UMA FACE MENOS NOBRE DA LITERATURA PORTUGUESA DE VIAGENS.
Nepomuceno, Luis Andre
UMA FACE MENOS NOBRE DA LITERATURA PORTUGUESA DE VIAGENS.
Por volta de 1507, o impressor e tradutor alemao conhecido por seu
nome portugues Valentim Fernandes, nascido na Moravia e radicado em
Lisboa desde o fim do sec. XV, enviava a Konrad Peutinger, humanista,
diplomata, antiquario e secretario municipal de Augsburgo, um precioso
manuscrito em latim e portugues contendo varios textos sobre viagens
maritimas portuguesas de generos diversos. O codice, que so foi
descoberto no sec. XIX (Bayerische Staatsbibliothek, Codex Hispanicus,
27), pertencera a biblioteca pessoal de Peutinger. Damiao de Gois, em
carta escrita em 1542 a Joao Diogo Fugger, deu noticia do manuscrito na
casa de Peutinger, admirando-se de que o livro de nada servia ao alemao,
porque este ignorava o idioma portugues (Torres I 349). O codice so foi
publicado em 1940, sob o nome de Manuscrito Valentim Fernandes (Baiao
1940).
Ainda hoje nao e possivel saber se Fernandes enviara a Peutinger um
conjunto de textos fragmentados, de origens distintas, ou se ele mesmo
os copiara, enviando-os encadernados em livro. Ambos os interlocutores
alemaes vinham de interesses comuns nas viagens e descobertas
portuguesas. Fernandes, por certo um dos mais importantes nomes
quinhentistas ligados a impressao de manuscritos relativos a literatura
dos descobrimentos em Portugal, publicara em 1502 a primeira coletanea
portuguesa impressa de viagens, incluindo num mesmo volume uma versao
das viagens de Marco Polo, o livro de Nicolau Venetto e a carta de
Jeronimo de Santo Estevao, numa epoca em que "nao se julgou avisado
dar prioridade a obras sobre os Descobrimentos" (Andrade 352) e em
que a edicao de livros religiosos dominava o cenario editorial
manuelino. O alemao, que dera a estampa os primeiros livros ilustrados
em Lisboa, como o famoso Vita Christi, de Ludolfo da Saxonia (1495),
vinha granjeando notoriedade como pioneiro das artes tipograficas em
terras portuguesas. As anotacoes manuscritas de 300 paginas em portu
gues e latim que ele enviava ao amigo Peutinger cedo revelou-se a mais
importante coletanea de literatura de viagens da primeira decada do novo
seculo. Mas o documento ganhou a estrada e foi estacionar em terras
estrangeiras, escondido sob a guarda de um homem culto que, no entanto,
nao o podia ler na sua totalidade. O tesouro nao era propriedade
portuguesa, e cronistas e humanistas, como Damiao de Gois,
ressentiram-se da sua falta.
O trabalho de recolha e organizacao dos blocos tematicos do
manuscrito, seja ele obra de Valentim Fernandes, seja de Peutinger,
seguiu um criterio geografico na exposicao das descobertas portuguesas:
ha um bloco oriental, na primeira parte, e um bloco africano, na
segunda. A primeira serie, com dois textos, inclui (1) um relato da
expedicao do capitao-mor Dom Francisco de Almeida, em 1505, quando de
sua primeira viagem para a fundacao do Estado da India; e (2) uma
descricao de autor anonimo acerca da India e "Das ylhas de
Dyue" (Maldivas). A segunda serie ocupa-se essencialmente de
descricoes e roteiros de viagens permeando a costa ocidental da Africa,
e contem (3) uma rica "Descripcao de Ceuta e norte de Africa",
escrita pelo proprio Valentim Fernandes, a partir de testemunhos de
viajantes portugueses; (4) uma relacao historico-geografica de
arquipelagos e ilhas atlanticas, com mapas desenhados por Fernandes; (5)
um resumo da "Cronica da Guine" de Gomes Eanes de Zurara
(1453), que Fernandes trasladou em 1506, conforme informacao sua; (6) o
relato latino de Diogo Gomes de Sintra, "De prima inuentione
Guinee", sobre descobertas henriquinas na Africa; e (7) o primeiro
roteiro de viagem portugues, "Este livro he de rotear",
importante itinerario de navegacao da costa atlantica, que inaugura o
genero em Portugal (Baiao 1940). Fernandes sabia que seu feito nao era
trabalho de pouca monta: no todo, os textos (seis em portugues e um em
latim) compoem o mais rico acervo de roteiros e relatos de viagens que
mapeiam boa parte das conquistas portuguesas ate a epoca manuelina.
