Street Prinsengracht, 263: faciality and space in possible realities in The Diary of Anne Frank/ Rua Prinsengracht, 263: rostidade e espaco nas realidades possiveis em O diario de Anne Frank.
Santana, Jorge Alves ; Rosenthal, Benjamim
E tento achar um modo de me transformar no que gostaria de ser e no que poderia ser se ... Anne Frank.
(O diario de Anne Frank, 2014, p. 310).
Estamos em uma epoca em que o espaco se oferece a nos sob a forma de relacoes de posicionamentos.
(Michel Foucault, Ditos e escritos III, 2001, p. 413).
O alcance dos espacos construidos vai entao bem alem de suas estruturas visiveis e funcionais.
(Felix Guattari, Caosmose: um novo paradigma estetico, 1992, p. 158).
Narrar-se nao e diferente de inventar-se uma vida. Ou debrucar-se sobre sua intimidade nao e diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiografico e constitutivo do sujeito e de seu conteudo.
(Contardo Calligaris, Verdades de autobiografias e diarios intimos, 1998, p. 7).
Introducao
"Espero contar tudo a voce, como nunca pude contar a ninguem, e espero que voce seja uma grande fonte de conforto e ajuda" (Frank, 2014, p. 11). Assim comeca o famoso e pungente Diario de Anne Frank, como consta o primeiro registro feito em 12 de junho de 1942. A garota acabara de ganhar dias antes, entre outros presentes, o tal diario como presente de aniversario, pois desde cedo a familia percebera sua indole para a autorreflexao, reflexao e escrita. Sequer imaginavam, nesses dias anteriores, que tal suporte seria uma ancoragem da historia pessoal e coletiva, dos alentos e das fantasias, necessarios para amenizar as privacoes, e, com maior destaque aqui, para a construcao identitaria da familia judia dos Frank, que e obrigada a refugiar-se das perseguicoes nazistas em um anexo secreto, localizado em Amsterda, na Rua 'Prinsengracht', 263.
De pretensas anotacoes pessoais de uma adolescente, de seus treze aos quinze anos, tal enunciacao e dimensionada, no periodo PosSegunda Guerra Mundial, a um dos documentos historicos importantes. Esta relevancia surge da complexa e minuciosa descricao e reflexao das politicas da guerra, dos ataques urbanos, dos comportamentos individuais, coletivos e institucionais, tanto dos governos aliados quanto daqueles que formavam o eixo fomentador dos confrontos belicos.
Quanto as varias frentes tematicas da textualizacao de Anne Frank, objetivamos, neste artigo, tratar daquela referente aos mecanismos de subjetivacao que tal escrita propicia. Que tipo de identidades a adolescente consegue articular quando reflete sobre si mesma, sobre as demais pessoas a sua volta e sobre o contexto socio-politico no qual esta inserida? Seus movimentos representativos abrangem de que modo dimensoes individuais, institucionais e coletivas? E, com destaque em nossas reflexoes, como as espacialidades vivenciadas de modo dialetico ancoram os processos de subjetivacoes que acompanhamos nesse exemplo de escrita de 'si', que funciona em dinamica inclusiva com a escrita dos 'outros'.
Usamos, pois, a perspectiva dos Estudos culturais, no que esta metodologia pode nos instrumentalizar quanto a reflexao sobre espacos identitarios, constituicao de sentidos, etnias tradicionais e/ou globalizadas. Neste enfoque, pensamos dinamizar o diario/depoimento de Anne Frank em um entrecruzamento de discursos que historiciza acontecimentos factuais atraves de procedimentos narrativos tambem comuns as narrativas ficcionais. Acompanhamos, entao, o que Jonathan Culler pontua sobre esses dois campos de producao e de estudos:
Em principio, os estudos culturais, com sua insistencia no estudo da literatura como uma pratica de sentido entre outras, e no exame dos papeis culturais dos quais a literatura foi investida, podem intensificar o estudo da literatura como um fenomeno intertextual complexo (Culler, 1999, p. 52-53).
O fenomeno intertextual complexo, que e esse diario, sera refletido, como mencionamos acima, na dinamica das relacoes tensionadas entre as espacialidades sobredeterminadoras das rostidades produzidas, bem como nas estrategias de coexistencia entre grupos de pessoas em condicoes criticas de relacionamentos socioculturais. Assim, acreditamos que, apesar dos graves impedimentos que situacoes de guerra estabelecem para grupos etnicos perseguidos, sua mobilidade, em certos contextos, e obrigada a produzir contextos minimos de sobrevivencia. Um desses contextos seria o de transformar alguns comodos de um edificio, o Anexo Secreto, em um espaco relacional e imaginativo, no qual se abrem janelas capazes de minimamente desterritorializar as dinamicas dos campos da morte.
Territorios quase impossiveis da escrita de si
O enunciado em questao, que se configura/e configurado como diario, alem dos registros de situacoes, sob perspectiva intimista, que implicariam uma fraca distancia reflexiva entre sujeito e objeto, e imbricado pela dinamica das memorias, de cunho mais pragmatico e socio-historico, como nos teoriza Contardo Calligaris (1998). O diario de Anne faz parte, como veremos adiante, da modalidade de escrita que entrecruzaria a perspectiva individual com a coletiva. Leremos nele relatos de situacoes particulares a autora, aqueles que montariam a cena da rostidade da narracao e, ao mesmo tempo, as inusitadas e densas situacoes que estao atreladas a movimentos sociais, culturais e politicos de abrangencia planetaria. Essa estruturalidade e funcionalidades heterogeneas criam um texto multivalente que, de certa forma, foge aos pressupostos de uma taxionomia tradicional da escrita de 'si', como, por exemplo, aquela que e teorizada por Phillipe Lejeune (1996).
