-papiers [sem-documento], que parece ter se tornado uma formula na segunda metade de 1996, quando ocorreu 'o caso dos sem-documento da igreja Saint-Bernard', e o sintagma passou a ter uma aparicao expressiva no espaco publico, notadamente em substituicao a clandestins [clandestinos], referencia mais frequentemente atribuida, ate entao, aos estrangeiros que nao portavam registro de permanencia na Franca (KRIEG-PLANQUE, 2010).

Acreditamos que no caso de 'cultura de paz', ha uma formula discursiva devido ao proprio 'campo discursivo' (MAINGUENEAU, 2008) em que surge, que tem sido referido por Direitos Humanos. Para David Adams, responsavel pelo desenvolvimento do Programa de Cultura de Paz da Unesco (1995), em 1992, a 'cultura de paz' pode ser compreendida atraves da combinacao das duas resolucoes das Nacoes Unidas, o 'Programa de Acao' e a 'Resolucao das Nacoes Unidas de 1998 sobre a Cultura de Paz', a partir das quais ele constroi uma definicao baseada em oito premissas:

Uma cultura de paz e uma abordagem integral para prevenir a violencia e os conflitos violentos, e uma alternativa a cultura da guerra e da violencia baseada na educacao para a paz, na promocao da economia sustentavel e do desenvolvimento social, no respeito pelos direitos humanos, na igualdade entre mulheres e homens, na participacao democratica, na tolerancia, no livre fluxo de informacoes e no desarmamento (1). (ADAMS, 2005, traducao nossa).

Cabe notar que, embora Adams (2005) coloque o 'desarmamento' como um dos pontos que definem a 'cultura de paz', no Programa de Acao elaborado pela Unesco (1995, para o qual ele tambem colaborou) e no Programa da Decada da Cultura de Paz (baseado no primeiro), esse conceito e substituido por outro--'paz e seguranca internacional--, sendo o desarmamento deixado como um dos varios subitens. Os oito temas desses dois programas ficam, entao:

--Cultura de Paz atraves da educacao;

--Economia sustentavel e desenvolvimento social;

--Compromisso com todos os direitos humanos;

--Equidade entre os generos;

--Participacao democratica;

--Compreensao, tolerancia e solidariedade;

--Comunicacao participativa e livre fluxo de informacoes e conhecimento;

--Paz e seguranca internacional.

A numerosidade e, ao mesmo tempo, a opacidade dos temas que a sequencia 'cultura de paz' abriga atestam a disputa pelos sentidos atribuidos ao que seriam, por exemplo, a 'sustentabilidade', o 'desenvolvimento social', o 'livre fluxo de informacoes' para os diversos posicionamentos discursivos postos em relacao justamente pela convocacao do sintagma em suas textualizacoes.

E o que fica evidente no caso acima: a substituicao de 'desarmamento' por 'paz e seguranca internacional' abre espaco para diversas reivindicacoes discursivas para 'paz' e 'seguranca': militarizadas, desarmadas, etc. Podemos pensar, por exemplo, nas UPPs instaladas em comunidades cariocas com vistas a 'pacificar os morros', como se le diuturnamente nos noticiarios e nos documentos oficiais tambem. Mais amplamente, nao sera ocioso lembrar que muitas das intervencoes armadas dos anos 2000 foram deflagradas em nome do 'dever de ingerencia', assumido pelos interventores como solucao para conflitos locais (o que poe em questao o direito de soberania dos povos), ou para dirimir duvidas (como aconteceu no Iraque em 2003, posto sob suspeicao de desenvolver clandestinamente armas nucleares).

Na cartilha que analisamos, sobretudo numa secao intitulada 'Saber o sabor da experiencia', os principais temas abordados nos projetos das entidades ali reunidas, condensados no fato de "Ter a cultura de paz explicitamente entre seus objetivos [...]" (DISKIN, 2009, p. 30), sao destacadamente a 'educacao para a paz' e a 'nao violencia', previstos no que seria aquele programa tematico inicial da 'cultura de paz' e desdobramentos que fazem parte da grade semantica dos Direitos Humanos, como 'saude', 'cidadania', 'etica'. Dentre as diversas instituicoes que figuram nessa secao da cartilha, a que mais chamou nossa atencao foi a Secretaria Municipal de Saude de Sao Paulo, envolvida nas acoes policiais havidas na regiao paulistana conhecida como Cracolandia no inicio de 2012.

