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文章基本信息

  • 标题:The disguised prince in Gil Vicente's novelistic theater/O principe disfarcado no teatro romanesco de Gil Vicente.
  • 作者:Nepomuceno, Luis Andre
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2017
  • 期号:July
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa

The disguised prince in Gil Vicente's novelistic theater/O principe disfarcado no teatro romanesco de Gil Vicente.


Nepomuceno, Luis Andre


Introducao

Quando, em 1586, em Lisboa, publicou-se a segunda edicao da Compilacao de toda las Obras de Gil Vicente, por Andre Lobato, embora sofrendo as rasuras da Inquisicao, pelo menos a tragicomedia Don Duardos contou com uma didascalia adicional que, em muitos sentidos, pode iluminar os propositos do autor a epoca de sua composicao: uma carta a D. Joao III, a guisa de prologo, dando-lhe noticias daquela peca que a historia consagraria como o primeiro presente de Gil Vicente ao governo daquele monarca. Alguns pormenores desse prologo instruem nosso entendimento da peca, senao de toda aquela fase do dramaturgo: Gil Vicente deixa notorio que o argumento novo de seu teatro (a dramatizacao de trechos de romances de cavalaria) exigiria dele um esforco maior, a que o antigo poeta das farsas e moralidades nao estava habituado: "[...] entendi que deveria colocar mais velas na minha pobre embarcacao [...]" (1) (Dom Duardos, 1586, II, prologo), ele confessa (2). Em seguida, evidencia que a composicao fora intencionalmente dedicada ao monarca, escrita com a diligencia de quem deseja granjear-lhe a simpatia e o gosto pessoal: "E assim, com o anseio de ganhar seu contentamento, fiz o que ja desejava com ardor" (3). A razao de tudo vinhalhe a lucidez: sempre tomado pelas antigas motivacoes religiosas de seu primeiro teatro, o dramaturgo ainda nao contava com "[...] conveniente retorica que pudesse satisfazer o delicado espirito de vossa alteza" (4).

Nao ha duvidas de que o teatro de Gil Vicente tomava rumos novos a partir de 1521, depois de cumprir imensa trajetoria devocional e doutrinaria, concluida com a celebre representacao do triptico das barcas. Depois disso, o mestre portugues buscaria generos essencialmente ligados a alegoria profana e a comedia, nao sem antes tentar empreender nova retorica que movesse o "[...] delicado espirito" do principe Joao: o teatro romanesco, como o definiu Antonio Jose Saraiva (2000, p. 40), ou seja, "[...] a encenacao de historias completas, com principio, meio e fim, geralmente inspiradas nos romances de cavalaria".

Jose Alberto Ferreira chega a dizer de uma 'viragem estetica', ou uma 'discreta invencao', intencionalmente concebida para abarcar um grande projeto de imaginacao do imperio, numa especie de "[...] (re)afirmacao da producao teatral ao servico de um modelo de cultura de corte" (Ferreira, 2004, p. 22). Tal 'paradigma celebrativo' deveria comportar tanto o enaltecimento e a apologia do reino e do imperio quanto a critica social, aqui tambem entendida como projeto de admoestacao dos erros da maquina administrativa. Gil Vicente, solicitado a participar das conquistas do governo monarquico, teve uma producao resultante de 'encomendas' e interesses, a partir de beneficios concedidos, respectivamente, pela 'rainha velha', D. Leonor; pelo rei D. Manuel; e, depois, pelo filho deste, D. Joao III. Ainda que pareca restritivo reputar assim a obra de Gil Vicente, nao devemos esquecer a relacao frequente a epoca entre a pratica teatral e a logica movida por lacos de mecenato, tao comum na historia do humanismo e nas composicoes do renascimento ao longo do sec. XVI.

Inspirado pelo tom galante e aristocratico das novelas cavaleirescas, Gil Vicente abandonou as criticas a fidalgos tiranos e vaidosos e a escudeiros ridiculos e covardes (Ines Pereira, Quem tem farelos?), para cultivar estilo mais solene, empenhado no elogio do cavaleiro de linhagem cortesa. O dramaturgo vinha lendo romances de cavalaria em espanhol desde ha muito tempo: uma analise do Auto da Sibila Cassandra (composto entre 1509-1513) sugere, por exemplo, a leitura de uma versao espanhola, publicada em 1512, do Libro del Famosissimo Guerrino detto il Meschino, de Andrea da Barberino, romance italiano de aventuras; e muitos outros autos vicentinos evidenciam a sua leitura da Cronica Troiana, versao galega medieval do ciclo de Troia. Mas a ascensao do teatro com motivos cavaleirescos, a partir de 1521, aponta para leituras e interesses novos. Cruz (1990, p. 223) argumenta que o dramaturgo fora tambem levado pelo anseio de evidenciar a batalha dos nobres cavaleiros portugueses na luta contra mouros no Norte da Africa ou conquistando terras e fazendo novas batalhas contra outros mouros no Oriente e na Asia Extrema. E Anibal Pinto de Castro lembra igualmente que, mesmo parecendo extemporaneos num seculo movimentado pelo mercantilismo do imperio maritimo, sobretudo num seculo em que ja nao andavam mais a errar pelo mundo os cavaleiros em busca de aventuras, os romances de cavalaria (e por extensao, o proprio teatro romanesco de Gil Vicente) tinham a razao de ser em seu seculo e enobreciam

[...] a tal ponto aqueles que lutavam na guerra cruzadistica da India e, sobretudo, na do Norte de Africa que os imunizava das arremetidas do proprio Diabo, como acontece aos quatro fidalgos, membros da Ordem de Cristo [...] da Barca do Inferno (Castro, 2003, p. 16).