Ao lado das peculiaridades dessa especie hibridizada que os diarios podem assumir, destacamos o aspecto das estrategias literarias que se aliam as representacoes do cotidiano subjetivo e coletivo da autora. Esse livro pode ser inserido naquele campo literario que Pierre Bourdieu (1996) pontua como o circuito politico-cultural que valida producoes artisticas como tal. Se o diario de Anne Frank e recebido tradicionalmente como um testemunho dos destrocos da guerra, tambem e recebido como um livro 'literario' por instituicoes educacionais e grupos de leitores.
Sem minimizar sua carga de depoimento factual de validade e necessidade historicas, a recepcao da obra tambem pode ser feita naquele registro semelhante ao das narrativas de ficcao, tais como: as articulacoes de focalizacao feitas pelo narrador, o delineamento psicofisico das personagens, a conotacao linguistica, com enfase em passagens ironicas e ambiguas, e, o que mais nos interessa aqui, a representacao da espacialidade na qual as personagens sao dispostas e tem suas identidades conformadas; e onde tambem podem atuar como agentes de ressignificacao desses mesmos dispositivos de posicionamento tanto espacial quanto subjetivo.
Um dos elementos composicionais mais instigantes da estrutura desse diario e a representacao dos espacos que baseiam possibilidades de acoes desses refugiados de guerra. Oito judeus de origem alema vivem vinte e cinco meses enclausurados em um esconderijo na Amsterda ocupada pelos nazistas. Em primeiro plano, somos levados a conhecer a familia Frank, da qual Anne e a cacula. Judeus de Frankfurt que, ao assistirem a tomada do poder pelo nacional-socialismo nazista em 1933, deslocam-se para o ate entao tolerante pais vizinho, que e a Holanda. Se, nos primeiros anos, a recepcao e as condicoes de estadia mostram-se, na medida do possivel, receptivas e generosas, a partir de 1942, a ocupacao nazista torna-se pragmatica nos desenvolvimentos e na consolidacao dos programas de perseguicao a etnias tidas como adversas ao ideal alemao de 'terra e sangue' purificados.
De prospero representante comercial, o judeu Otto Frank, auxiliado por uma rede de amigos holandeses, e obrigado a esconder-se com sua familia em alguns comodos do predio em que trabalhava. Assim, Otto Frank, sua esposa Edith Frank, suas filhas Margot e Anne Frank se autoencerram em uma espacialidade de refugio para sobrevivencia basica frente a concreta possibilidade de prisao e exterminio em alguns dos varios campos de concentracao mantidos pelo governo alemao e seus aliados. A esse nucleo se juntara outro nucleo formado pela familia de Hermann van Pels, sua esposa Auguste van Pels e seu filho Peter van Pels. Mais tarde, chegara outro judeu, o odontologo Fritz Pfeffer, perfazendo entao o grupo de oito judeus de idades e generos variados no Anexo Secreto da Rua Prinsengracht, 263.
Nesse contexto diegetico, temos que uma das funcoes da escrita de 'si' e a construcao relativamente planejada da imagem, uma especie de rosto/rostidade, que o autor pretende ter, de modo consciente, para si e para os outros. A constituicao desse rosto possuiria, entao, elementos de autorreflexao e elementos oriundos do carater relacionai que necessariamente e assegurado nas convivencias com o outro. Dessa forma, uma das concepcoes mais basicas e positivas a respeito de formacoes identitarias, individuais ou de outra natureza, parte da crenca de que sua base e o nucleo de relacao parental que se abrira, de acordo com padroes relacionais possibilitados, a outros nucleos com os quais se faz uso comum de repertorio cultural, de valores politicos, de praticas economicas e de outros mecanismos recorrentes e estabilizadores do que seria o plano comum de vivencia e de convivencia.
Nessa convivencia forcada com pessoas semelhantes e diferentes, Anne e absorvida pelo exercicio de construcao de seu proprio rosto no circuito aparentemente fechado das relacoes que obrigatoriamente estabelece com as demais sete pessoas que dividem com ela o reduzido espaco. Esse espaco parece ser construido na importante e paradoxal funcao de lhes assegurar condicoes de manutencao da identidade judaica e sobrevivencia fisica e, ao mesmo tempo, de lhes limitar drasticamente a liberdade e as possibilidades de producao subjetiva e de acoes de cunho mais heterogeneo.
Da espacialidade outrora aberta, na ainda receptiva Amsterda, vemos a garota conscientizar-se dos inflexiveis limites de sua posicao fisica. Quando sua irma recebe uma notificacao da SS para se apresentar ao escritorio do governo alemao em Amsterda, a tomada de consciencia da situacao perigosa instala-se de forma mais funesta:
Fiquei pasma. Uma notificacao: todo mundo sabe o que isso significa. Visoes de campos de concentracao e celas solitarias passaram por minha mente. Como poderiamos deixar papai ir para um destino assim?