No que diz respeito ao funcionamento da formula como um referente social, segundo Pierre Fiala e Marianne Ebel, citados por Krieg-Planque (2011, p. 18), deve-se ao fato de que [...] surgem formulas na linguagem em relacao as quais o conjunto de forcas sociais e o conjunto dos locutores sao obrigados a tomar posicoes, a defini-las, a combate-las ou a aprova-las, mas, em qualquer caso, a faze-las circular de uma maneira ou de outra.

Em outras palavras, isso acontece quando a sequencia torna-se presenca obrigatoria para alem dos contextos sociais em que surge, transcendendo o lugar discursivo de origem e podendo, inclusive, "[... ] funcionar como indice de reconhecimento que permite 'estigmatizar'--positivamente ou negativamente--seus usuarios [...]" (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 74--grifo do autor). O que nos remete a citacao do inicio desta secao, em que Bonnafous diz que a 'palavra' 'torna-se um slogan', 'uma palavra de ordem'.

Um indicio forte desse acontecimento, no caso de 'cultura de paz', e sua intensa adocao por universidades, associacoes e ONGs, alem de sua presenca em regras de concursos e em instancias legislativas, muitas vezes devido ao reconhecimento e a visibilidade que seu uso confere a entidade--ja que acoes que se encaixariam perfeitamente dentro das concepcoes da 'cultura de paz', tal como delineadas por Adams (2005) e citadas anteriormente, muitas vezes nao sao reconhecidas como tal se nao utilizarem explicitamente essa expressao. E o caso da referida secao 'Saber o sabor da experiencia': os dez projetos que foram selecionados para representar didaticamente algumas das 'acoes em prol da cultura de paz' nao tiveram necessariamente o desenvolvimento de suas atividades avaliado, mas a presenca de 'cultura de paz' entre seus objetivos funcionou como criterio de selecao para figurarem exemplarmente nesse documento--uma cartilha, frisemos ainda uma vez.

No que tange ao carater polemico da formula, intimamente ligado a propriedade de referencia social, institui-se pelo fato de a expressao tornar-se 'um suposto denominador comum', mas comportar diversos sentidos, reivindicados por institucionalidades distintas. E a 'generalizacao do termo' acompanhada de 'uma semantizacao bastante heterogenea', nas palavras de Bonnafous (citada por KRIEG-PLANQUE, 2010).

Essa caracteristica permeia tudo o que dissemos anteriormente, devido ao fato de a formula condensar questoes politicas e sociais que

[...] poe[m] em jogo os modos de vida, os recursos materiais, a natureza e as decisoes do regime politico do qual os individuos dependem, seus direitos, seus deveres, as relacoes de igualdade ou de desigualdade entre cidadaos, a solidariedade entre humanos, a ideia que as pessoas fazem da nacao de que se sentem membros (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100).

Se o sintagma 'cultura de paz' nao e explicitamente alvo de questionamentos no espaco publico institucional, como parece ser o caso, vemos esse fato menos como uma ameaca a sua condicao de formula do que como consequencia do espaco discursivo em que ele se inscreve.

A necessidade de um 'discurso unico' sobre a instauracao da paz planetaria nao pode ter eco senao em um mundo em que o 'discurso da guerra' e cotidianamente vivido e sentido pelos individuos que dele fazem parte, muitas vezes legalmente legitimado por meio de acoes as mais variadas, estatais e nao estatais (como ja citamos, nos multiplos casos de ingerencia internacional, ou, mais proximamente, nas denuncias sobre as UPPs, ou ainda nos inflamados debates sobre a maioridade penal). Mas ele nao e explicitamente enunciavel, situacao em que uma polemica no sentido tradicional do termo seria instaurada.

Por exemplo, para cada um dos oito pontos colocados por Adams, havia, na versao inicial do programa de acao e da resolucao enviados pela Unesco (1995) para as Nacoes Unidas, um contraponto para a 'Cultura da Guerra e da Violencia', os quais foram eliminados da versao final, juntamente com essa expressao, por pressao da Uniao Europeia. Segundo notas de Adams sobre encontro informal em maio de 1999,

O representante alemao, em nome da Uniao Europeia ... explicou o porque de ele ter deletado a frase 'rapida transicao de uma cultura de guerra e de violencia para uma cultura de paz'. Segundo ele, nao existe uma cultura de guerra e de violencia no mundo (2) (ADAMS, 2005, traducao nossa).

Os questionamentos sobre a validade do sintagma 'cultura de paz' sao restritos, portanto, a espacos menos institucionalizados, como comentarios em blogs, e a (raras) criticas no ambito academico. Vemo-nos diante de um apagamento dos contrastes entre a nossa realidade e a construcao simbolica do que seria uma 'cultura de paz', fenomeno este necessario a propria manutencao do status quo.