O programa de renovacao dos romances de cavalaria no palco do dramaturgo portugues era no minimo ousado e inovador, a julgar pelo que ele ja produzira ate entao, pois que assumia contornos novos e irrestritos. Paul Teyssier, admitindo a retorica requintada com que os personagens vicentinos passaram a se exprimir em seu novo teatro, diz que a leitura dos romances em voga na Espanha e em Portugal desde o final do sec. XV "[...] contribuiu de maneira decisiva para a renovacao da arte de Gil Vicente" (Teyssier, 1982, p. 83).

Cumpre dizer que o ousado programa vicentino de teatralizacao de entrechos das novelas de cavalaria fazia parte de um plano mais amplo, dado ao elogio do imperio e de suas grandezas, afeito a divulgacao da politica dos monarcas, em sua representacao das virtudes da nobreza. O teatro romanesco, desse modo, novo genero a que Gil Vicente se dedicou a partir de 1521 (a considerar como certa a montagem de Rubena nessa data), parecia responder notoriamente ao gosto e aos interesses de D. Joao III, que a epoca andava pelos seus 19 anos, procurando noiva, olhos postos em casamento diplomatico, aprendendo os oficios de monarca, herdando um gigantesco imperio por todos os cantos do planeta e mantendo, para seu divertimento, o genio de seu dramaturgo de corte como o 'mestre de cerimonias' para as horas de folgar. So ao novo rei, ate 1536, foram encenadas pelo menos duas dezenas e meia de autos, numa media de dois autos a cada ano (Muniz, 2010, p. 79). E as pecas romanescas estiveram emblematicamente inclusas entre as primeiras encenacoes desse rico acervo dedicado a D. Joao III.

As quatro composicoes do novo genero constituem o corpus de analise deste trabalho: Rubena (1521), Don Duardos (1522), Amadis de Gaula (1523) e Viuvo (1524), a considerar unicamente um tema obstinado em todas elas: o disfarce de um principe que oculta provisoriamente sua identidade, levado por circunstancias sociais e pelo amor de uma jovem - de resto, motivacao assidua nas comedias renascentistas. Rubena e a historia de uma donzela espanhola, Cismena, nascida das aventuras de uma moca com um clerigo. Orfa de mae, vive aos cuidados de uma feiticeira, posteriormente de uma mae adotiva em Creta, ate ser requestada por um principe da Siria, que aparece disfarcado de pajem. Don Duardos, a mais bem acabada das pecas, inspirada no Primaleon (romance espanhol de cavalaria, continuacao do Palmerin de Oliva, e publicado em Salamanca em 1512), tem sua trama centrada no cavaleiro ingles Duardos, que se disfarca de um misero hortelao para se aproximar de Flerida, donzela de Constantinopla, movida, entao, entre o amor ao pobre estrangeiro e as conveniencias sociais. Amadis de Gaula, na mesma atmosfera aulica da peca anterior, e inspirada no romance homonimo de Garci Rodriguez de Montalvo, publicado em 1508, e a historia do cavaleiro que, apaixonado por Oriana e vendo-se vitima de intrigas de corte envolvendo sua infidelidade, toma novas roupas e disfarca-se de ermitao no deserto. Por fim, Viuvo e uma comedia de inspiracao propria, centrada nas tristezas de um inconsolavel viuvo que so ganha alegria depois que as duas filhas se veem casadas com nobres, um deles (Dom Rosvel) tendo se infiltrado na casa, disfarcado de pastor pobre, e assumindo as mais abjetas funcoes, como a de porqueiro e carregador de lenhas.

O principe encoberto

A considerar o esquema proposto por Stephen Reckert (1993, p. 45) de que Gil Vicente elabora seu teatro por meio de tres categorias (fontes, temas e personagens) e que essas categorias sao construidas por meio de tres procedimentos (variacao, combinacao e repeticao), e possivel entender que o tema do 'principe disfarcado' sofre mecanismos de variacoes em torno de um personagem essencialmente emblematico para o paradigma de nobre cortesao que se deseja colocar em cena. E um modelo, um perfil que fornece a Gil Vicente a concepcao de um significado de mundo. Esse disfarce permite expor um ser ambiguo, que e um 'ausente em presenca', como definiu Alvarez-Sellers (1995), um individuo que, nao estando presente como aquilo que ele e, transita por uma situacao que lhe permite ser, ao mesmo tempo, e. contraditoriamente, aquilo que e em essencia, embora nao sendo ele mesmo em aparencia. O nobre se reconhece pela sua essencia e natureza, nao por aquilo que as roupas lhe conferem.

Frente a essa hipotese de variacao em torno de um tema e considerando o breve quadro de resumos, podemos nos perguntar: Por que os principes se disfarcam de individuos menos nobres para conquistar os seus amores? Por que se metem em roupas de hortelaos, de pajens, de ermitoes para, ao final, desvendarem sua identidade e se mostrarem como sao--belos, nobres, virtuosos e grandes de carater? Qual o significado desse 'passeio' por uma nova identidade, sempre travestida de roupas da gente da vilania?