A considerar os generos literarios apresentados no livro, o texto
sobre a armada de Dom Francisco de Almeida e o unico que se apresenta
distintamente como relato vivo de uma viagem maritima. Nao e um diario
de bordo, conforme nos ensina Joao Rocha Pinto, quando diz que boa parte
dos relatos de viagem aos quais se atribuiu a designacao de diarios de
bordo (como a relacao da primeira viagem de Vasco da Gama a India,
atribuida a Alvaro Velho, a carta de Pero Vaz de Caminha, ou as
Navigazioni del capitano Pedro Alvares scritta per un piloto portoghese
e as Navigazioni verso le Indie orientali scritta per Tome Lopez, estas
publicadas por ramusio na sua famosa compilacao, entre outros), nao foi
composta de textos escritos por pilotos ou escrivaes de bordo (405).
Primeiro texto da "parte oriental" do Manuscrito Valentim
Fernandes, a relacao da viagem de Dom Francisco de Almeida a India,
descrita no codice como "Do viage de Do Francisco Almeyda primeyro
viso rey de India e este quaderno foi treladado da nao Sa Raffael e q
hia Hans Mayr por scriua da feytoria e capita Ferna Suarez (MVF 11), (1)
e portanto, um relato de viagem, e destaca-se dos demais textos da
coletanea por sua natureza essencialmente narrativa, ainda que o autor,
aqui e ali, deixe fluir a pena para a descricao de terras e costumes de
nativos. O relato tem sido atribuido ao alemao Hans Mayr, que seguia
como escrivao da nau Sao Rafael, junto a gigantesca comitiva de Almeida,
a qual saia de Lisboa a 25 de marco de 1505. A autoria, contudo,
mantem-se incerta, e e possivel que o texto tenha sido ditado por Fernao
Soares, capitao da referida nau da armada do vice-rei (Silva 104).
Escrita em mau portugues, misturando generos, por vezes num
sequenciamento confuso de ideias, a relacao anonima atribuida a Mayr
segue o modelo de relatos similares, num pais em que "o saber
escrever factuava-se pelo dominio muito superficial desse mesmo dom, o
que conduzia a uma escrita barbara e quase destituida de sintaxe, mas
que era bastante para se ser escriba" (Pinto 396). A narrativa, no
entanto, a despeito das limitacoes estilisticas do autor, apresenta-se
como prosa de certa habilidade literaria, mas sem qualquer apelo
emotivo, em que a exposicao das terras e o retrato de costumes de
nativos misturam-se aos acontecimentos da viagem de Almeida, como se o
narrador buscasse ambientar seus futuros leitores em terras exoticas e,
ao mesmo tempo, dar noticias de seus apelos comerciais. Nao e incomum,
por exemplo, que faca anotacoes frequentes sobre os produtos das terras
e rios da costa oriental africana.
O que chama a atencao de qualquer leitor moderno, todavia, e a
explosao de violencia em sua narrativa, ainda que o autor nao faca
sequer um comentario pessoal sobre o que ve e relata. Dom Francisco de
Almeida passa pela costa indica africana deixando um rastro de sangue:
em Quiloa (ilhas Kilwa Kisiwani, atual Tanzania), exige as pareas que o
rei lhe deve, mantem mouros cativos, invade casas a forca de machados e
permite que a frota portuguesa saqueie a cidade, levando o roubo a uma
casa para a partilha ("toda a gete se meteo a roubar a cidade de
muyta mercadoria e matjmentos": MVF 15); em Mombaca, frente a
tentativa dos nativos de se protegerem, manda queimar casas e navios,
perseguir a morte o rei local, destruir riquezas, incendiar a cidade,
pilhar o patrimonio e os bens de nativos, e por fim, fazer escravos,
entre eles, homens, mulheres, criancas, idosos ("muyta gete se
cativou, molheres, e delas bracas e meninos e certos mercadores de
Cabaya": MVF 15), e ainda trucidar pelo menos 1500 pessoas; ja na
india, a foz de um rio em Onor, Almeida queima parte das naus de
corsarios tributarios do rei e mata outros mouros; e em Coulao, vinga a
morte de Antonio de Sa, autorizando que seu filho Lourenco de Almeida
queime 24 naus de mouros e mate as tripulacoes.
