首页    期刊浏览 2024年10月07日 星期一
登录注册

文章基本信息

  • 标题:UMA FACE MENOS NOBRE DA LITERATURA PORTUGUESA DE VIAGENS.
  • 作者:Nepomuceno, Luis Andre
  • 期刊名称:Romance Notes
  • 印刷版ISSN:0035-7995
  • 出版年度:2018
  • 期号:November
  • 出版社:University of North Carolina at Chapel Hill, Department of Romance Languages
  • 摘要:Por volta de 1507, o impressor e tradutor alemao conhecido por seu nome portugues Valentim Fernandes, nascido na Moravia e radicado em Lisboa desde o fim do sec. XV, enviava a Konrad Peutinger, humanista, diplomata, antiquario e secretario municipal de Augsburgo, um precioso manuscrito em latim e portugues contendo varios textos sobre viagens maritimas portuguesas de generos diversos. O codice, que so foi descoberto no sec. XIX (Bayerische Staatsbibliothek, Codex Hispanicus, 27), pertencera a biblioteca pessoal de Peutinger. Damiao de Gois, em carta escrita em 1542 a Joao Diogo Fugger, deu noticia do manuscrito na casa de Peutinger, admirando-se de que o livro de nada servia ao alemao, porque este ignorava o idioma portugues (Torres I 349). O codice so foi publicado em 1940, sob o nome de Manuscrito Valentim Fernandes (Baiao 1940).

    Ainda hoje nao e possivel saber se Fernandes enviara a Peutinger um conjunto de textos fragmentados, de origens distintas, ou se ele mesmo os copiara, enviando-os encadernados em livro. Ambos os interlocutores alemaes vinham de interesses comuns nas viagens e descobertas portuguesas. Fernandes, por certo um dos mais importantes nomes quinhentistas ligados a impressao de manuscritos relativos a literatura dos descobrimentos em Portugal, publicara em 1502 a primeira coletanea portuguesa impressa de viagens, incluindo num mesmo volume uma versao das viagens de Marco Polo, o livro de Nicolau Venetto e a carta de Jeronimo de Santo Estevao, numa epoca em que "nao se julgou avisado dar prioridade a obras sobre os Descobrimentos" (Andrade 352) e em que a edicao de livros religiosos dominava o cenario editorial manuelino. O alemao, que dera a estampa os primeiros livros ilustrados em Lisboa, como o famoso Vita Christi, de Ludolfo da Saxonia (1495), vinha granjeando notoriedade como pioneiro das artes tipograficas em terras portuguesas. As anotacoes manuscritas de 300 paginas em portu gues e latim que ele enviava ao amigo Peutinger cedo revelou-se a mais importante coletanea de literatura de viagens da primeira decada do novo seculo. Mas o documento ganhou a estrada e foi estacionar em terras estrangeiras, escondido sob a guarda de um homem culto que, no entanto, nao o podia ler na sua totalidade. O tesouro nao era propriedade portuguesa, e cronistas e humanistas, como Damiao de Gois, ressentiram-se da sua falta.

UMA FACE MENOS NOBRE DA LITERATURA PORTUGUESA DE VIAGENS.


Nepomuceno, Luis Andre


UMA FACE MENOS NOBRE DA LITERATURA PORTUGUESA DE VIAGENS.

Por volta de 1507, o impressor e tradutor alemao conhecido por seu nome portugues Valentim Fernandes, nascido na Moravia e radicado em Lisboa desde o fim do sec. XV, enviava a Konrad Peutinger, humanista, diplomata, antiquario e secretario municipal de Augsburgo, um precioso manuscrito em latim e portugues contendo varios textos sobre viagens maritimas portuguesas de generos diversos. O codice, que so foi descoberto no sec. XIX (Bayerische Staatsbibliothek, Codex Hispanicus, 27), pertencera a biblioteca pessoal de Peutinger. Damiao de Gois, em carta escrita em 1542 a Joao Diogo Fugger, deu noticia do manuscrito na casa de Peutinger, admirando-se de que o livro de nada servia ao alemao, porque este ignorava o idioma portugues (Torres I 349). O codice so foi publicado em 1940, sob o nome de Manuscrito Valentim Fernandes (Baiao 1940).