A esse respeito, as tramas sao pouco esclarecedoras e, curiosamente, na maioria dos casos, apenas as rubricas parecem oferecer indicios mais tangiveis: em Rubena, por exemplo, uma didascalia depois do verso 1.460 esclarece que um principe da Siria, vendo-se perdido por Cismena na cidade de Creta, "[...] se pos por paje de Felicio assi desconhecido, por que indo com ele a visse" (Rubena, didascalia, 97d). Sera, portanto, uma estrategia de aproximacao, a par das intencoes amorosas do principe. Em Viuvo, tambem uma rubrica denuncia estrategias de aproximacao identicas as do principe da Siria: depois do verso 388, diz-se apenas que Dom Rosvel, principe de Uxonia, enamorou-se das filhas do viuvo e "[...] porque nam tinha entrada nem maneira pera lhes falar se fez como trabalhador ignorante e fingiu que o arrepelaram na rua" (Viuvo, didascalia, 102a). Em Amadis de Gaula, o disfarce e uma especie de fuga para o anonimato. Caluniado, Amadis recolhe-se no deserto e assume identidade nova. Ja em Dom Duardos, peca em que o tema do disfarce vem mais requintadamente elaborado, as razoes se aprofundam: o heroi precisa camuflar-se na corte de Constantinopla, pois que desafiara a morte o principe local, Primaleon, irmao de sua amada, Flerida. Mas isso nao e tudo. Olimba, uma especie de conselheira do heroi, mistura de sabia e feiticeira, e quem explica ao cavaleiro que a conquista da amada sera feita "[...] com fadiga, porque e tanta a sua gravidade, meu senhor, que nao sei o que vos dizer" (5). Sera ela tambem a lhe sugerir a mudanca de habito: "[...] sera preciso mudar a vida e o nome e a condicao e as roupas" (6), acrescentando depois: "[...] com a paciencia de um principe tornado vilao" con paciencia/ de principe hecho villano" (7) (Dom Duardos, 475-477; 486-487). Em outros termos, o disfarce de hortelao sera para Dom Duardos um exercicio de paciencia para a lenta conquista da amada.

Walter Cohen, em reveladora analise marxista do teatro do renascimento na Espanha e na Inglaterra, sugere que o disfarce aristocratico na classe baixa nao passa de uma convalidacao da propria nobreza, a admitir que a classe nobre, na sociedade quinhentista, teve de conviver com as ameacas de uma burguesia urbana ascendente e com a nova realidade de camponeses buscando sua emancipacao economica: "[...] a mesma interacao de genero dramatico e forma teatral de producao gera efeitos socialmente subversivos a partir do uso recorrente de um disfarce nas classes baixas como forma de validacao aristocratica" (8) (Cohen, 1985, p. 189).

Disfarcar-se de aldeao, portanto, era uma especie de manobra do individuo aristocratico como a redefinir seu papel de nobre, ja que, mesmo disfarcado, sua nobreza de sangue, e mais que isso, seu valor de identidade nobre emergiam como realidades contestadoras da pressao capitalista. Ruralizado, o nobre transitava por uma nova realidade postica, para, depois, movido por uma verdade de classe, revelar-se aquilo que ele efetivamente sempre fora: um nobre dos pes a cabeca (9), para parodiar um verso de Shakespeare, em Rei Lear.

Dom Duardos apresenta-se como o hortelao de roupas humildes, mas ao mesmo tempo, propositadamente ou nao, e incapaz de esconder sua natureza nobre. Ao longo de toda a trama, Flerida e sua criada, Artada, sabem, como realidade escrita no coracao, que aquele empregado e mais, muito mais do que aparentemente se revela. "Deves falar como vestes, ou vestir como respondes" (10) (Dom Duardos, 744-745), diz Flerida ao disfarcado cavaleiro, notando-lhe a aristocracia, logo na primeira vez que lhe dirige a palavra. O recurso devera funcionar estrategicamente como tensao ou sugestao de misterio no enredo da peca: "Nao queiras saber quem eu sou" (11) (Dom Duardos, 1748), diz o cavaleiro encoberto a sua amada. Alina Villalva (1990, p. 17) observa que o disfarce de Dom Rosvel, em Viuvo, a sugerir extraordinaria habilidade de Gil Vicente para as variacoes linguisticas, revela-se tambem no plano da linguagem, pondo em cena uma identidade nobre, disfarcada de humilde que fala um castelhano ruralizado, intoxicado por dialetos, como o saiagues (que o dramaturgo tanto atribuira aos pastores rusticos da primeira fase de seu teatro) bem como o proprio portugues, tido como lingua menos nobre na literatura iberica do sec. XVI. Mas uma vez distante do viuvo, e na frente de suas filhas encantadoras, Dom Rosvel abandona o dialeto rude para ostentar o refinamento da linguagem de corte, tomada pelo requinte platonico e petrarquista. O disfarce de Rosvel e convincente e comico nas primeiras cenas, em que ele entra a modo de caipira, chamando-se Juan de las Brozas e inventando um passado quase picaresco de moco pobre, rejeitado pela noiva, malfadado, filho de uma mae maltratada e engravidada por um frade. Mas o nobre vai mostrando-se aos poucos, na palavra e no gesto, ate que Paula, uma das filhas do viuvo, admita: "Jesus, Jesus, Jesus, este homem e mais que um pastor" (12) (Viuvo, 578-579).

A julgar pelas hipoteses de Walter Cohen (1985), acima mencionadas, o passeio temporario dos nobres pelas classes baixas, a modo de fingimento e dissimulacao, adquire no teatro romanesco de Gil Vicente uma revelacao retorica: mesmo disfarcada na veste de pastores rusticos, a aristocracia deixa invariavelmente entrever o seu gesto nobre, nao por ostentacao ou contradicao do disfarce, mas porque nao e capaz de ocultar uma identidade que so se esconde para, uma vez desvelada, mostrar o que realmente e. Trata-se de uma fantasia literaria que nos obriga a entender que a essencia, pelo menos essa essencia de classe social, a que Cohen se refere, estampa-se com muito mais nitidez do que a aparencia e capaz de sugerir. Toda a acao dramatica de Dom Duardos gira em torno de um drama pessoal de Flerida, que nao consegue entender como e possivel que um hortelao, entretido em tao vil oficio, seja dotado de tao altos sentimentos, de tao nobres palavras, distantes e alheias a sua classe social. Tal estrategia literaria so poderia ser justificada por uma convalidacao da materia nobre, com tudo aquilo que lhe compoe a essencia de gestos, de palavras, de pensamentos e, sobretudo, de valor segregativo.