--Claro que ele nao vai--declarou Margot, enquanto esperavamos por mamae na sala de estar.--Mamae foi procurar o Sr. van Dann, para perguntar se podemos ir amanha para o esconderijo. A familia van Dann vai conosco. Vamos ser sete no total.
[...]
Quando ela e eu estavamos sentadas em nosso quarto, Margot falou que a notificacao nao era para papai, e sim para ela. Com esse segundo choque, comecei a chorar. Margot tem dezesseis anos aparentemente eles querem mandar as garotas da idade dela para longe, sozinhas. Mas gracas a Deus ela nao vai; mamae mesma tinha dito, e devia ser isso que papai quis dizer quando falou em irmos nos esconder. Esconder ... onde iriamos nos esconder? Na cidade? No campo? Numa casa? Numa cabana? Quando, onde, como? Eram perguntas que eu nao tinha permissao de fazer, mas que viviam correndo pelo meu pensamento (Frank, 2014, p. 27-28).
Em meses, a familia Frank organiza condicoes fisicas estrategicas para habitar o refugio. Tratam do transporte lento e secreto de alimentos, roupas, medicamentos e, principalmente, de livros para a continuacao dos estudos sistematicos que os adolescentes teriam. Porem, com a inesperada intimacao que Margot recebe da policia alema, os planos sao antecipados e o grupo se muda para o anexo no dia 6 de julho de 1942, como consta nos registros feitos por Anne na quinta-feira, 9 de julho de 1942. Demonstrando autocontrole e percepcao inusitados para sua adolescencia, acompanhamos a garota descrevendo minuciosamente esse que seria o espaco fechado de uma permanencia de cuja duracao e conveniencia nao se poderia ter certeza. De seu relato objetivo, temos que:
O esconderijo ficava no predio do escritorio de papai. E uma coisa meio dificil de ser entendida por gente de fora, por isso vou explicar. Papai nao tinha muita gente trabalhando no escritorio, so o Sr. Kugler, o Sr. Kleiman, Miep e uma datilografa de 23 anos chamada Bep Voskuijl, e todos estavam informados de nossa ida. O Sr. Voskuijl, pai de Bep, trabalhava no armazem junto com dois assistentes, e nenhum deles ficou sabendo de nada.
Eis uma descricao do predio: o grande armazem no andar terreo e usado como sala de trabalho e deposito, e e dividido em varias secoes, como a sala de estoque e a sala do moinho, onde sao moidos cravos e um substituto de pimenta.
[...]
Uma escada de madeira liga o corredor de baixo ao terceiro andar. No topo da escada ha um patamar com portas dos dois lados. A porta da esquerda leva a area de deposito de temperos e aos sotaos. Um lance de escadas tipicamente holandes, muito ingreme, tambem leva da parte da frente da casa ate outra porta que se abre para a rua.
A porta direita do patamar leva ao Anexo Secreto nos fundos da casa. Ninguem jamais suspeitaria da existencia de tantos comodos por tras daquela porta cinza e lisa. Ha somente um pequeno degrau na frente da porta, e voce entra direto. Logo na frente fica uma escada ingreme. A esquerda ha um corredor estreito indo ate um comodo que serve como sala de estar e quarto para a familia Frank. Ao lado fica um comodo menor, o quarto e local de estudo das duas senhoritas da familia. A direita da escada fica um lavatorio sem janela, com uma pia. A porta no canto da no toalete e outra no quarto meu e de Margot. Se voce subir a escada e abrir a porta no topo, ficara surpresa ao ver um comodo tao grande, claro e espacoso numa antiga casa junto ao canal, como esta. Ele contem um fogao (gracas ao fato de ter servido como laboratorio do Sr. Kugler) e uma pia. Aqui sera a cozinha e o quarto do Sr. e da Sra. van Daan, bem como uma sala de estar geral. E entao, como na parte da frente do predio, ha os sotaos. Ai esta. Agora ja apresentei a voce todo o nosso adoravel anexo! (Frank, 2014, p. 30-31).
A citacao e longa, mas necessaria para compreendermos a densidade da estrategia descritiva que beira a estetica realista em seus periodos aureos de difusao. O efeito de realidade, nesse caso, tende a levar a categoria textual para o polo preferencial da historicidade oficial; o que o valida, talvez pelo valor politico e humanitario de seus desdobramentos fatais, como documento futuro que auxiliara na producao da memoria que atesta a arquitetura do holocausto. Tambem de tal citacao surge a questao de base deste artigo, que trata da possibilidade de a realidade espacial funcionar como fator preponderante para demarcar a cartografia identitaria do sujeito que e construido por tais demarcacoes. Dinamizando a questao, tambem perguntariamos ate que ponto esse produto do processo de subjetivacao e capaz de atuar sobre essa acao que a espacialidade lhe confere, por vezes, de modo inflexivel.
O espaco e, de fato, um dos dispositivos mais importantes nas engenharias de identidade e de subjetivacoes? Sao fenomenos naturais ou construidos em longas diacronias, carregando em sua constituicao valores sociais, politicos e culturais dos quais, por vezes, sequer deles temos consciencia? Pensamos que, para compreender melhor os sentidos que conformam uma das rostidades centrais que o diario de Anne Frank nos propicia, seja necessario acompanharmos algumas reflexoes sobre essa categoria de base, que e a espacialidade com suas disposicoes em lugares, nao lugares e correlatos.