Ainda hoje nao e possivel saber se Fernandes enviara a Peutinger um conjunto de textos fragmentados, de origens distintas, ou se ele mesmo os copiara, enviando-os encadernados em livro. Ambos os interlocutores alemaes vinham de interesses comuns nas viagens e descobertas portuguesas. Fernandes, por certo um dos mais importantes nomes quinhentistas ligados a impressao de manuscritos relativos a literatura dos descobrimentos em Portugal, publicara em 1502 a primeira coletanea portuguesa impressa de viagens, incluindo num mesmo volume uma versao das viagens de Marco Polo, o livro de Nicolau Venetto e a carta de Jeronimo de Santo Estevao, numa epoca em que "nao se julgou avisado dar prioridade a obras sobre os Descobrimentos" (Andrade 352) e em que a edicao de livros religiosos dominava o cenario editorial manuelino. O alemao, que dera a estampa os primeiros livros ilustrados em Lisboa, como o famoso Vita Christi, de Ludolfo da Saxonia (1495), vinha granjeando notoriedade como pioneiro das artes tipograficas em terras portuguesas. As anotacoes manuscritas de 300 paginas em portu gues e latim que ele enviava ao amigo Peutinger cedo revelou-se a mais importante coletanea de literatura de viagens da primeira decada do novo seculo. Mas o documento ganhou a estrada e foi estacionar em terras estrangeiras, escondido sob a guarda de um homem culto que, no entanto, nao o podia ler na sua totalidade. O tesouro nao era propriedade portuguesa, e cronistas e humanistas, como Damiao de Gois, ressentiram-se da sua falta.

O trabalho de recolha e organizacao dos blocos tematicos do manuscrito, seja ele obra de Valentim Fernandes, seja de Peutinger, seguiu um criterio geografico na exposicao das descobertas portuguesas: ha um bloco oriental, na primeira parte, e um bloco africano, na segunda. A primeira serie, com dois textos, inclui (1) um relato da expedicao do capitao-mor Dom Francisco de Almeida, em 1505, quando de sua primeira viagem para a fundacao do Estado da India; e (2) uma descricao de autor anonimo acerca da India e "Das ylhas de Dyue" (Maldivas). A segunda serie ocupa-se essencialmente de descricoes e roteiros de viagens permeando a costa ocidental da Africa, e contem (3) uma rica "Descripcao de Ceuta e norte de Africa", escrita pelo proprio Valentim Fernandes, a partir de testemunhos de viajantes portugueses; (4) uma relacao historico-geografica de arquipelagos e ilhas atlanticas, com mapas desenhados por Fernandes; (5) um resumo da "Cronica da Guine" de Gomes Eanes de Zurara (1453), que Fernandes trasladou em 1506, conforme informacao sua; (6) o relato latino de Diogo Gomes de Sintra, "De prima inuentione Guinee", sobre descobertas henriquinas na Africa; e (7) o primeiro roteiro de viagem portugues, "Este livro he de rotear", importante itinerario de navegacao da costa atlantica, que inaugura o genero em Portugal (Baiao 1940). Fernandes sabia que seu feito nao era trabalho de pouca monta: no todo, os textos (seis em portugues e um em latim) compoem o mais rico acervo de roteiros e relatos de viagens que mapeiam boa parte das conquistas portuguesas ate a epoca manuelina.

A considerar os generos literarios apresentados no livro, o texto sobre a armada de Dom Francisco de Almeida e o unico que se apresenta distintamente como relato vivo de uma viagem maritima. Nao e um diario de bordo, conforme nos ensina Joao Rocha Pinto, quando diz que boa parte dos relatos de viagem aos quais se atribuiu a designacao de diarios de bordo (como a relacao da primeira viagem de Vasco da Gama a India, atribuida a Alvaro Velho, a carta de Pero Vaz de Caminha, ou as Navigazioni del capitano Pedro Alvares scritta per un piloto portoghese e as Navigazioni verso le Indie orientali scritta per Tome Lopez, estas publicadas por ramusio na sua famosa compilacao, entre outros), nao foi composta de textos escritos por pilotos ou escrivaes de bordo (405). Primeiro texto da "parte oriental" do Manuscrito Valentim Fernandes, a relacao da viagem de Dom Francisco de Almeida a India, descrita no codice como "Do viage de Do Francisco Almeyda primeyro viso rey de India e este quaderno foi treladado da nao Sa Raffael e q hia Hans Mayr por scriua da feytoria e capita Ferna Suarez (MVF 11), (1) e portanto, um relato de viagem, e destaca-se dos demais textos da coletanea por sua natureza essencialmente narrativa, ainda que o autor, aqui e ali, deixe fluir a pena para a descricao de terras e costumes de nativos. O relato tem sido atribuido ao alemao Hans Mayr, que seguia como escrivao da nau Sao Rafael, junto a gigantesca comitiva de Almeida, a qual saia de Lisboa a 25 de marco de 1505. A autoria, contudo, mantem-se incerta, e e possivel que o texto tenha sido ditado por Fernao Soares, capitao da referida nau da armada do vice-rei (Silva 104).