No entanto muitos criticos que se debrucaram sobre o teatro romanesco de Gil Vicente tem chamado a atencao para uma etica do valor do individuo como excelencia humana acima do valor de classe. Dom Duardos se disfarca de hortelao para ser amado nao por ser o principe que e, mas por ser o individuo amante que buscar ser: "Ele nao queria ser amado somente pelo fato de ser um nobre cavaleiro, e sim pelo seu interior" (Nora, 2010, p. 4). O problema poe em xeque uma questao crucial para as pecas romanescas de Gil Vicente e pode distorcer o sentido mais profundo daquele amplo projeto de elogio do imperio e de suas grandezas, mencionado atras, incluindo a divulgacao irrestrita das virtudes da nobreza e da politica monarquica. A leitura da relevancia do individuo como valor acima da classe social parece romantica e anacronica aos propositos de Gil Vicente naquele cenario cortesao que ele vivenciou no paco de D. Joao III: para tao altas figuras, dizia o dramaturgo na carta-prologo ao rei, eram necessarios uma "[...] doce retorica e um estilo apurado" (13) (Dom Duardos, 1586, II, prologo).

Muito dessa questao da essencia do individuo acima da qualidade e dos distintivos de nobreza esta, uma vez mais, em Dom Duardos, sobretudo nas diversas representacoes da expressao amorosa em personagens de classes distintas. Alvarez-Sellers (1995), por exemplo, considera que o amor, em sua mais alta instancia, nao e exclusividade dos nobres, no teatro romanesco de Gil Vicente. O problema comeca com a fatidica presenca do monstruoso casal que adentra a corte de Palmerin, em Constantinopla: Camilote, o desconjuntado 'cavaleiro salvagem', e sua amada, Maimonda, "[...] cume de toda a fealdade" (Dom Duardos, 1562, didascalia, 124b), e termina com a desconcertante felicidade conjugal de Julian e Constanza, o casal de hortelaos que acolhe Dom Duardos em seu jardim. Sao dois modelos dispares, porem reveladores de uma relacao amorosa intensa e inquestionavel. Camilote elogia sua amada desprovida de beleza, que recebe com orgulho e presuncao a corte obcecada do cavaleiro, e Julian nao consegue dar dois passos pelo jardim sem a presenca de sua esposa adorada.

Gil Vicente contradiz os principios do amor cortes, cujo codigo so pode ser mantido em almas e corpos nobres, para demonstrar que o amor pode sempre alcancar todo aquele que e capaz de senti-lo, ate mesmo um 'cavaleiro selvagem' como Camilote, ou dois rusticos como Julian e Constanza Ruiz, os jardineiros e falsos pais do jovem hortleao.

Gil Vicente contradiz os principios do amor cortes, cujo codigp so pode ser mantido em almas e corpos nobres, para demonstrar que o amor pode sempre alcancar aquele que e capaz de senti-lo, ate mesmo um 'cavaleiro selvagem' como Camilote, ou dois rusticos como Julian e Constanza Ruiz, os jardineiros e falsos pais do jovem hotelao (14) (Alvarez-Sellers, 1995, p. 21).

Tatiana Jorda Fabra (2009, p. 88) tambem considera que a identidade dos cavaleiros feios e dos hortelaos, a despeito de sua classe social e de seu ridiculo que, por vezes, se insinua, se "[...] converte em simbolo da igualdade de qualidades ante o amor verdadeiro (espiritual), por meio de dialogos proprios de um amor idealizado e profundo como o dos protagonistas" (15).

Maria Joao Amaral, entendendo que, em Rubena, ha mais vulgarizacao do que caracterizacao do modelo cortes, aceita a virtude igualmente como valor humanista acima da nobreza: o principe da Siria que corteja Cismena so a conquista por causa do "[...] reconhecimento inequivoco da sua virtude como valor maior por parte do homem que a ama" (Amaral, 1991, p. 27). Por fim, e Maria Joao Dodman (2003) quem radicaliza essa opiniao, redefinindo o papel de Maimonda, a feia que deve ocupar posicao primordial na trama da peca, uma vez que, sendo feia, nao se abate pela desvantagem, torna-se presuncosa e segura de si e acaba por revelar que o amor cortes pauta-se pela superficialidade das aparencias.

Embora a discussao tenha circulado com certa frequencia nos interpretes de Dom Duardos, talvez seja importante reconsiderar a questao em breves linhas: o episodio de Camilote e Maimonda e notoriamente parodico e funciona como elemento de oposicao aos valores de corte que Gil Vicente anseia por representar. Os personagens sao aquilo que sao, no proprio registro do autor ('cavaleiro salvagem' e 'cume de toda a fealdade'), e funcionam na peca como referenciais distorcidos e parodicos do 'paradigma celebrativo' do autor, a exemplo de tantos outros modelos de pares opostos na arte de Gil Vicente. A presuncao de Camilote, querendo futilmente ostentar a amada na corte ("Para mostrar aquela por quem morro" (16): Dom Duardos, 215), contrasta com a busca da humildade e do silencioso recolhimento de Duardos no jardim, e o orgulho ingenuo de Maimonda contrasta com a nobre discricao de Flerida. Buscar no casal uma revelacao humana que alcance a dimensao do amor cortes de Duardos e Flerida, simplesmente porque neles o amor se expressa com autenticidade, ou ainda com a sinceridade dos apaixonados, e negligenciar o Zeitgeist vicentino, o projeto valorativo da corte e de seus ideais intrinsecos, empreendido por D. Joao III.