Michel de Certeau, em suas incursoes pelo cotidiano da vida urbana, reflete sobre a espacialidade e suas possiveis configuracoes advindas do segmentado e desigual trabalho humano. Sobre as possibilidades da emergencia espacial, Certeau distingue:
Inicialmente, entre espaco e lugar, coloco uma distincao que delimitara um campo. Um 'lugar' e a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relacoes de coexistencia. Ai se acha, portanto, excluida a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Ai impera a lei do 'proprio': os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado em um lugar 'proprio' e distinto que define. Um lugar e, portanto, uma configuracao instantanea de posicoes. Implica uma indicacao de estabilidade. [Quanto ao que seria o espaco o autor aponta que:] Existe espaco sempre que se tomam em conta vetores de direcao, quantidade de velocidade e a variavel tempo. O espaco e um cruzamento de moveis. E de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que ai de desdobram. Espaco e o efeito produzido pelas operacoes que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. O espaco estaria para o lugar como a palavra quando falada, isto e, quando e percebida na ambiguidade de efetuacao, mudada em um termo que depende de multiplas convencoes, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformacoes devidas a proximidade sucessiva. Diversamente do lugar, nao tem, portanto, a univocidade nem a estabilidade de um 'proprio' (Certeau, 1998, p. 201-202, grifos do autor).
Pontuam-se, entao, dimensoes da espacialidade que seriam marcadas, por um lado, pela tradicao de procedimentos regulamentados por valores
essencializados e inflexiveis de determinada sociedade e, por outro lado, por procedimentos, comportamentos e significados em franca abertura para constituicoes possiveis na perspectiva de conexao, heterogeneidade, multiplicidade, asignificancia e cartografia flexivel, como se poderia complementar pelas reflexoes de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995) quando tratam do conceito de cunho ontologico, que e o rizoma.
A categoria espacial rizomatica e percebida na narrativa de Anne Frank como sendo multiconectada, pois o Anexo secreto faz parte de um escritorio de venda de alimentos. No predio em questao, existem, pois, dois espacos diferenciados, o refugio e o escritorio, que estao conectados por negociacoes de tolerancia politica e humanitaria. Multiplas caracteristicas sao percebidas nessa espacialidade vivida e escrita pela adolescente, naturalmente cheia de saberes sobre outros espacos percorridos e, ao mesmo tempo, confusa no entendimento da situacao pragmatica da guerra na qual esta imersa.
Desse contexto belico, tambem teremos a percepcao do absurdo da situacao, o que cria na adolescente a imaginacao para a producao de universos possiveis, nos quais a exclusao psicossocial seja ao menos atenuada em cartografias moveis. Dessa forma, percebemos que a espacialidade rizomatica funciona como uma das geneses para as identidades tambem rizomaticas que acompanhamos nessa narrativa. Teriamos entao uma continua producao de identidades/subjetivacoes que se modulam de acordo com as sobredeterminacoes dos espacos; sem ficar, porem, na relacao passiva frente a esses fatores determinantes do meio.
Ainda na perspectiva nao fechada de Michel Certeau, porque trata de pesquisa que esteve em constante devir de producao, nao aceitando conceitos e teorizacoes finais, acompanhamos os desdobramentos teoricos da antropologia do cotidiano de Marc Auge, que trata, entre outros temas, de categorias como as de lugar e nao lugar. Para o autor, a espacialidade, de inicio, seria bipolarizada, para depois ser percebida em possivel terceira condicao, que traria, de modo dialetico, caracteristicas estruturais e funcionais das duas condicoes anteriores. Para Auge, que trata dessa tematica sob a luz do conceito maior, que e o de sobremodernidade--alternativa para os supostos cortes diatopicos que o conceito de posmodernidade faria com a modernidade com a qual deveria manter ligacoes de continuidade, mesmo com suas diferencas--teriamos que:
Si un lugar puede definirse como lugar de identidad, relacional e historico, un espacio que no puede definirse ni como espacio de identidad ni como relacional ni como historico, definira un no lugar. La hipotesis aqui defendida es que la sobremodernidad es productora de no lugares, es decir, de espacios que no son en si lugares antropologicos y que, contrariamente a la modernidade baudeleriana, no integran los lugares antiguos: estos, catalogados, clasificados y promovidos a la categoria de 'lugares de memoria', ocupan alli un lugar circunscripto y especifico (Auge, 2000, p. 83, grifo do autor).
Para Auge, marcadores como o da identidade e o da temporalidade configuram o lugar que reflete os territorios antropologicos por excelencia. Em contrapartida, o conceito de nao lugar seria um derivativo do que o autor considera como sobremodernidade--desdobramentos da modernidade em que tempo e espacos sao comprimidos pelas caracteristicas dos excessos: de producao, de consumo, de mobilidade, de informacoes, entre outros, e que nao possibilitam ao sujeito condicoes para que ele dinamize sua atividade de modo ativo e com consciencia critica e cooperativa com os demais membros de sua rede existencial. Essas reflexoes de Auge podem ser inseridas na tradicao do pensamento de Michel de Certeau, que se preocupa em compreender como as sociedades do pos-guerra criam procedimentos de subjetivacoes e como disso surge a necessidade de maior compreensao de tais condicoes.