Escrita em mau portugues, misturando generos, por vezes num sequenciamento confuso de ideias, a relacao anonima atribuida a Mayr segue o modelo de relatos similares, num pais em que "o saber escrever factuava-se pelo dominio muito superficial desse mesmo dom, o que conduzia a uma escrita barbara e quase destituida de sintaxe, mas que era bastante para se ser escriba" (Pinto 396). A narrativa, no entanto, a despeito das limitacoes estilisticas do autor, apresenta-se como prosa de certa habilidade literaria, mas sem qualquer apelo emotivo, em que a exposicao das terras e o retrato de costumes de nativos misturam-se aos acontecimentos da viagem de Almeida, como se o narrador buscasse ambientar seus futuros leitores em terras exoticas e, ao mesmo tempo, dar noticias de seus apelos comerciais. Nao e incomum, por exemplo, que faca anotacoes frequentes sobre os produtos das terras e rios da costa oriental africana.

O que chama a atencao de qualquer leitor moderno, todavia, e a explosao de violencia em sua narrativa, ainda que o autor nao faca sequer um comentario pessoal sobre o que ve e relata. Dom Francisco de Almeida passa pela costa indica africana deixando um rastro de sangue: em Quiloa (ilhas Kilwa Kisiwani, atual Tanzania), exige as pareas que o rei lhe deve, mantem mouros cativos, invade casas a forca de machados e permite que a frota portuguesa saqueie a cidade, levando o roubo a uma casa para a partilha ("toda a gete se meteo a roubar a cidade de muyta mercadoria e matjmentos": MVF 15); em Mombaca, frente a tentativa dos nativos de se protegerem, manda queimar casas e navios, perseguir a morte o rei local, destruir riquezas, incendiar a cidade, pilhar o patrimonio e os bens de nativos, e por fim, fazer escravos, entre eles, homens, mulheres, criancas, idosos ("muyta gete se cativou, molheres, e delas bracas e meninos e certos mercadores de Cabaya": MVF 15), e ainda trucidar pelo menos 1500 pessoas; ja na india, a foz de um rio em Onor, Almeida queima parte das naus de corsarios tributarios do rei e mata outros mouros; e em Coulao, vinga a morte de Antonio de Sa, autorizando que seu filho Lourenco de Almeida queime 24 naus de mouros e mate as tripulacoes.

Hans Mayr, ou quem quer que tenha escrito o relato, mantem-se um observador impassivel, como a entender que as acoes de impiedade e violencia sao justificaveis porque compoem um tipico cenario de guerra e conflito politico, em que os propositos da armada portuguesa vinham sob o pretexto da evangelizacao e do providencialismo que tanto caracterizara as intencoes do Infante D. Henrique e o projeto milenarista de D. Manuel (Albuquerque 674-675). E flagrante que, ao relatar a crueldade no episodio dos 1500 mortos em Mombaca, o autor emende que "nesta peleja toda no morrero mais de cinco pessoas e muytos feridos e foy mais per virtude diuina q humana fecta" (MVF 19). A ausencia de anotacoes pessoais ou juizos criticos do autor, a par de certa aridez e concisao de estilo que o caracterizam, nao e da natureza do genero: em outros relatos de viagens, observacoes pessoais do "cronista" por vezes aparecem na voz do discurso. Tome Lopes, por exemplo, escrivao que compos a segunda armada de Vasco da Gama a india, em 1502, na esquadra de Estevao da Gama, nao consegue evitar anotacoes profundamente pessoais sobre a violencia que presencia ao longo da viagem. No ataque gratuito dos portugueses ao Miri, uma nau de ricos mercadores mouros de Calicute, que Roger Crowley define como "uma aplicacao de violencia maritima que na verdade rejeitava o saque" (143), nao se tratando, portanto, de pirataria, Tome Lopes (cujo relato fora inicialmente publicado em italiano, em meados do seculo, por Giovanni Battista Ramusio) admira-se da fria ferocidade do capitao, quando mulheres muculmanas, da proa do navio, levantavam suas criancas e mostravam joias e objetos preciosos, implorando a misericordia do almirante. Imperturbavel, Gama mata a todos e queima o navio: "e questo fu un lunedi, adi 3 d'ottobre 1502, che in tutti i di di mia vita mi ricordero; quando quelli ch'erano in detti batelli cominciorono a far segni e chiamarci e far segno con una bandiera", diz o escrivao, num tom bem mais comovente e subjetivo do que aquele usado por Hans Mayr (Ramusio 703).