O mesmo se da com a felicidade conjugal de Julian e Constanza, que vivem um amor natural e domestico, distantes e inconscientes da idealizacao espiritualizada de Duardos, para quem o convite de casamento com a morena Grimanesa mostra-se um insulto a seu alto proposito de amor espiritualizado e de revelacao da nobreza disfarcada nas roupas de hortelao. Elias Rivers (1961, p. 761) ponderou bem essa questao, quando entendeu que "[...] o amor concede a sua graca apenas a almas mais nobres, e mesmo elas devem primeiro se humilhar, como o fez Dom Duarte, ao se tornar um jardineiro" (17). Camilote deve ser visto como representando a mesma funcao social do anao, em Amadis de Gaula: parodico, asqueroso, a contracultura do refinamento cortesao.

Aos nobres, a elevacao do amor espiritual, a nobreza que inevitavelmente se mostra, mesmo quando disfarcada de roupas humildes. O principe encoberto, esse personagem ausente em presenca, tema recorrente em pelo menos quatro pecas do acervo romanesco de Gil Vicente, e um ideal de celebracao, um modelo que esconde sua identidade nobre, apenas para evidenciar que, uma vez escondida, devera ser revelada, como a mostrar que ela nunca fora inteiramente encoberta. As roupas humildes encobriram-lhe a fachada, porem nunca a essencia, essa essencia de uma nobreza que o dramaturgo portugues fez questao de revelar.

O principe revelado

Ja temos observado que, no exercicio de transpor para o teatro certos entrechos dos romances de cavalaria, Gil Vicente naturalmente se viu diante da necessidade de adaptacoes. A gigantesca natureza diegetica dos romances seria impraticavel nos palcos, e o dramaturgo logo entendeu que seu "[... ] novo estilo [...]" (que, segundo Antonio Jose Saraiva [2000, p. 41], nao lhe rendeu continuidade, por falta de sucesso) exigiria dele um esforco adicional de adequacao a linguagem cenica. Mesmo nao contando com prestigio junto a um publico ainda afeito ao teatro doutrinario, de inspiracao erguida nos autos de moralidade medievais, o novo estilo vicentino nao era episodio de pouca monta. Elaborar uma acao dramatica, com senso de historia e trama de herois, imbuidos de natureza psicologica densa, vivenciando episodios com comeco, meio e fim, para um publico condicionado pelo didatico 'desfile' de personagens-tipo, herdeiros da dinamica do teatro devocional, era uma experiencia no minimo inovadora. Em Portugal jamais se vira coisa parecida. Os herois romanescos (principes, cavaleiros, damas) vinham preencher o palco vicentino com elementos novos, plenos de dramas psicologicos, imbuidos de universo complexo, a revelar individuos amorosos, ensimesmados, angustiados, tomados de agitacao e duvidas, alimentando experiencias emocionais penosas e desgastantes, como herois da nova era renascentista.

Frente a dimensao descomunal dos romances que lhe serviram de repertorio, Gil Vicente logo entendeu que a acao dramatica era arte nova e diversa: tudo deveria ser condensado, e, na ansia de evidenciar uma face especifica da materia cavaleiresca, o dramaturgo "[...] desdenha os feitos heroicos para privilegiar as aspiracoes emocionais" (Alvarez-Sellers, 2007, p. 163), ou, como esclarece Anibal Pinto de Castro (2003, p. 23): [...] a movimentacao das aventurosas facanhas dos cavaleiros, andantes por mares, terras e longes ilhas, e substituida, na versao vicentina, por uma unica aventura--a quete amorosa, que se transforma assim, ela tambem, numa especie de viagem interior, sujeitos aos encontros e desencontros dos afectos, tal como no jogo dialetico que a cortesania quatrocentista concebera.

Frente ao repertorio de feitos heroicos dos cavaleiros que lhe serviram de inspiracao, Gil Vicente procura evidenciar neles nao a bravura, nao a vitoria na guerra, mas outra peculiaridade de sua natureza nobre: o amor, ou antes, a vitoria sobre eles mesmos. Na cena introdutoria de Amadis de Gaula, os irmaos cavaleiros, filhos de Perion de Gaula, anunciam suas pretensoes futuras, seus projetos de conquistas belicas ('as armas do cavaleiro'18, diz Galaor), como a sugerir que estaremos diante de uma peca romanesca de guerra, mas Amadis subverte nossa expectativa e anuncia coisa diversa: que vai a Inglaterra, na corte de Lisuarte, onde devera servir ao amor de Oriana, ja quase antecipando o tema da tragicomedia em questao, que e a renuncia as armas e a gloria cavaleiresca: "Nao me seduz o desejo da fama, mesmo cansado, pois sirvo apenas a Oriana [...]" (19) (Amadis de Gaula, 62-65).