Com implicacoes socio-politico-culturais, tambem abordamos a teorizacao que Michel Foucault (2001) elabora sobre o tema. De uma pequena, porem intensa conferencia publicada no ano da morte do pensador, intitulada Outros espacos, acompanhamos uma pequena e vibrante taxionomia, paradoxalmente flexivel, da espacialidade, que tambem funciona como um operador analitico que poderemos usar no estudo de nossa obra em questao.
Foucault parece continuar o seu trabalho de arqueologia, que e movido pela preocupacao em compreender a genese de teias teoricas, conceitos, construtos institucionais, grades disciplinares e afins. Aqui, sua preocupacao e a distincao de uma cronotopia da espacialidade. Inicia por demonstrar que a nocao de espaco, ate a Idade Media apresentada por uma rigida estrutura hierarquizada, foi dessacralizada de seus valores predominantemente teologicos, na consolidacao das perspectivas renascentistas. Tal laicizacao, porem, do espaco deu-se mais no plano teorico do que pratico. Essa desconstrucao de valores tradicionais religiosos e aristocraticos, segundo o autor--e um projeto de avancos cientificos e academicos que ainda esta em curso, mesmo na contemporaneidade.
Tal processo de compreensao logica e social do espaco, para Foucault, evolui de uma perspectiva fechada para a relacional. Assim, a nocao de espaco sai do contexto de uma definida localizacao--o espaco unitario, coeso e fechado--para o contexto da extensao--aquele espaco marcado por um referencial localizado em uma rede de possibilidades de movimento--ate chegar ao contexto da posicao aquele contexto do espaco visto como posicionamento, no qual o aspecto relacional de seres, coisas e situacoes e mais marcado pelo aspecto da relacao do que pela substancia geografica ou pelo movimento individualizacao que territorializa determinada espacialidade.
Das possibilidades do espaco marcado de modo provisorio pela posicao, teriamos aqueles conhecidos como: os posicionamentos de passagem, os de parada provisoria e aqueles de repouso. Esses espacos de posicionamento, por mais que possam ser fugidios em suas configuracoes pragmaticas, podem ser compreendidos, descritos, explicados e analisados por instrumentais quantitativos e qualitativos, como quaisquer outros metodos das ciencias humanas e sociais. Ao lado desse instrumental teorico, o autor tambem nos fala do que seriam espacos diferenciados e bastantes peculiares. Uma das categorias desses espacos agruparia os utopicos e os distopicos, no sentido de que nao sao moldados por realidades factuais determinadas, mas que comportariam caracteristicas potencializadas de qualidades positivas e/ou negativas em espelhamento com aqueles espacos de posicionamento marcados pela realidade consensual. Outra categoria seria, talvez das mais instigantes, a dos espacos heterotopicos. Para o autor,
Quanto as heterotopias propriamente ditas, como se poderia descreve-las, que sentido elas tem? Seria possivel supor, nao digo uma ciencia porque e uma palavra muito depreciada atualmente, mas uma especie de descricao sistematica que teria por objeto, em uma dada sociedade, o estudo, a analise, a descricao, a 'leitura', como se gosta de dizer hoje em dia desses espacos diferentes, desses outros lugares, uma especie de contestacao simultaneamente mitica e real do espaco em que vivemos; essa descricao poderia se chamar heterotopologia (Foucault, 2001, p. 415-416, grifo do autor).
Esses espacos sinteticos, complexos e de espelhamento invertido da realidade consensual teriam cinco principios: o da aparente universalidade, o da variacao diacronica, o da sobreposicao de virtualidades espaciais heterogeneas, o da ruptura com contextos tradicionais e, por fim, o principio das normatizacoes iniciaticas para o acesso a eles. Desses espacos, duas heterotopias sao definidas: a heterotopia de desvio e a de crise. A primeira, mais comum em sociedades antigas, trata de comportamentos--no campo da purificacao, da educacao especializada e afins que devem ser efetivados e controlados longe do convivio social que acontece nos espacos de posicionamentos cotidianos, particulares e publicos. A segunda, recorrente em contextos modernos e contemporaneos, e definida por comportamentos e situacoes que precisam de certo controle, de ajustes e contensoes: "Aquela na qual se localiza os individuos cujo comportamento desvia em relacao a media ou a norma exigida" (Foucault, 2001, p. 416).
De modo sintetico, tais teorizacoes sobre espacialidade e suas classificacoes parecem ser moldadas pela bipolarizacao das condicoes em que se teria o sujeito capaz de movimentar-se de modo mais ativo e aquelas que definem previamente os mapas de acao possivel. Juntam-se a isso indicacoes de que tais bipolarizacoes movem-se no sentido da influencia reciproca dos espacos que tambem podem ser configurados sob entrecruzamentos variados. Mesmo com redes conceituais particulares e de solos epistemicos, por vezes, diferentes. As teorias abordadas dialogam quanto a varios temas. Entre eles, destacaremos a funcionalidade exercida por espacialidades provisorias, processuais e abertas para compreendermos melhor alguns aspectos da construcao de rostidade, conceito que abordamos de modo esparso anteriormente, nas formacoes discursivas que compoem o diario de Anne Frank.