Hans Mayr, ou quem quer que tenha escrito o relato, mantem-se um
observador impassivel, como a entender que as acoes de impiedade e
violencia sao justificaveis porque compoem um tipico cenario de guerra e
conflito politico, em que os propositos da armada portuguesa vinham sob
o pretexto da evangelizacao e do providencialismo que tanto
caracterizara as intencoes do Infante D. Henrique e o projeto
milenarista de D. Manuel (Albuquerque 674-675). E flagrante que, ao
relatar a crueldade no episodio dos 1500 mortos em Mombaca, o autor
emende que "nesta peleja toda no morrero mais de cinco pessoas e
muytos feridos e foy mais per virtude diuina q humana fecta" (MVF
19). A ausencia de anotacoes pessoais ou juizos criticos do autor, a par
de certa aridez e concisao de estilo que o caracterizam, nao e da
natureza do genero: em outros relatos de viagens, observacoes pessoais
do "cronista" por vezes aparecem na voz do discurso. Tome
Lopes, por exemplo, escrivao que compos a segunda armada de Vasco da
Gama a india, em 1502, na esquadra de Estevao da Gama, nao consegue
evitar anotacoes profundamente pessoais sobre a violencia que presencia
ao longo da viagem. No ataque gratuito dos portugueses ao Miri, uma nau
de ricos mercadores mouros de Calicute, que Roger Crowley define como
"uma aplicacao de violencia maritima que na verdade rejeitava o
saque" (143), nao se tratando, portanto, de pirataria, Tome Lopes
(cujo relato fora inicialmente publicado em italiano, em meados do
seculo, por Giovanni Battista Ramusio) admira-se da fria ferocidade do
capitao, quando mulheres muculmanas, da proa do navio, levantavam suas
criancas e mostravam joias e objetos preciosos, implorando a
misericordia do almirante. Imperturbavel, Gama mata a todos e queima o
navio: "e questo fu un lunedi, adi 3 d'ottobre 1502, che in
tutti i di di mia vita mi ricordero; quando quelli ch'erano in
detti batelli cominciorono a far segni e chiamarci e far segno con una
bandiera", diz o escrivao, num tom bem mais comovente e subjetivo
do que aquele usado por Hans Mayr (Ramusio 703).
A expedicao de Francisco de Almeida foi o maior empreendimento
maritimo portugues de seu tempo, do qual muitos investidores
estrangeiros participaram: foram 28 embarcacoes com 1500 homens,
destinados a fundar o Estado Portugues da india e instituir Almeida como
governador e posteriormente vicerei (Cortesao I 35). Almeida, membro da
ordem Militar de Santiago, levava a bordo uma "carta de poder"
e um Regimento, que estabeleciam suas acoes de governo: construir
fortalezas em Quiloa, Sofala, e depois em Cochim, Cananor e Coulao;
fechar a passagem do Mar Vermelho aos navios muculmanos e venezianos,
tarefa fracassada, conforme nos diz Subrahmanyam (273); propor tratados
de paz com o Samorim de Calicute, com expulsao dos mouros; e manter o
monopolio comercial do Indico (Silva 96-100). As atribuicoes eram
imensas.
Os diversos retratos historicos e biograficos de Almeida sugerem
disparidades: Pierre Chaunu diz que o vice-rei executou seu regimento
"sem genio" (209) e com certa sombra de arcaismo,
especialmente a considerar que Gama ja executara muita violencia mal
calculada, o que so vinha reforcando a hostilidade contra portugueses no
Indico. Crowley admite sua maturidade e sua incorruptibilidade frente ao
imperio, apesar de Almeida ter permitido o saque de Quiloa com ganhos
pessoais de muitos (183). De toda forma, o futuro vice-rei da India fora
recrutado por conta de sua larga experiencia politica e militar. Malyn
Newit, no entanto, diminui sua forca politica, considerando que o
monopolio que Almeida buscou, mas nao conseguiu, na imensa extensao do
Indico, nao significava necessariamente "sovereignty over
population or territory" (2). Ao longo da historia, contudo, as
nomeacoes para a India eram distintivos insignes e levavam em conta nao
apenas nobreza, mas fidalguia de linhagem, bem como desempenho de cargos
diplomaticos, recursos pessoais, comendas de ordens militares, ja que os
dignitarios exibiam conquista de honrarias, distincoes politicas e
riqueza (Cunha e Monteiro 98).