O tema do principe disfarcado, no teatro romanesco de Gil Vicente, poe em cena esta singularidade dos cavaleiros: o adeus as armas. O abandono da guerra, ou mesmo o abandono da experiencia frivola do mundo cortesao, em busca da aventura amorosa, pautada pela solidao e pelo subjetivismo melancolico, e tema antigo na literatura. A Ecloga X, de Virgilio, parece ter inaugurado a tematica, ao compor o retrato entristecido de Caio Cornelio Galo, general romano que abandona a vida publica e as pretensoes politicas para se desesperar, sozinho, na solidao da Arcadia, por conta de uns amores malfadados por Citeris, a mulher que o abandonara por um oficial do exercito de Agripa. A bucolica que consagrou uma das mais celebres sentencas de Virgilio, o "Amor vence tudo [...]" (Omnia vincit Amor, unica frase do acervo classico que Gil Vicente menciona em sua obra, conforme Carolina Michaelis de Vasconcelos, 1949, p. 238) levou tambem ao tema do romance em prosimetro que fundou o arcadismo moderno: a Arcadia (1504), de Jacopo Sannazaro. Ali, o heroi cortesao abandona a vida citadina para se atirar a vivencia arcadica, modelo de vida tomado pela melancolia do amor cortesao e pelo reconhecimento da experiencia filosofica platonica.

Pode parecer distante, mas o recolhimento e a experiencia melancolica dos cavaleiros de Gil Vicente, distanciados em espacos arcadicos e alheios a euforia e a grita das convencoes esnobes da corte, tem reminiscencia na literatura arcade e apresentam uma dupla intencao: de um lado, evidenciar a experiencia amorosa platonica como modelo de vida nobre, quase como pratica de iniciacao; de outro, atribuir tal experiencia a uma especie de educacao do principe, conforme modelo de politica renascentista. Mas a estrategia conta com um jogo invertido: para colocar em cena a grandeza nobre do principe, o principe se torna o aldeao, como que a mostrar que, mesmo na aparencia do aldeao, sera sempre o principe.

E altamente revelador que Gil Vicente, ao manipular a fartura de temas epicos da novela de cavalaria de seu tempo, tenha negligenciado o repertorio de guerras e batalhas para sustentar delongas na materia arcadica e no sentimento nobre do amor. E ali que se encontra a essencia de seu teatro romanesco. A dimensao arcadica de Dom Duardos, por exemplo, foi evidenciada por Damaso Alonso, em sua importante edicao da obra vicentina, quando o critico chama a atencao para o cenario da horta como espaco de lamentacoes amorosas, como um "[...] personagem mudo, que esta nas mentes e nos coracoes de todos, que preside a acao, e [... ] transforma a cena numa encantadora criatura de arte" (20) (Alonso, 1942, p. 22). Como nos romances e poemas arcades, o cenario compoe parte da existencia do proprio personagem, que abandonara a cidade, ou a guerra, por extensao, para vivenciar a natureza como reflexo de suas amarguras. A Arcadia nao e um cenario, e a viva expressao dos afetos.

Mais do que vitoriosos na guerra, os cavaleiros vicentinos sao vitoriosos de si mesmos: metidos na solidao de um cenario arcadico, lutam contra o proprio sentimento, servem mais do que sao servidos, renunciam a sua nobreza e buscam praticamente um ritual iniciatico do amor nas esferas mais distantes de seu espaco social: o jardim, o deserto, a casa dos humildes. Dom Rosvel, em Viuvo, mesmo sabendo que as filhas do viuvo ja se arranjaram em casamento futuro, prefere ser o porqueiro da casa, que e o mais mediocre dos oficios, porque servir a elas e paraiso: "[...] e a fadiga de meu trabalho por vos, mui formosas damas, e paraiso" (21) (Viuvo, 762-764). Dom Rosvel, renunciando a propria nobreza social (pelo menos naquilo que a nobreza tem de privilegios de classe), mas nao a nobreza de sentimentos, talvez seja, dos principes disfarcados de Gil Vicente, aquele que mais se humilha e mais se mortifica. Seu desprendimento e sua capacidade de renuncia sao comoventes para o efeito cenico desejado na peca.

Amadis de Gaula, por sua vez, e aquele que mais sofre por ter de renunciar as armas: "Tu, minha espada guarnecida de tao formosas facanhas, em fogo sejas fundidas tal como ardem minhas entranhas, consumindo-me a vida" (22) (Amadis de Gaula, 736-740). A cena em que toma a vassoura por uma espada, quando o ermitao lhe pede que trabalhe (Amadis de Gaula, p. 1037-1044), de notorio efeito comico, denuncia o quanto para aquele renunciar as armas significa um sacrificio que apenas o amor de Oriana poderia justificar. Como explica Stanislav Zimic (2003, p. 333), "[...] a vassoura, em contraste com a espada, nos impressiona como uma metafora muito eficaz do extremo e humilhante sacrificio que Amadis esta disposto a suportar por seu amor a Oriana" (23).

Ser ermitao nao e de sua natureza: e um disfarce que, para alem de esconder sua identidade nobre e cavaleiresca, revela igualmente sua capacidade imensa de sacrificio como exercicio de iniciacao ao amor. Cabe lembrar, no entanto, em breve nota e na contramao desta analise, que Amadis de Gaula tem sido tomada como peca comica e seu personagem central, como parodia do personagem cavaleiresco do romance, desde que T. P. Waldron e T. Hart publicaram uma versao da peca na decada de 1950. Muitos tem corroborado a interpretacao, embora outros tenham se esforcado por rejeitar sumariamente essa possibilidade de analise. Teresa Amado (1992, p. 23), por exemplo, afirma que, embora Gil Vicente atribua a Amadis certa dignidade em sua aventura amorosa, "[... ] nao resiste a explorar nela alguma medida de ridiculo". Wardropper (1964, p. 7), ao contrario, que le as tragicomedias vicentinas sob o enfoque do amor em seu sentido metafisico (e, portanto, nada parodico), entende, por exemplo, que Dom Duardos e Amadis sao individuos que lidam, respectivamente, com a busca da identidade e da verdade. Stanislav Zimic (2003, p. 340), grande vicentista de nosso tempo, sentencia, por fim, que "Gil Vicente utiliza a materia cavaleiresca com grande sensibilidade" (24).