Dispositivos espaciais como estrategias de libertacoes possiveis
Ao lado de reflexoes sobre o espaco liso e estriado e de tantas outras nocoes de importante operacionalidade no campo das Ciencias Humanas, Sociais e Artes, que nao exploraremos de modo direto neste artigo, Gilles Deleuze e Felix Guattari elaboram o conceito de rostidade. Para eles,
Uma crianca, uma mulher, uma mae de familia, um homem, um pai, um chefe, um professor primario, um policial, nao falam uma lingua em geral, mas uma lingua cujos tracos significantes sao indexados nos tracos de rostidade especificos. Os rostos nao sao primeiramente individuais, eles definem zonas de frequencia ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressoes e conexoes rebeldes as significacoes conformes (Deleuze & Guattari, 1996, p. 32).
O conceito de rostidade supoe, entao, um campo de identidade criado na relacao de causalidade entre espaco e subjetividade fixada. Ou seja, de acordo com as qualidades pre-fixadas de modo historico dos espacos nos quais os sujeitos estao inseridos, formam-se as cartografias das pessoas que ali se locomovem, atuam e constroem seus esquemas comportamentais e de vida. Rostidade, nesse sentido, estaria ligada, de modo fixo, aos sentidos que estao ancorados por toda uma disposicao politica de existencialidade, funcionalidade e possibilidades relacionais inscritas em formacoes discursivas que transmitem, de modo cotidiano, sinais de construtos aparentemente naturalizados pelas convencoes e habitos. Soma-se a essas reflexoes, a ideia de que a rostidade pode ser deslocada, desconstruida e reconstruida de acordo com as flexibilidades permitidas pelos contextos de coexistencias, nos quais os sujeitos estao inseridos.
E com a perspectiva de rostidade, em seu aspecto de construto tambem flexivel, que retornaremos a escrita de 'si' e de seu conturbado contexto existencial, no qual Anne Frank se encontra. Nessa cartografia relativamente fechada, a adolescente nos oferece um depoimento e posicionamento estetico representativo da tragedia de sua vida, de sua familia, de seu povo, com suas tantas realidades etnicas e contextos de diaspora.
Na transcricao da descricao do Anexo Secreto, que fizemos anteriormente, acompanhamos as estrategias da construcao de um espaco substancial, coeso, fechado e tradicional. O anexo poderia ser aproximado do espaco tipologizado por um lugar relacional com limites definidos, como o faz Michel de Certeau; como um lugar antropologico, mesmo que provisorio, na otica de Marc Auge; como um espaco de posicionamento, na reflexao foucaultiana; e ate mesmo como espaco estriado, em cujo contexto as reflexoes de Deleuze e Guattari podem ser colocadas ao lado dos autores anteriormente citados. No entanto, o texto de Anne Frank tambem traz aberturas estrategicas para que o leitor, e, talvez, a propria narradora, tenha condicoes de flexibilizar o territorio paradoxal, que e o Anexo Secreto, e, por correspondencia, as possiveis subjetivacoes que ali sao processadas.
O carater paradoxal do refugio vem do fato de que o lugar, ao mesmo tempo em que assegura as condicoes de sobrevivencia, tambem tolhe a mobilidade das oito pessoas que ali estao encerradas. Utilidade e contencao de liberdade parecem criar certa ambiencia de heterotopia de desvio refletida por Foucault, quando ate mesmo o pensador faz alusao a essa possibilidade ao mencionar os espacos de cerceamento de liberdade para possiveis processos de adaptacao oficial.
O grupo de Anne, formado por judeus refugiados em territorio ocupado pelas forcas alemas, nao esta exatamente em uma prisao, dado o carater hibrido do refugio: salvacao e limitacao temporaria de mobilidade. Assim, desse lugar singular nao surgiriam apenas caracteristicas para a construcao de uma espacialidade univoca, coesa e fechada. Se o terror da condicao leva a necessidade da descricao pormenorizada e realista que citamos antes, por outro lado, vemos que as estrategias literarias, como a da ironia e a do humor, tambem podem funcionar como materiais para a criacao de outras camadas discursivas e semanticas no diario. Exemplo disso e o texto de recepcao que se escreve para receber o oitavo refugiado judeu no Anexo Secreto. Nesse texto, vemos um deslocamento e a reconstrucao do espaco de coercao, de terror e, ao mesmo tempo, de sobrevivencia do qual o territorio e formado de modo intenso, porem provisorio. Assim, vemos que Fritz Pfeffer, denominado ficcionalmente por Anne como Alfred Dussel procedimento de ficcionalizacao extensivo aos demais membros do grupo -, e recebido pelo seguinte prospecto, que e datado de terca-feira, 17 de novembro de 1942:
Prospecto e guia para o anexo secreto
Instalacao Especial destinada a acomodacao temporaria de judeus e outras pessoas desalojadas
Aberto o ano inteiro: Localizado num bairro lindo, silencioso e arborizado no coracao de Amsterda. Nenhuma residencia particular nas vizinhancas. Pode se chegar a ele pelo bonde 13 ou 17 e tambem de carro ou bicicleta. Para aqueles a quem esses meios de transporte foram proibidos pelas autoridades alemas, tambem se pode chegar a pe. Quartos e apartamentos, mobiliados ou nao, estao disponiveis a qualquer momento, com ou sem refeicoes.