Uma cartilha para instituir uma formula?

Considerando a cartilha como um 'genero instituido' (isto e, nao conversacional), temos uma unidade territorial que funciona como um "[... ] dispositivo socio-historico de comunicacao [...]" construido a partir de praticas verbais instituidas socialmente (MAINGUENEAU, 2008, p. 16-17). Pela propria funcao de ensino e divulgacao de um dado conteudo, ela se constituiria em um 'genero segundo', que explicita uma 'doutrina anteriormente constituida', e 'aberto', cujo discurso e (e deve ser, nesse caso) reproduzivel pelos mais variados leitores (MAINGUENEAU, 2008).

Modzenski (2007), em um trabalho sobre a cartilha juridica, recupera as origens desse dispositivo como suporte para a doutrinacao crista da populacao no seculo XVI, ate chegar aos dias de hoje:

Como 'heranca' das cartilhas de outrora, as atuais cartilhas educativas constroem uma determinada 'representacao de verdade', 'trazendo consigo uma certa credibilidade informativa com uma funcao normativa e reguladora de mostrar ao individuo como se deve agir diante das relacoes e acoes sociais' (GOMES, 2003, p. 157). Ou seja, para que consigam alcancar os seus propositos--e, por extensao, os propositos dos produtores do texto--, as pessoas devem seguir as normas e orientacoes estipuladas nas cartilhas, sem questiona-las (MODZENSKI, 2007, p. 1212, grifos do autor).

Em todo caso, na cartilha que estudamos--que e assim autodenominada--, notamos uma certa subversao da estrutura tradicional do genero. Em vez de propor 'normas e orientacoes' bem delimitadas, vemos que a proposta e fundamentalmente "[...] inspirar iniciativas [...]" (DISKIN, 2009, p. 3), apresentando uma diversidade de acoes realizadas em nome da 'cultura de paz', a qual, em nenhum momento, e objeto de definicoes ou especificacoes objetivas. Esse dado e interessante na medida em que materializa indicios da polissemia e mesmo da opacidade, que aponta para a dimensao polemica da formula que e a razao de ser dessa cartilha peculiar.

Conforme o quadro teorico aqui convocado, pode-se dizer que ha sempre um conjunto de movimentos entre os limites definidores dos generos e a permanente tessitura de liames. E as instituicoes tem um papel crucial na gestao desses movimentos.

Em sua conferencia de 1983, intitulada 'Marxismo e Interpretacao da Cultura: Limites, Fronteiras, Restricoes', Pecheux (2002, p. 34, grifo do autor) advertia: De nada serve negar essa necessidade (desejo) de aparencia, veiculo de disjuncoes e categorizacoes logicas: essa necessidade universal de um 'mundo semanticamente normal', isto e, normatizado, comeca com a relacao de cada um com seu proprio corpo e seus arredores imediatos (e antes de tudo com a distribuicao de bons e maus objetos, arcaicamente figurados pela disjuncao entre alimento e excremento). E tambem nao serve de nada negar que esta necessidade de fronteiras coincide com a construcao de lacos de dependencia face as multiplas coisas-a-saber, consideradas como reservas de conhecimento acumuladas, maquinas-de-saber contra as ameacas de toda especie: o Estado e as instituicoes funcionam o mais frequentemente--pelo menos em nossa sociedade--como polos privilegiados de resposta a esta necessidade.

No caso da cartilha em tela, esse movimento de gestao parece evidente, pela institucionalidade que convoca e pela diversidade que administra, ao convoca-la com base em uma formula que se apoia numa memoria nao explicitada--afinal, nao se explica o que e 'cultura de paz', sintagma que aparece como referencia a algo sabido, conhecido--para projetar a necessidade de que certas praticas, aludidas por exemplos bastante variados, se multipliquem e avolumem um dado discurso, correspondente a um mundo desejavel, porque supostamente melhor.

Em todo caso, pensar discursivamente a cultura, suas praticas e os objetos por ela produzidos supoe pensar formas de estabilizacao dos sentidos, o que supoe pensar limites definidores. Mas ha sempre diversas ligacoes entre discursividades, que as definem tambem como discursivizacoes, isto e, discursos em movimento, em seus processos de genese, produzindo-se. Assim, por definicao, as fronteiras sao, o tempo todo, ameacadas e novamente demarcadas, condicionadas que estao ao jogo de forcas estabelecido historicamente. O genero discursivo e um cerco prenhe de escapes; a formula, possivelmente um indicio dessa condicao.