A expedicao de Francisco de Almeida foi o maior empreendimento maritimo portugues de seu tempo, do qual muitos investidores estrangeiros participaram: foram 28 embarcacoes com 1500 homens, destinados a fundar o Estado Portugues da india e instituir Almeida como governador e posteriormente vicerei (Cortesao I 35). Almeida, membro da ordem Militar de Santiago, levava a bordo uma "carta de poder" e um Regimento, que estabeleciam suas acoes de governo: construir fortalezas em Quiloa, Sofala, e depois em Cochim, Cananor e Coulao; fechar a passagem do Mar Vermelho aos navios muculmanos e venezianos, tarefa fracassada, conforme nos diz Subrahmanyam (273); propor tratados de paz com o Samorim de Calicute, com expulsao dos mouros; e manter o monopolio comercial do Indico (Silva 96-100). As atribuicoes eram imensas.

Os diversos retratos historicos e biograficos de Almeida sugerem disparidades: Pierre Chaunu diz que o vice-rei executou seu regimento "sem genio" (209) e com certa sombra de arcaismo, especialmente a considerar que Gama ja executara muita violencia mal calculada, o que so vinha reforcando a hostilidade contra portugueses no Indico. Crowley admite sua maturidade e sua incorruptibilidade frente ao imperio, apesar de Almeida ter permitido o saque de Quiloa com ganhos pessoais de muitos (183). De toda forma, o futuro vice-rei da India fora recrutado por conta de sua larga experiencia politica e militar. Malyn Newit, no entanto, diminui sua forca politica, considerando que o monopolio que Almeida buscou, mas nao conseguiu, na imensa extensao do Indico, nao significava necessariamente "sovereignty over population or territory" (2). Ao longo da historia, contudo, as nomeacoes para a India eram distintivos insignes e levavam em conta nao apenas nobreza, mas fidalguia de linhagem, bem como desempenho de cargos diplomaticos, recursos pessoais, comendas de ordens militares, ja que os dignitarios exibiam conquista de honrarias, distincoes politicas e riqueza (Cunha e Monteiro 98).

Se Hans Mayr, considerada a ausencia de observacoes pessoais no seu relato, nao faz qualquer elogio nem repreensao ao comandante-mor da armada, frente a seus atos de pilhagem e violencia, a cronica portuguesa quinhentista nao lhe seguiu as pegadas. Almeida, primeiro vice-rei do Estado da India, recebeu alusoes honrosas pela historiografia portuguesa, e sua imagem foi acolhida heroicamente, a epoca em que os primeiros historiadores joaninos, em meados do sec. XVI, reconstituiam a historia da presenca portuguesa na Africa e na Asia. Joao de Barros, nas Decadas, por exemplo, oferece-nos um Francisco de Almeida moderado e brandamente nobre. Os episodios referentes a sua viagem de 1505 nao sao divergentes, mas Barros sugere interpretacoes mais generosas sobre Almeida: conforme sua cronica, logo depois da construcao da fortaleza de Angediva, quando o rei de onor, na India, lhe faz dura oposicao politica, nao respondendo as suas cordialidades, o vice-rei e magnanimo: "Dom Francisco recebia estas cousas com brandura, dessimulando a verdade que delas sentia, e mostrava aos seus mensajeiros gasalhado dando-lhes dadivas e boas palavras, porque o tempo nao era para mais" (I 115). Termos como "graciosamente" (130) e "brandura" (143) se desdobram pela narrativa. Na destruicao de Mombaca, Barros explica que saquearam a cidade por necessidade, que os produtos foram repartidos "por capitanias, por se nao fazer alguma desordem" (I 108), e que dos mil escravizados que se fizeram, Almeida mandou libertar muitos, mulheres e fracos, sobretudo, ficando com apenas duzentos, em ato de generosidade. Ha certa insistencia numa figura mediadora e ordeira na personalidade de Almeida, especialmente nas acoes administrativas da India: Barros justifica que a morte de Antonio de Sa se dera em funcao de rivalidades comerciais com mouros, os "perturbadores da paz", e que Almeida enviara seu filho Lourenco, uma vez mais com "branduras", para negociar a pacificacao que os mouros rejeitavam (I 143).