Preco: Gratis.
Dieta: Baixo teor de gordura
Agua corrente no banheiro (mas sem banho, infelizmente) e em varias paredes internas e externas. Confortaveis fogoes a lenha para aquecimento.
Amplo espaco de deposito para uma variedade de mercadorias. Dois cofres grandes e modernos.
Radio particular em linha direta com Londres, Nova York, Tel Aviv e muitas outras estacoes. Disponivel a todos os moradores depois de seis da tarde. Pode ouvir transmissoes proibidas, com algumas excecoes, ou seja, estacoes alemas so podem ser sintonizadas para ouvir musica classica. E absolutamente proibido ouvir noticiarios alemaes (independentemente do lugar de onde estejam sendo transmitidos) e de repassa-los a outra pessoa.
[...]
Banhos: a tina esta disponivel a todos os moradores depois de 9 da manha dos domingos. Os moradores podem tomar banho no banheiro, na cozinha, no escritorio particular ou no principal, como quiserem.
Alcool: somente com fins medicinais.
Fim
(Frank, 2014, p. 72-74, grifos no original).
A tonalidade descritiva do refugio mudou significativamente daquela primeira, que continha pungente tom realista. Se, na primeira descricao, uma formacao discursiva explicita era a de marcar, pela linguagem, a tragedia do holocausto que se processava, na segunda descricao, de tom fantasioso, ironico e comico, ha a presenca daquelas estrategias de se imprimir na espacialidade os mecanismos necessarios para tornar as condicoes de sobrevivencia mais toleraveis, nos mais de dois anos que o grupo ficara no espaco de reclusao.
A espacialidade fixada de modo historico e pragmatico e alterada. Nao perde seus marcadores que a definem como assombrosa distopia da guerra mundial, que se torna cada vez mais densa na vida da adolescente, de sua familia e dos demais companheiros. Contudo, o diario de Anne Frank, atraves de sua escrita de cunho intimo e, ao mesmo tempo, heterogeneamente coletivo, constroi territorios semelhantes aos da heterotopia de desvio, porem com conteudo de destruicao minimizado pelas fantasias de sobrevivencia coletiva e relativamente cooperativa.
A espacialidade, como lugar de restricao, pode assegurar a historia como construcao pontual, coesa e fechada que monta a ambiencia tradicional de uma etnia, de uma nacao, de um sujeito. No entanto, quando contextos densos de crise se instalam, como estes vivenciados pelos perseguidos do holocausto causado pelo Terceiro Reich, os territorios assumem variadas camadas funcionais semelhantes as das heterotopias de desvio, paradoxalmente salutares por apresentarem restricoes ferozes e frestas para evasoes imaginativas que se mostram libertadoras ou mantenedoras do espirito livre para a construcao de solucoes viaveis, quando for o caso.
A situacao do grupo judeu do Anexo Secreto e uma daquelas de natureza radical. Terminal ate. Se algumas familias judias conseguiram fugir para territorios aliados, a Historia nos conta que por volta de seis milhoes de outros judeus nao tiveram mesma sorte em um dos maiores conflitos interetnicos que ja vivenciamos.
O diario de Anne Frank e construido, como podemos depreender das teorizacoes de Michel de Certeau, nao apenas da justaposicao de espacos diferentes, os dos dominios do terror e aqueles do dominio da ironia e do riso libertadores, e sim na forma de estratos imbricados: "Sao inumeros os elementos exibidos sobre a mesma superficie; oferecem-se a analise; formam uma superficie tratavel" (Certeau, 1998, p. 309).
Os planos estratificados que tornam a espacialidade lugares ou nao lugares, e correlatos, permitem a quebra de uma causalidade de mao unica entre territorio e sujeito individualizado. Fatores de rostidade, criados por rostificacoes conservadoras, podem ser desconstruidos, no que Deuleuze e Guattari denominam de desrostificacoes. Assim, uma das possiveis acoes eficazes de libertacao dos sujeitos, em condicao de diaspora e de refugio provisorio, talvez seja a de perceber, de modo intencional ou imaginativo, as condicoes de perceber e construir instrumentais que desconstruiriam a fixidez dos rostos--identidades espaciais e subjetivas definidas de modo solido e terminal.
De situacoes estratificadas, Anne Frank tem produtiva verve. Sua percepcao nao se satisfaz com determinados arquivos de saberes, valores e crencas da etnia judaica. Talvez nossas crencas a esse respeito, o do apego do povo judaico internacionalizado a suas tradicoes, seja fruto de preconceitos historicos seculares que as comunidades judaicas sofrem por parte de comunidades nao judaicas, que nao se mostram propensas ao hibridismo etnico e politico, como refletem Jaco Ginsburg (1970) e Julius Guttman (2003).
A garota que descreve e reinventa o Anexo Secreto talvez pertenca aquele campo cultural e politico recorrente em comunidades transnacionais que estao mais abertas as trocas culturais heterogeneas, que acabam por criar a condicao singular de um dos importantes fatos antropologicos implicados na nocao de pertencimento. Assim, Anne, em sua subjetivacao dialogica, que e bem instigante e curiosa para sua idade, se insere na produtividade de identidades cuja rostidade e colocada em dinamica de nomadismo. Daquele nomadismo que, mesmo em condicoes de extrema adversidade, mostra-se aberto a compreensao e, quando possivel, ate mesmo ao uso consciente de valores, crencas e tradicao da outridade.