De toda forma, o enfoque desta analise propoe compreender que, uma vez reconhecido e revelado o principe, temos, portanto, o cerne investigativo de Gil Vicente sobre a natureza dos nobres: o amor espiritual como distintivo de classe, muito alem das convencoes poeticas, muito alem da retorica empolada que os vaidosos farfalham pela corte, algo distante da parodia que, quando se faz presente, esta nos personagens circunstanciais (Camilote e Maimonda, o anao de Amadis, o compadre do viuvo), sempre a fazer contraponto a dimensao dramatica dos nobres. Mais que manter o exercicio do elogio do amor, como linguagem platonica e petrarquista, os principes disfarcados sacrificam-se de fato, cuidando de hortas, carregando lenha, varrendo quintais, servindo as suas damas em humildade, sufocando o que neles e o requinte de costumes, mas, ao mesmo tempo, edificando epopeia maior: o dominio de seus proprios impetos, o poder sobre a presuncao, a forca da discricao sobre a fanfarrice ridicularizada.

O principe da Siria, em Rubena, por certo o menos sacrificado de nossos cavaleiros humilhados, so conquista o amor da dificil Cismena, porque, mesmo que aparentemente movido por retorica, e capaz de tocar o coracao da menina com breve discurso sobre as virtudes platonicas e a nobreza de alma ("Platao nos diz que a virtude e maior que a condicao [...]" (25), ele diz [Rubena, 1708-1709]), enquanto os demais 'galantes sabidos' (Felicio, Dario Ledo e Crasto Liberal) apenas empolam retoricas vazias e atitudes extravagantes e suicidas. Crasto Liberal, o mouro velho, mostra-se repulsivo na manifestacao de um amor serodio, levado a conquista, algo ridiculo de galante malversado na arte poetica, a exemplo do velho da horta que Gil Vicente colocara em cena anos antes. Felicio, corrompido pelo desatino do desespero amoroso, levado a morte, arrasta-se as montanhas para chorar suas magoas, numa cena antologica em que os lamentos se convertem em eco: "[...] a alienacao do amador atinge aqui o seu acume pelo nao reconhecimento da propria voz: a cisao interior leva a perda do ponto de referencia e ao desconhecimento" (Amaral, 1991, p. 26). Longe dos principes encobertos, que conhecem suas intencoes, que trabalham surdamente o disfarce como estrategia de aproximacao e de autocontrole, Felicio e o desesperado que nao tem poder sobre si. Sua morte nas montanhas, tragica e fatalista, e a contrapartida do modelo cultural, pensado por Gil Vicente.

O principe revelado, uma vez tirada a indumentaria que ocultava a face do principe encoberto, e efetivamente um modelo cultural, a estampa viva da grandeza monarquica. Havera sempre uma cena em que ele aparece como principe ("[...] tirou dom Rosvel o chapeirao e ficou vestido como quem era [...]", diz uma das rubricas: Viuvo, didascalia, 105c)--o que, em linguagem simbolica, quer dizer que ele teve o dominio sobre si e conquistou o merecimento do amor espiritual. Em outros termos, passou pelo mergulho na humildade e no entendimento de si e da natureza desse mesmo amor. Esta pronto para o exercicio da nobreza, como individuo discreto e virtuoso que mostrou ser.

A tematica revelava-se mais que apropriada aos primeiros anos do reinado do jovem D. Joao III que, andando pelos seus 19 anos, procurava noiva, conforme ja dissemos, para dar continuidade a dinastia dos Avis e ao imperio que se expandia a passos muito largos. Era aquele mesmo menino que nascera em 1502, quando Gil Vicente fizera representar a sua Visitacao, primeira peca devocional de seu repertorio, a epoca, dedicada ao nascimento do principe, composicao precaria e imatura, quando D. Manuel festejava a continuidade de seu imperio, que comecava a esbocar proporcoes visiveis pelo Ocidente e pelo Oriente. O dramaturgo oferecia agora ao jovem principe, quase duas decadas depois, um modelo de cultura humanista, um projeto educativo sobre o amor, a humildade e a renuncia, as frentes de batalha do monarca da nova era. Cabia ao jovem principe entender a mensagem de seu 'mestre de cerimonias', aquele modesto artista de corte, eleito para as horas de folgar.

Consideracoes finais

O principe disfarcado, como modelo cultural levado ao palco por Gil Vicente, respondia a diversos anseios da corte joanina naqueles primordios de um governo que, bem diferente da idealizacao arcadica vicentina, seria marcado por guerras na expansao do imperio pelo Indico, por intolerancia religiosa, pelo acirramento das perseguicoes, pela instalacao do tribunal do Santo Oficio. Mas aqui, pelo menos por enquanto, estamos frente ao modelo cultural de Gil Vicente, pelos idos de 1521, pensando o dramaturgo numa especie de educacao do principe, composta de desenhos marcados pela versao cortes do amor, pela dimensao espiritual da solidao amorosa no claustro dos humildes e, por fim, pelo distintivo de classe na representacao desses desenhos ideologicos.

Marcio Muniz, em seu importante estudo sobre o teatro cavaleiresco de Gil Vicente e sobre o Amadis de Gaula em especial, acentua sua dimensao educativa, na mesma linha dos varios manuais de etiqueta e de preparacao social do cortesao, escritos e publicados na Europa pelo seculo XVI. Levado a exaltacao do amor que nao se entrega as vaidades da convencao social, Gil Vicente buscou: "[...] uma tradicao literaria que se preocupava em criar modelos de comportamento para o homem de corte e que atentava para a formacao do principe" (Muniz, 2008, p. 18).