O caso de Gaspar Correia, com seu imenso volume das Lendas da india, cuja redacao deve remontar ate 1550, e mais elucidativo. Correia, que viveu boa parte de sua vida no Estado Portugues da India, onde tera chegado ainda jovem, por volta de 1512-1514, como soldado e posteriormente como secretario de Afonso de Albuquerque, afirma, no prologo de sua obra, que as acoes administrativas da India foram perdendo sua grandeza heroica, para se submeterem a obras nada edificantes, em que imperaram a traicao, a falta de lei, a ingerencia e a ma administracao:

Tomei este trabalho com gosto, porque os comecos das cousas da india forao cousas tao douradas que parecia que nao tinham debaxo o ferro que despois descobrirao; e proseguindo eu minha teima fui avante, porque nao perdesse o que tinha trabalhado. Crecerao males, mingoarao os bens, com que quase tudo se tornou viuos males, com que o escritor deles com razao se pode chamar praguejador, e nao bom escritor de tao illustres feitos e acaecimentos no descobrimento e conquista de tantos reynos e senhorios [...] (1-2).

O primeiro vice-rei da India, pelo menos sob as lentes de Gaspar Correia, ainda vinha da geracao dos nobres ilustres, anterior a decadencia administrativa do imperio, e tera seu nome, nas Lendas da india, estampado como o de um sabio dotado da experiencia e da ponderacao proprias da idade madura (Almeida ja chegava aos 50 anos, quando assumiu as funcoes no Estado da India). A figura do pai que envia o filho a dar solucao aos problemas diplomaticos em Coulao, destinado a vingar a morte injusta de Antonio de Sa, acentua-lhe a nobreza, conferindo-lhe ares de maturidade. Mas o Almeida das Lendas da india nao e o homem pleno de branduras que Joao Barros revelaria alguns anos depois. Suas virtudes sao outras. Tomado de uma ira santa e justa, e o homem que faz valer a lei e a obediencia politica. No episodio do cerco e destruicao de Mombaca, sua imagem de nobreza e dignidade amplia-se frente a orgulhosa desobediencia do rei local.

Na verdade, Mombaca nao fazia parte dos planos iniciais da viagem de Francisco de Almeida, pelo menos conforme o Regimento da India, tracado por D. Manuel: o vice-rei tomou a cidade para aumentar o numero de territorios africanos tributarios, mostrando-se despotico e ameacador na imposicao da vassalagem, mas libertando cativos para mostrar-se generoso ao rei local, porem sob condicoes de tributos pesados (Silva 126). O episodio de Momba ca e talvez o mais significativo da grandeza do Almeida tracado por Gaspar Correia: os escravizados sao levados ao batismo, e o rei local, arrependido de sua desobediencia, pede misericordia, quando ve que nao resiste mais as forcas portuguesas. E a oportunidade para que Almeida revele seu exercicio de tolerancia e generosidade magnanima: nao aceita que o rei de Mombaca se deite a seus pes e ainda lhe diz que seu erro politico fora o "mao conselho" (Correia 557). Como um pai que perdoa a imatura rebeldia do filho, o vicerei assemelha-se a uma especie de Deus irado, porem justo e de bom coracao, que se apieda quando lhe juram obediencia. Seu discurso final ao rei de Mombaca revela o maior dos gestos: devolve a gente local a cidade que ele proprio tomara pela forca das armas, sugerindo que, na futura paga dos tributos, o rei contribuira com tal sentimento de liberdade, que o fara como se estivesse "liure dessa obrigacao" (558), palavras que lembram a ideia religiosa de "servidao em liberdade" do homem a Deus. O Almeida das Lendas da india e tao santificado que ele mesmo chama seu secretario de "evangelista de meus feitos" (567).

Fernao Lopes de Castanheda, que esteve na India e nas Molucas entre 1528 e 1538, e cuja imensa Historia do descobrimento e conquista da india pelos portugueses saira em volumes separados a partir de 1551, com grande impacto editorial pela Europa, mostra-se autor mais objetivo. No sequenciamento dos episodios ligados a viagem de Francisco de Almeida, o vice-rei que ele nos apresenta, a julgar pela idade madura do heroi, sera o da figura do homem sabio e moderado. Embora tenha permitido o saque da cidade de Quiloa, pois "soltou a gente que fosse roubar a cidade" (Castanheda 214), Almeida revela-se o homem maduro, religioso, de espirito providencialista, agradecendo a Deus por ter lhe dado uma cidade de maneira tao pacifica. Seu discurso aos soldados portugueses, depois da tomada de Mombaca, e de moderacao e maturidade religiosa:

falouos como homem que sou de cincoenta anos os quaes dos quinze gastey na guerra de que sey arrezoadamete, & outra vez vos afirmo que se nao vira a cidade pera leuarmos auante o que nos parece que a nao cometera, por isso senhores encomedemosnos a nosso senhor & e a sua gloriosa madre, de cuja assunca a manha a igreja faz festa, porque em dia tao solenne & affinado co sua ajuda facamos hu feito tao notauel como este sera (219).