Se Hans Mayr, considerada a ausencia de observacoes pessoais no seu
relato, nao faz qualquer elogio nem repreensao ao comandante-mor da
armada, frente a seus atos de pilhagem e violencia, a cronica portuguesa
quinhentista nao lhe seguiu as pegadas. Almeida, primeiro vice-rei do
Estado da India, recebeu alusoes honrosas pela historiografia
portuguesa, e sua imagem foi acolhida heroicamente, a epoca em que os
primeiros historiadores joaninos, em meados do sec. XVI, reconstituiam a
historia da presenca portuguesa na Africa e na Asia. Joao de Barros, nas
Decadas, por exemplo, oferece-nos um Francisco de Almeida moderado e
brandamente nobre. Os episodios referentes a sua viagem de 1505 nao sao
divergentes, mas Barros sugere interpretacoes mais generosas sobre
Almeida: conforme sua cronica, logo depois da construcao da fortaleza de
Angediva, quando o rei de onor, na India, lhe faz dura oposicao
politica, nao respondendo as suas cordialidades, o vice-rei e magnanimo:
"Dom Francisco recebia estas cousas com brandura, dessimulando a
verdade que delas sentia, e mostrava aos seus mensajeiros gasalhado
dando-lhes dadivas e boas palavras, porque o tempo nao era para
mais" (I 115). Termos como "graciosamente" (130) e
"brandura" (143) se desdobram pela narrativa. Na destruicao de
Mombaca, Barros explica que saquearam a cidade por necessidade, que os
produtos foram repartidos "por capitanias, por se nao fazer alguma
desordem" (I 108), e que dos mil escravizados que se fizeram,
Almeida mandou libertar muitos, mulheres e fracos, sobretudo, ficando
com apenas duzentos, em ato de generosidade. Ha certa insistencia numa
figura mediadora e ordeira na personalidade de Almeida, especialmente
nas acoes administrativas da India: Barros justifica que a morte de
Antonio de Sa se dera em funcao de rivalidades comerciais com mouros, os
"perturbadores da paz", e que Almeida enviara seu filho
Lourenco, uma vez mais com "branduras", para negociar a
pacificacao que os mouros rejeitavam (I 143).
O caso de Gaspar Correia, com seu imenso volume das Lendas da
india, cuja redacao deve remontar ate 1550, e mais elucidativo. Correia,
que viveu boa parte de sua vida no Estado Portugues da India, onde tera
chegado ainda jovem, por volta de 1512-1514, como soldado e
posteriormente como secretario de Afonso de Albuquerque, afirma, no
prologo de sua obra, que as acoes administrativas da India foram
perdendo sua grandeza heroica, para se submeterem a obras nada
edificantes, em que imperaram a traicao, a falta de lei, a ingerencia e
a ma administracao:
Tomei este trabalho com gosto, porque os comecos das cousas da
india forao cousas tao douradas que parecia que nao tinham debaxo o
ferro que despois descobrirao; e proseguindo eu minha teima fui avante,
porque nao perdesse o que tinha trabalhado. Crecerao males, mingoarao os
bens, com que quase tudo se tornou viuos males, com que o escritor deles
com razao se pode chamar praguejador, e nao bom escritor de tao
illustres feitos e acaecimentos no descobrimento e conquista de tantos
reynos e senhorios [...] (1-2).
O primeiro vice-rei da India, pelo menos sob as lentes de Gaspar
Correia, ainda vinha da geracao dos nobres ilustres, anterior a
decadencia administrativa do imperio, e tera seu nome, nas Lendas da
india, estampado como o de um sabio dotado da experiencia e da
ponderacao proprias da idade madura (Almeida ja chegava aos 50 anos,
quando assumiu as funcoes no Estado da India). A figura do pai que envia
o filho a dar solucao aos problemas diplomaticos em Coulao, destinado a
vingar a morte injusta de Antonio de Sa, acentua-lhe a nobreza,
conferindo-lhe ares de maturidade. Mas o Almeida das Lendas da india nao
e o homem pleno de branduras que Joao Barros revelaria alguns anos
depois. Suas virtudes sao outras. Tomado de uma ira santa e justa, e o
homem que faz valer a lei e a obediencia politica. No episodio do cerco
e destruicao de Mombaca, sua imagem de nobreza e dignidade amplia-se
frente a orgulhosa desobediencia do rei local.