Consideracoes finais

Como dissemos, o estudo da cartilha Cultura de Paz: redes de convivencia e ainda parcelar, uma vez que a tomamos como documento definidor da coleta de dados mais ampla, que persegue rastros do sintagma 'cultura de paz' fazendo a hipotese de que se trata de uma formula nos termos da proposta de Krieg-Planque (2010). Ou seja: pensamos 'cultura de paz' como uma sequencia linguistica reveladora do trabalho de producao de um consenso e que demanda, entao, inescapavelmente, esforcos coletivos permanentes para administracao do dissenso, o que implica reconhecer a heterogeneidade de posicionamentos que configura toda atividade humana--talvez algo previsto na referencia a 'redes de convivencia'.

Por fim, registramos que o interesse de estudar essa expressao, que cremos funcionar como uma formula discursiva, reside no fato de essa hipotese obrigar a um metodo: a observacao do funcionamento, do jogo de implicacoes de variados posicionamentos, com suas flutuacoes, e no qual as identidades discursivas efetivamente se formulam, animando confluencias que, em sua dinamica, produzem um 'efeito de consenso'. Efeito que parece necessario, e mesmo condicao fundamental para a implantacao de acoes duradouras, mas que possivelmente so sera democratico se for considerado em sua heterogeneidade irredutivel.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v36i2.22567

Referencias

ADAMS, D. Definition of culture of peace. 2005. Disponivel em: <http://www.culture-of-peace.info/copoj/ definition.html>. Acesso em: 22 jun. 2014.

COMITE DA CULTURA DE PAZ. Declaracao sobre a paz na mente dos homens. Yamoussoukro: Comite da Cultura de Paz, 1989.

DISKIN, L. Cultura de paz: redes de convivencia. Sao Paulo: Senac, 2009.

KRIEG-PLANQUE, A. Purification ethnique. Une formule et son histoire. Paris: CNRS, 2003.

KRIEG-PLANQUE, A. A nocao de 'formula' em analise do discurso: quadro teorico e metodologico. Traducao de Luciana Salazar Salgado e Sirio Possenti. Sao Paulo: Parabola, 2010.

KRIEG-PLANQUE, A. 'Formulas' e 'lugares discursivos': propostas para a analise do discurso politico. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. S. (Ed.). Formulas discursivas. Sao Paulo: Contexto, 2011. p. 11-40.

MAINGUENEAU, D. Genese dos discursos. Traducao Sirio Possenti. Sao Paulo: Parabola, 2008.

MODZENSKI, L. P. A formacao socio-historica do genero 'cartilha juridica'. In: SIMPOSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GENEROS TEXTUAIS, 4., 2007. Tubarao. Anais...Tubarao: USSC, 2007. p. 1204-1228.

ONU-Organizacao das Nacoes Unidas. Declaration on a culture of peace. 1999a. Disponivel em: <http:// cpnn-world.org/resolutions/resA-53-243A.html>. Acesso em: 22 mai. 2014.

ONU-Organizacao das Nacoes Unidas. Programme of action on a culture of peace. 1999b. Disponivel em: <http://cpnn-world.org/resolutions/resA-53-243B.html>. Acesso em: 22 mai. 2014.

PECHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Traducao de Eni Orlandi. 3. ed. Sao Paulo: Pontes, 2002. UNESCO-United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization. Unesco and a culture of peace: promoting a global movement (UNESCO Culture of Peace Programme). Paris: Egoprim, 1995.

Received on February 2, 2014.

Accepted on April 24, 2014.

(1) No original: A culture of peace is an integral approach to preventing violence and violent conflicts, and an alternative to the culture of war and violence based on education for peace, the promotion of sustainable economic and social development, respect for human rights, equality between women and men, democratic participation, tolerance, the free flow of information and disarmament.

(2) No original: The German representative, on behalf of the EU...explained why he deleted the phrase 'speedy transition from a culture of war and violence to a culture of peace'. According to him, there is no culture of war and violence in the world.

Luciana Salazar Salgado * e Helena Maria Boschi da Silva

Programa de Pos-graduacao em Linguistica, Universidade Federal de Sao Carlos, Via Washington Luis, Km 235, Cx. Postal 676, 13565-905, Sao Carlos, Sao Paulo, Brasil. * Autorpara correspondencia. E-mail: lucianasalazar@ufscar.br
联系我们|关于我们|网站声明
国家哲学社会科学文献中心版权所有