Mais que isso: Almeida recusa decisoes arbitrarias, pois que agrega junto a si um grupo de conselheiros que nao permite, por exemplo, a conquista de Mogadiscio, que ele pretendia invadir.

A considerar a historiografia joanina e pos-joanina, Damiao de Gois, um dos humanistas mais eruditos de sua geracao, talvez seja o unico a tecer uma imagem neutra de Francisco de Almeida, na sua imensa Cronica do felicissimo rei D. Manuel, que saiu entre 1566-1567. Gois, de olhar historiografico mais moderno, relata, sim, os mesmos feitos e atrocidades do vice-rei, suas ordenacoes de captura, saque, pilhagem e incendios de cidades e navios, mas sempre a considerar, como Hans Mayr em seu relato, que se trata de circunstancias de guerra e conquista politica, ainda que por vezes denuncie certas atitudes menos nobres de Almeida, como manter entre os escravizados de Mombaca "mulheres muito alvas e formosas" (Gois I 13), em notoria escravidao sexual, e autorizar o massacre dos 1500 mortos na inutil tentativa de resistencia do rei local. O Francisco de Almeida que ele nos apresenta nao sai um heroi de virtudes estoicas, mas tambem nao sai um conquistador furioso e colonialista disfarcado de regio diplomata dos interesses comerciais portugueses. De outro lado, quase um seculo depois, o historiador portugues Manuel de Faria e Sousa, radicado na Espanha, ainda insistia, na sua Asia Portuguesa, publicada postumamente entre 1666-1675, na idealizacao de um Francisco de Almeida humilde e moderado, clemente com os submissos e tolerante com africanos que nao se submetem a egide portuguesa por vaidade e orgulho (187).

A historiografia humanista portuguesa, a exemplo de seu projeto estoico e de sua heranca medieval, engalanou os herois do passado. Castanheda dizia que "nas historias se achao os melhores exemplos que podem ser pera qualquer estado de vida" (207). Maria Augusta Cruz observa que, no registro dos historiadores quinhentistas, ainda que um cronista nao tenha conhecido o trabalho do outro, os episodios coincidem, conforme fontes documentais ou crenca na oralidade, porem, "many of the interpretations or versions presented by the author in relation to a given episode reflect the current opinion of his contemporaries" (251). Desde o sec. XV, em Portugal, as cronicas vinham promovendo a recuperacao dos grandes feitos e virtudes estoicas, inspiradas em Seneca, na medida em que os nobres sustentavam modelos de grandeza heroica, ate mesmo em seus gestos e aparencia pessoal (Franca 161). E a historia como exemplum (Parzewski 375). Analisando o epitalamio De nuptiis Eduardi Infantis Portugalliae atque Isabellae Theodosii Ducis Brigantiae Germanae (1552), do poeta Manuel da Costa, Alice da Silva Cunha observa que, na cena em que aparecem as tapecarias historicas que adornam as paredes da mansao ducal de Vila Vicosa, Francisco de Almeida e representado como o administrador que combate a corrupcao e a tirania, no momento em que destitui o rei usurpador de Quiloa, para restaurar a ordem legitima e naturalmente submissa ao poder regio portugues (28). A permanencia dessa ordem estoica na representacao da nobreza segue pelo menos ate o sec. XVIII: lendo a Relacao da viagem que do Porto de Lisboa fizerao os Ilmos. e Excmos. Senhores Marqueses de Tavora (1752), de Francisco de Raymundo Moraes e Pereira, relato da viagem de um vice-rei para assumir o controle do Estado da India (texto, portanto, do mesmo genero do de Hans Mayr), Joao Vicente Melo observa que a representacao do vice-rei D. Francisco de Tavora se aproxima de uma imagem monarquica. Panegirico em sua linguagem e essencia, o relato sugere a figura do vice-rei como ordeiro e justiceiro, da vice-rainha, como religiosa e erudita, e por fim, da estrutura do navio como espelho da organizacao hierarquica da corte portuguesa (Melo 24).