Na verdade, Mombaca nao fazia parte dos planos iniciais da viagem
de Francisco de Almeida, pelo menos conforme o Regimento da India,
tracado por D. Manuel: o vice-rei tomou a cidade para aumentar o numero
de territorios africanos tributarios, mostrando-se despotico e ameacador
na imposicao da vassalagem, mas libertando cativos para mostrar-se
generoso ao rei local, porem sob condicoes de tributos pesados (Silva
126). O episodio de Momba ca e talvez o mais significativo da grandeza
do Almeida tracado por Gaspar Correia: os escravizados sao levados ao
batismo, e o rei local, arrependido de sua desobediencia, pede
misericordia, quando ve que nao resiste mais as forcas portuguesas. E a
oportunidade para que Almeida revele seu exercicio de tolerancia e
generosidade magnanima: nao aceita que o rei de Mombaca se deite a seus
pes e ainda lhe diz que seu erro politico fora o "mao
conselho" (Correia 557). Como um pai que perdoa a imatura rebeldia
do filho, o vicerei assemelha-se a uma especie de Deus irado, porem
justo e de bom coracao, que se apieda quando lhe juram obediencia. Seu
discurso final ao rei de Mombaca revela o maior dos gestos: devolve a
gente local a cidade que ele proprio tomara pela forca das armas,
sugerindo que, na futura paga dos tributos, o rei contribuira com tal
sentimento de liberdade, que o fara como se estivesse "liure dessa
obrigacao" (558), palavras que lembram a ideia religiosa de
"servidao em liberdade" do homem a Deus. O Almeida das Lendas
da india e tao santificado que ele mesmo chama seu secretario de
"evangelista de meus feitos" (567).
Fernao Lopes de Castanheda, que esteve na India e nas Molucas entre
1528 e 1538, e cuja imensa Historia do descobrimento e conquista da
india pelos portugueses saira em volumes separados a partir de 1551, com
grande impacto editorial pela Europa, mostra-se autor mais objetivo. No
sequenciamento dos episodios ligados a viagem de Francisco de Almeida, o
vice-rei que ele nos apresenta, a julgar pela idade madura do heroi,
sera o da figura do homem sabio e moderado. Embora tenha permitido o
saque da cidade de Quiloa, pois "soltou a gente que fosse roubar a
cidade" (Castanheda 214), Almeida revela-se o homem maduro,
religioso, de espirito providencialista, agradecendo a Deus por ter lhe
dado uma cidade de maneira tao pacifica. Seu discurso aos soldados
portugueses, depois da tomada de Mombaca, e de moderacao e maturidade
religiosa:
falouos como homem que sou de cincoenta anos os quaes dos quinze
gastey na guerra de que sey arrezoadamete, & outra vez vos afirmo
que se nao vira a cidade pera leuarmos auante o que nos parece que a nao
cometera, por isso senhores encomedemosnos a nosso senhor & e a sua
gloriosa madre, de cuja assunca a manha a igreja faz festa, porque em
dia tao solenne & affinado co sua ajuda facamos hu feito tao notauel
como este sera (219).
Mais que isso: Almeida recusa decisoes arbitrarias, pois que agrega
junto a si um grupo de conselheiros que nao permite, por exemplo, a
conquista de Mogadiscio, que ele pretendia invadir.