Gil Vicente, manipulando no palco a fantasia aldea de seus principes, pensava o amor, como, de resto, muitos de seus contemporaneos o pensaram, conforme um codigo acima das convencoes e ainda conforme uma iniciacao. O disfarce nas classes baixas, revelando a essencia aristocratica do cortesao, para alem de uma reacao contra as investidas da classe burguesa e seus principios mercadologicos e capitalistas, e essencialmente uma experiencia iniciatica, como bem entendeu Isabel Almeida (1991, p. 24), ao analisar a trajetoria de Dom Duardos: "No auto, adoptar a mascara de jardineiro funciona como uma prova numa caminhada iniciatica, como um ritual para o ingresso na ordem do amor [...]".

A considerar o ponto de partida historico, proposto por Marcio Muniz (2008), acima mencionado, cumpre dizer, a guisa de conclusao, que o amor entre os escritores humanistas, movido pela filosofia platonica de Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, e arrastando-se em Portugal ate as obras de Leao Hebreu e Camoes, sera um pilar fundamental para a edificacao dos mais diversos principios sociais. Quando Gil Vicente encobre o seu principe e posteriormente o revela como aquilo que ele e, ou seja, legitimamente como principe, tomado pela virtude e pela ansia de servir a sua amada, o dramaturgo atribui a ele uma funcao social nobre, permeada pelo amor e pela honra de classe. Nao se trata aqui do amor conjugal (como em Julian e Constanza, por exemplo), por mais sensivel que ele pareca, ou das parodias burlescas do amor cortes (em Camilote e Maimonda, ou no anao de Amadis, por exemplo), mas unica e essencialmente do amor espiritualizado, para o qual "[... ] muitos se apaixonam, mas poucos sao os escolhidos" (26) (Dom Duardos, 466-467), conforme nos diz Olimba, a sabia que orienta Dom Duardos pelos misterios da experiencia amorosa, fazendo parafrase com os Evangelhos. O amor nao e para todos. Antes, e para os escolhidos.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v39i3.31343

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Received on March 16, 2016.

Accepted on October 17, 2016.

Luis Andre Nepomuceno

Centro Universitario de Patos de Minas, Rua Major Gote, 808, 38702-054, Patos de Minas, Minas Gerais, Brazil. E-mail: luisandre.nepomuceno@gmail.com

(1) conosci que me cumplia meter mas velas a mi pobre fusta (traducao do autor, assim como as demais traducoes de trechos deste artigo).

(2) As referencias a obra de Gil Vicente foram todas extraidas de As obras de Gil Vicente (2002), sob a direcao de Jose Camoes. Para as citacoes de trechos, utilizamos o titulo da peca, seguido dos numeros dos versos. Nos casos em que sao citadas as didascalias, que nao contam com numeracao de verso, a referencia e a paginacao do manuscrito original, presente na edicao de Jose Camoes.

(3) "Y asi con deseo de ganar su contentamiento halle lo que en extremo deseaba".

(4) "[...] conveniente retorica que pudiese satisfacer al delicado spiritu de vuestra alteza".

(5) "[...] con fatiga/ porque es su gravedad tanta/ mi senor que yo no se/ que os diga'.

(6) 'cumpleos mudar la vida/ y el nombre y el estado/ y el vestido'.

(7) "con paciencia/ de principe hecho villano'.

(8) '[...] the same interaction of dramatic genre and theatrical mode of production generates socially subversive effects from the recurrent use of lower-class disguise as a means of aristocratic validation'.

(9) every inch a noble".

(10) "Debes hablar como vistes/ o vestir como respondes'.

(11) No querais saber quien so'.

(12) 'Jesu, Jesu, Jesu/ mas es esto que pastor'.

(13) 'dulce retorica y escogido estilo'.

(14) Gil Vicente contradice los principios del amor cortes, que solo podia cifrarse en almas y cuerpos nobles, para demonstrar que el amor puede alcanzar a todo aquel que es capaz de sentirlo, incluso a un 'caballero salvaje' como Camilote o a dos rusticos como Julian y Constanza Roiz, los jardineros y falsos padres del joven hortelano".

(15) "convierte en simbolo de la igualdad de calidades ante el amor verdadero (espiritual) por medio de dialogos propios de un amor tan idealizado y profundo como el de los protagonistas'.

(16) "Por mostrar por quien soy muerto'.

(17) "Love grants his grace only to the most noble souls, and even they must first humble themselves, as the noble Don Duardos is about to do by becoming a gardener'.

(18) 'las armas al caballero'.

(19) "No me convida la gana/ de la fama aunque es harto/ sino que sirvo a Oriana/hermosura soberana'.

(20) 'personaje mudo, que esta en las mentes y en los corazones de todos, que preside la accion, y [...] transforma la escena en encantadora criatura de arte'.

(21) 'y el afan de mi labor/ por vos muy hermosas damas/ es paraiso'.

(22) 'Tu mi espada guarnecida/ de tan hermosas hazanas/ en fuego seas hundida/como arden mis entranas/ consumiendome la vida'.

(23) 'la escoba contrastada con la espada nos impresiona como una metafora muy eficaz del extremo y humillante sacrificio que Amadis esta dispuesto a sobrellevar por su amor a Oriana'.

(24) 'Gil Vicente utiliza la materia caballeresca con gran sensibilidad'.

(25) 'Mas alta disse Platon/ es la virtude que el estado'.

(26) "muchos son enamorados/ y muy pocos escogidos'.
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