De tudo isso, e possivel depreender uma complexa base de filtros ideologicos na composicao historiografica da figura de D. Francisco de Almeida, que talvez nao corresponda exatamente aquela imagem do capitao-mor descrito por Hans Mayr, o escrivao que pos em cena o comandante a assumir a maior armada que se fizera a India ate entao, deixando um rastro de sangue pela Africa, no controle de 1500 homens e 28 embarcacoes equipadas com a mais tecnologica artilharia de seu tempo. Ha um descompasso entre o relato de Mayr e as cronicas futuras, que relativizaram a violencia. Almeida, apenas um homem violento e obcecado pela construcao de feitorias e pela tributacao do imperio, sera transformado no aristocrata moderado, justo, religioso, maduro e gracioso, eventualmente no Deus tomado de uma ira santa que se apieda dos revoltados e arrependidos que a ele se oferecem para se por de joelhos.

O relato de Mayr, ou de quem o tenha escrito, nao sugere virtudes nem repreensoes, mas apenas a acao de um administrador do imperio que precisa subjugar povos incultos e rebeldes a lei de um regimento que ele traz a bordo. Para o capitao-mor, a Africa e uma especie de terra nullius, ou terra de ninguem, e seus povos sao uma massa indiferenciada (Blackmore 49), como o compreenderam as bulas papais concedidas a ordem de Cristo desde o seculo anterior, as quais autorizavam a escravizacao e a conversao dos povos abaixo das terras de Guine, termo generico dos tempos henriquinos para designar quaisquer povos abaixo de Marrocos. Em carta a D. Manuel, datada de dezembro de 1505, o proprio Almeida nao comenta as batalhas e destruicoes na Africa e na India, mas apenas as feitorias que construira, bem como as noticias administrativas: o reinado de Mohamed Arconi em Quiloa, as nomeacoes para capitaes de fortalezas, os alcaides, etc. Mombaca e apenas mencionada sem apontamento importante (Baiao, "A politica de D. Francisco de Almeida" 105), o que revela que, para ele, o cerco da cidade e o massacre dos 1500 nao eram noticias relevantes para a administracao do imperio. Sim, e ainda hoje historiadores relativizam a violencia da expansao portuguesa (Hein 50; Silva 131).

Autores de relatos de viagens, escrevendo as pressas, sem estilo literario, quase ao calor da hora, nao tiveram tempo nem interesse para desenhar herois. No famoso relato da primeira viagem de Vasco da Gama, atribuido a Alvaro Velho, ha confronto e desentendimento por todos os lugares onde os portugueses passam, e a gente do Gama e ridicularizada por conta das mercadorias mediocres que foram dadas ao Samorim de Calicute (Neves 97). Na outra famosa Navigazioni del capitano Pedro Alvares, publicada por Ramusio, conhecida como Relacao do piloto anonimo, o escrivao narra episodios nada heroicos do almirante, como o ataque a um navio mercantil que trazia arroz de Calicute a Cochim, seguido da queima gratuita da embarcacao (ramusio 648). Algo que se aproxima das denuncias de Fernao Mendes Pinto na sua Peregrinacao. Outros generos literarios fariam oposicao ao epico, com retratos desconcertantes de fracasso do imperio, como as historias tragicas de naufragios (Dore 102).

Escrivaes de viagens revelaram o que cronistas eruditos esconderam: o anseio portugues nao de comercio, mas de sujeicao dos povos africanos e asiaticos, escravizados e convertidos a forca da espada. Quando Mayr informa que "Ho capita mor madou qroubasse a cidade" (MVF 18), trata-se de um dado a mais para a contabilidade do imperio. Quando Gaspar Correia poe esse mesmo capitao a chamar seu secretario de "evangelista de meus feitos" (567), trata-se de um dado a mais para a edificacao mitica de um imperio que vendeu aos papas a ideia de que seus massacres colonialistas eram apenas uma cruzada.

Centro Universitario de Patos de Minas

Obras citadas

Albuquerque, Luis de. Dicionario de Historia dos Descobrimentos. Circulo de Leitores, 1994, 2 vols.

Andrade, Antonio Alberto Bahia de. Mundos novos do mundo: panorama da difusao, pela Europa, de noticias dos Descobrimentos Geograficos Portugueses. Junta das Investigacoes de ultramar, 1972.

Baiao, Antonio, editor. O Manuscrito "Valentim Fernandes": oferecido a Academia por Joaquim Bensaude. Academia portuguesa da Historia, 1940.