A considerar a historiografia joanina e pos-joanina, Damiao de
Gois, um dos humanistas mais eruditos de sua geracao, talvez seja o
unico a tecer uma imagem neutra de Francisco de Almeida, na sua imensa
Cronica do felicissimo rei D. Manuel, que saiu entre 1566-1567. Gois, de
olhar historiografico mais moderno, relata, sim, os mesmos feitos e
atrocidades do vice-rei, suas ordenacoes de captura, saque, pilhagem e
incendios de cidades e navios, mas sempre a considerar, como Hans Mayr
em seu relato, que se trata de circunstancias de guerra e conquista
politica, ainda que por vezes denuncie certas atitudes menos nobres de
Almeida, como manter entre os escravizados de Mombaca "mulheres
muito alvas e formosas" (Gois I 13), em notoria escravidao sexual,
e autorizar o massacre dos 1500 mortos na inutil tentativa de
resistencia do rei local. O Francisco de Almeida que ele nos apresenta
nao sai um heroi de virtudes estoicas, mas tambem nao sai um
conquistador furioso e colonialista disfarcado de regio diplomata dos
interesses comerciais portugueses. De outro lado, quase um seculo
depois, o historiador portugues Manuel de Faria e Sousa, radicado na
Espanha, ainda insistia, na sua Asia Portuguesa, publicada postumamente
entre 1666-1675, na idealizacao de um Francisco de Almeida humilde e
moderado, clemente com os submissos e tolerante com africanos que nao se
submetem a egide portuguesa por vaidade e orgulho (187).
A historiografia humanista portuguesa, a exemplo de seu projeto
estoico e de sua heranca medieval, engalanou os herois do passado.
Castanheda dizia que "nas historias se achao os melhores exemplos
que podem ser pera qualquer estado de vida" (207). Maria Augusta
Cruz observa que, no registro dos historiadores quinhentistas, ainda que
um cronista nao tenha conhecido o trabalho do outro, os episodios
coincidem, conforme fontes documentais ou crenca na oralidade, porem,
"many of the interpretations or versions presented by the author in
relation to a given episode reflect the current opinion of his
contemporaries" (251). Desde o sec. XV, em Portugal, as cronicas
vinham promovendo a recuperacao dos grandes feitos e virtudes estoicas,
inspiradas em Seneca, na medida em que os nobres sustentavam modelos de
grandeza heroica, ate mesmo em seus gestos e aparencia pessoal (Franca
161). E a historia como exemplum (Parzewski 375). Analisando o
epitalamio De nuptiis Eduardi Infantis Portugalliae atque Isabellae
Theodosii Ducis Brigantiae Germanae (1552), do poeta Manuel da Costa,
Alice da Silva Cunha observa que, na cena em que aparecem as tapecarias
historicas que adornam as paredes da mansao ducal de Vila Vicosa,
Francisco de Almeida e representado como o administrador que combate a
corrupcao e a tirania, no momento em que destitui o rei usurpador de
Quiloa, para restaurar a ordem legitima e naturalmente submissa ao poder
regio portugues (28). A permanencia dessa ordem estoica na representacao
da nobreza segue pelo menos ate o sec. XVIII: lendo a Relacao da viagem
que do Porto de Lisboa fizerao os Ilmos. e Excmos. Senhores Marqueses de
Tavora (1752), de Francisco de Raymundo Moraes e Pereira, relato da
viagem de um vice-rei para assumir o controle do Estado da India (texto,
portanto, do mesmo genero do de Hans Mayr), Joao Vicente Melo observa
que a representacao do vice-rei D. Francisco de Tavora se aproxima de
uma imagem monarquica. Panegirico em sua linguagem e essencia, o relato
sugere a figura do vice-rei como ordeiro e justiceiro, da vice-rainha,
como religiosa e erudita, e por fim, da estrutura do navio como espelho
da organizacao hierarquica da corte portuguesa (Melo 24).
De tudo isso, e possivel depreender uma complexa base de filtros
ideologicos na composicao historiografica da figura de D. Francisco de
Almeida, que talvez nao corresponda exatamente aquela imagem do
capitao-mor descrito por Hans Mayr, o escrivao que pos em cena o
comandante a assumir a maior armada que se fizera a India ate entao,
deixando um rastro de sangue pela Africa, no controle de 1500 homens e
28 embarcacoes equipadas com a mais tecnologica artilharia de seu tempo.
Ha um descompasso entre o relato de Mayr e as cronicas futuras, que
relativizaram a violencia. Almeida, apenas um homem violento e obcecado
pela construcao de feitorias e pela tributacao do imperio, sera
transformado no aristocrata moderado, justo, religioso, maduro e
gracioso, eventualmente no Deus tomado de uma ira santa que se apieda
dos revoltados e arrependidos que a ele se oferecem para se por de
joelhos.