A identidade judaica sugerida na narrativa de Anne, como ja mencionamos de modo esparso, aproxima-se do conceito de identidade rizomatica de Delleuze e Guattari (1995). E uma identidade nao tao enraizada, mas que e tambem capaz de florescer em multiplos nodulos: tradicoes, familia, comunidade, historia judaica e costumes se somam aos estudos nao judaicos, as incertezas da guerra e do destino familiar, ao odio e a brutalidade germanicos, a insercao do judeu desterrado de Frankfurt na comunidade holandesa--um exemplo da possibilidade de convivio e, principalmente, da alteridade na qual Anne se constroi--uma alteridade ao proprio grupo judaico, familiar e comunal, com quem ela e obrigada a conviver intensamente no espaco exiguo. O paradoxo e que uma identidade rizomatica e uma identidade antigenealogica, e uma identidade que se abre ao multiplo, se opondo ao inexistente rosto judaico tipico que os alemaes tentaram exterminar.
Anne simpatiza-se com a flexibilidade politica e cultural dos holandeses e a ajuda essencial dos amigos holandeses nao judeus ao grupo do Anexo Secreto; ouve com prazer as transmissoes radiofonicas inglesas, nas quais a propaganda contra o nazismo e afins prometem agilizar, com os governos aliados, o desmonte da maquina de guerra do eixo e, assim, libertar os povos oprimidos. Os adultos e adolescentes do refugio montam um programa de leituras e estudos sistematicos estruturados por varias disciplinas que contemplam o aprendizado de varios idiomas e historias de povos nao judeus. Ou seja, seus interesses nao se restringem ao campo sociocultural judaico.
Dessa forma, o espaco limitado do Anexo Secreto deixa de ser apenas um lugar de posicionamento geografico realista e de um posicionamento psicologico individualista para se tornar algo maior que uma heterotopia de desvio. Parece que surge ai um exercicio de desterritorializacao que acaba por desrostificar identidades definidas tragicamente pelo campo da guerra. Desfaz-se, sem procedimentos de alienacao, espacos autoritarios e rostos definidos apenas pela subserviencia a normas de exclusao radical.
Por fim, a narrativa pessoal/coletiva de Anne Frank nos oferece uma cartografia na qual identidades diasporicas, aquelas produzidas por mobilidades espacio-subjetivas, forcadas ou desejadas, sao controladas e manipuladas por governos autoritarios. No entanto, a escrita imaginativa, com biografemas pontuais, possibilita uma ressignificacao desse contexto da mobilizacao forcada. Se a diaspora e um movimento historico particular ao povo judeu, pensamos, com Stuart Hall (2003), que ela tambem pode ser deslocada para um campo mais amplo. Nesse campo, a saida forcada do solo de origem, em algumas circunstancias, e relativamente capaz de propiciar encontros dialogicos entre sociedades heterogeneas.
No caso de comunidades judias na Europa em guerra, percebemos que a situacao de diaspora seguiu um curso no qual negociacoes politico-sociais normalmente nao geraram dialogos positivos para grande parte desse povo. No entanto, do seio dos campos da morte, uma chama passa a iluminar o futuro de nossas relacoes humanas, na forma de um diario de uma adolescente desejosa de mobilidades psicossociais libertarias.
Consideracoes finais
Se a possibilidade de libertacao pelas enunciacoes discursivas nao foram capazes de salvar sete membros do grupo refugiado, pois apenas Otto Frank se salva do exterminio em campos de concentracao, o depoimento escrito por Anne Frank sobreviveu. Ao lado da escrita, o espaco da Rua 'Prinsengracht', 263, tambem sobreviveu. Talvez seja um dos mais famosos e visitados lugares, hoje museificado, da cidade de Amsterda. Povos do mundo inteiro o frequentam para participar do universo de Anne Frank e de seu grupo de refugiados.
Provavelmente tais visitantes, leitores diretos ou indiretos do diario de Anne, fiquem imersos nos exercicios de decifrar os dados espaciais e discursivos que refletem as resistencias, mesmos que no campo das microrresistencias, diante das grandiosas dimensoes do holocausto que a desconstrucao dos espacos totalitarios permite entrever. Dessas microrresistencias, transmutadas em crencas coletivas de desejos de libertacao e construtos sociais que respeitam as diferencas colocadas em dinamica de posicionamentos abertamente relacionais, a rostidade subalternizada as forcas de destruicao se transforma em possibilidades de subjetivacoes dialogicas que nos convidam, como leitores que somos, a criarmos outros espacos e principios de coexistencia pacifica.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v39i1.31035
Referencias
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Received on February 20, 2016.
Accepted on May 10, 2016.
Jorge Alves Santana (1) * e Benjamim Rosenthal (2)
(1) Progmma de Pos-Graduacao em Letras e Linguistica, Departamento de Estudos Literarios, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goias, Av. Esperanca, s/n, 74690-900, Chacaras California, Goiania, Goias, Brasil. (2) Fundacao Getulio Vargas, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: jorgeufg@bol.com.br