O relato de Mayr, ou de quem o tenha escrito, nao sugere virtudes
nem repreensoes, mas apenas a acao de um administrador do imperio que
precisa subjugar povos incultos e rebeldes a lei de um regimento que ele
traz a bordo. Para o capitao-mor, a Africa e uma especie de terra
nullius, ou terra de ninguem, e seus povos sao uma massa indiferenciada
(Blackmore 49), como o compreenderam as bulas papais concedidas a ordem
de Cristo desde o seculo anterior, as quais autorizavam a escravizacao e
a conversao dos povos abaixo das terras de Guine, termo generico dos
tempos henriquinos para designar quaisquer povos abaixo de Marrocos. Em
carta a D. Manuel, datada de dezembro de 1505, o proprio Almeida nao
comenta as batalhas e destruicoes na Africa e na India, mas apenas as
feitorias que construira, bem como as noticias administrativas: o
reinado de Mohamed Arconi em Quiloa, as nomeacoes para capitaes de
fortalezas, os alcaides, etc. Mombaca e apenas mencionada sem
apontamento importante (Baiao, "A politica de D. Francisco de
Almeida" 105), o que revela que, para ele, o cerco da cidade e o
massacre dos 1500 nao eram noticias relevantes para a administracao do
imperio. Sim, e ainda hoje historiadores relativizam a violencia da
expansao portuguesa (Hein 50; Silva 131).
Autores de relatos de viagens, escrevendo as pressas, sem estilo
literario, quase ao calor da hora, nao tiveram tempo nem interesse para
desenhar herois. No famoso relato da primeira viagem de Vasco da Gama,
atribuido a Alvaro Velho, ha confronto e desentendimento por todos os
lugares onde os portugueses passam, e a gente do Gama e ridicularizada
por conta das mercadorias mediocres que foram dadas ao Samorim de
Calicute (Neves 97). Na outra famosa Navigazioni del capitano Pedro
Alvares, publicada por Ramusio, conhecida como Relacao do piloto
anonimo, o escrivao narra episodios nada heroicos do almirante, como o
ataque a um navio mercantil que trazia arroz de Calicute a Cochim,
seguido da queima gratuita da embarcacao (ramusio 648). Algo que se
aproxima das denuncias de Fernao Mendes Pinto na sua Peregrinacao.
Outros generos literarios fariam oposicao ao epico, com retratos
desconcertantes de fracasso do imperio, como as historias tragicas de
naufragios (Dore 102).
Escrivaes de viagens revelaram o que cronistas eruditos esconderam:
o anseio portugues nao de comercio, mas de sujeicao dos povos africanos
e asiaticos, escravizados e convertidos a forca da espada. Quando Mayr
informa que "Ho capita mor madou qroubasse a cidade" (MVF 18),
trata-se de um dado a mais para a contabilidade do imperio. Quando
Gaspar Correia poe esse mesmo capitao a chamar seu secretario de
"evangelista de meus feitos" (567), trata-se de um dado a mais
para a edificacao mitica de um imperio que vendeu aos papas a ideia de
que seus massacres colonialistas eram apenas uma cruzada.
Centro Universitario de Patos de Minas
Obras citadas
Albuquerque, Luis de. Dicionario de Historia dos Descobrimentos.
Circulo de Leitores, 1994, 2 vols.
Andrade, Antonio Alberto Bahia de. Mundos novos do mundo: panorama
da difusao, pela Europa, de noticias dos Descobrimentos Geograficos
Portugueses. Junta das Investigacoes de ultramar, 1972.
Baiao, Antonio, editor. O Manuscrito "Valentim
Fernandes": oferecido a Academia por Joaquim Bensaude. Academia
portuguesa da Historia, 1940.
Baiao, Antonio. "A politica de D. Francisco de Almeida, de D.
Afonso de Albuquerque e de D. Joao de castro." Historia da expansao
portuguesa no mundo, vol. 2, editado por Antonio Baiao, Hernani cidade e
Manuel Murias. Editora Atica, 1939, pp. 101-128.
Barros, Joao de. Decadas, editado por Antonio Baiao. Livraria Sa Da
Costa, 1945, 4 vols.
Blackmore, Josiah. Moorings: Portuguese expansion and the writing
of Africa. U of Minnesota p, 2009.
Castanheda, Fernao Lopes de. Historia do descobrimento e conquista
da India pelos portugueses. Lello & Irmao, 1979, 2 vols.
Chaunu, Pierre. Conquista e exploracao dos novos mundos: seculo
XVI. Pioneira, 1984.
Correia, Gaspar. Lendas da India, editado por Lopes de Almeida.
Lello & Irmao, 1975, 4 vols.
Cortesao, Jaime. Historia dos descobrimentos portugueses. Circulo
de Leitores, 1978, 3 vols.
Crowley, Roger. Conquistadores: como Portugal forjou o primeiro
imperio global. Traduzido por Helena Londres. Planeta, 2016.
Cruz, Maria Augusta Lima. "Exiles and renegades in early
sixteenth century Portuguese India." The Indian Economic and Social
History Review, vol. 23, no. 3, 1986, pp. 249-262. journals.
sagepub.com/doi/pdf/10.1177/001946468602300301.
Cunha, Alice da Silva. "D. Francisco de Almeida: faces de um
heroi." Anais do XV Encontro da ANPOLL, no. 1, 2003, pp. 27-31.
Cunha, Mafalda soares e Nuno Goncalo Monteiro. "vice-reis,
Governadores e conselheiros de Governo do Estado da India (1505-1834):
recrutamento e caracterizacao social." Penelope, no. 15, 1995, pp.
91-120. dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2685299.
Dore, Andrea. "A fortaleza e o navio: espacos de reclusao na
Carreira da India." Topoi, vol. 9, no. 16, 2008, pp. 91-116.
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s2237-101X2
008000100091
Faria e Sousa, Manuel de. Asia Portuguesa. Traduzido por Isabel
Ferreira A.P. de Matos e Maria Vitoria G.S. Ferreira. Livraria
Civilizacao Editora, 1945.
Franca, Susani Silveira Lemos. "A representacao do passado e a
moral no seculo XV em Portugal." Tempo, no. 14, 2010, pp. 145-164.
www.scielo.br/pdf/tem/v14n28/a07v1428.pdf.
Gois, Damiao de. Cronica do felicissimo rei D. Manuel. Universidade
de Coimbra, 1953, 4 vols.
Hein, Jeanne. "Portuguese Communication with Africans on the
Searoute to India." Terrae Incognitae: The Journal of the Society
for the History of Discoveries, no. 25, 1993, pp. 41-52.
doi.org/10.1179/tin. 1993.25.1.41.
Melo, Joao Vicente. "Traveling and power: A portuguese
Viceroy's Account of a Voyage to India." Journeys, vol. 15,
no. 2, 2014, pp. 15-41. DOI: doi.org/10.3167/jys.2014.150202
Neves, Aguas, editor. Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama.
Europa-America, 1998.
Newitt, Malyn. "Formal and Informal Empire in the History of
Portuguese Expansion." Portuguese Studies, no. 17, 2001, pp. 1-21.
www.jstor.org/stable/41105156.
Parzewski, Luciana Fontes. "A expansao maritima na cronistica
portuguesa (secs. XV-XV): Gomes Eanes de Zurara, Fernao Lopes de
Castenhada e Joao de Barros." Mirabilia, no. 8, 2008, pp. 369-380.
Pinto, Joao Rocha. "Houve diarios de bordo durante os seculos
XV e XVI?" Revista da Universidade de Coimbra, no. 34, 1988, pp.
383-416.
Ramusio, Giovanni Battista. Navigazioni e viaggi, vol. 1, editado
por Marica Milanesi. Giulio Einaudi, 1978.
Subrahmanyam, Sanjay. "The birth-pangs of Portuguese Asia:
revisiting the fateful 'long decade' 1498-1509." Journal
of Global History, no. 2, 2007, pp. 261-280. doi.org/10.1017/s17
40022807002288
Silva, Joaquim Candeias. O fundador do "Estado Portugues da
India", D. Francisco de Almeida, 1457(?)-1510. Comissao Nacional
para as Comemoracoes dos Descobrimentos Portugueses: IN/CM, 1996.
Torres, Amadeu. Noese e crise na epistolografia latina goisiana: as
cartas latinas de Damiao de Gois. Fundacao calouste Gulbenkian/ centro
cultural Portugues, 1982, 2 vols.
(1) MVF refere-se daqui em diante ao Manuscrito Valentim Fernandes,
conforme edicao de Antonio Baiao (1940).
COPYRIGHT 2018 University of North Carolina at Chapel Hill, Department of Romance Languages
No portion of this article can be reproduced without the express written permission from the copyright holder.
Copyright 2018 Gale, Cengage Learning. All rights reserved.