Baiao, Antonio. "A politica de D. Francisco de Almeida, de D. Afonso de Albuquerque e de D. Joao de castro." Historia da expansao portuguesa no mundo, vol. 2, editado por Antonio Baiao, Hernani cidade e Manuel Murias. Editora Atica, 1939, pp. 101-128.

Barros, Joao de. Decadas, editado por Antonio Baiao. Livraria Sa Da Costa, 1945, 4 vols.

Blackmore, Josiah. Moorings: Portuguese expansion and the writing of Africa. U of Minnesota p, 2009.

Castanheda, Fernao Lopes de. Historia do descobrimento e conquista da India pelos portugueses. Lello & Irmao, 1979, 2 vols.

Chaunu, Pierre. Conquista e exploracao dos novos mundos: seculo XVI. Pioneira, 1984.

Correia, Gaspar. Lendas da India, editado por Lopes de Almeida. Lello & Irmao, 1975, 4 vols.

Cortesao, Jaime. Historia dos descobrimentos portugueses. Circulo de Leitores, 1978, 3 vols.

Crowley, Roger. Conquistadores: como Portugal forjou o primeiro imperio global. Traduzido por Helena Londres. Planeta, 2016.

Cruz, Maria Augusta Lima. "Exiles and renegades in early sixteenth century Portuguese India." The Indian Economic and Social History Review, vol. 23, no. 3, 1986, pp. 249-262. journals. sagepub.com/doi/pdf/10.1177/001946468602300301.

Cunha, Alice da Silva. "D. Francisco de Almeida: faces de um heroi." Anais do XV Encontro da ANPOLL, no. 1, 2003, pp. 27-31.

Cunha, Mafalda soares e Nuno Goncalo Monteiro. "vice-reis, Governadores e conselheiros de Governo do Estado da India (1505-1834): recrutamento e caracterizacao social." Penelope, no. 15, 1995, pp. 91-120. dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2685299.

Dore, Andrea. "A fortaleza e o navio: espacos de reclusao na Carreira da India." Topoi, vol. 9, no. 16, 2008, pp. 91-116. www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s2237-101X2 008000100091

Faria e Sousa, Manuel de. Asia Portuguesa. Traduzido por Isabel Ferreira A.P. de Matos e Maria Vitoria G.S. Ferreira. Livraria Civilizacao Editora, 1945.

Franca, Susani Silveira Lemos. "A representacao do passado e a moral no seculo XV em Portugal." Tempo, no. 14, 2010, pp. 145-164. www.scielo.br/pdf/tem/v14n28/a07v1428.pdf.

Gois, Damiao de. Cronica do felicissimo rei D. Manuel. Universidade de Coimbra, 1953, 4 vols.

Hein, Jeanne. "Portuguese Communication with Africans on the Searoute to India." Terrae Incognitae: The Journal of the Society for the History of Discoveries, no. 25, 1993, pp. 41-52. doi.org/10.1179/tin. 1993.25.1.41.

Melo, Joao Vicente. "Traveling and power: A portuguese Viceroy's Account of a Voyage to India." Journeys, vol. 15, no. 2, 2014, pp. 15-41. DOI: doi.org/10.3167/jys.2014.150202

Neves, Aguas, editor. Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama. Europa-America, 1998.

Newitt, Malyn. "Formal and Informal Empire in the History of Portuguese Expansion." Portuguese Studies, no. 17, 2001, pp. 1-21. www.jstor.org/stable/41105156.

Parzewski, Luciana Fontes. "A expansao maritima na cronistica portuguesa (secs. XV-XV): Gomes Eanes de Zurara, Fernao Lopes de Castenhada e Joao de Barros." Mirabilia, no. 8, 2008, pp. 369-380.

Pinto, Joao Rocha. "Houve diarios de bordo durante os seculos XV e XVI?" Revista da Universidade de Coimbra, no. 34, 1988, pp. 383-416.

Ramusio, Giovanni Battista. Navigazioni e viaggi, vol. 1, editado por Marica Milanesi. Giulio Einaudi, 1978.

Subrahmanyam, Sanjay. "The birth-pangs of Portuguese Asia: revisiting the fateful 'long decade' 1498-1509." Journal of Global History, no. 2, 2007, pp. 261-280. doi.org/10.1017/s17 40022807002288

Silva, Joaquim Candeias. O fundador do "Estado Portugues da India", D. Francisco de Almeida, 1457(?)-1510. Comissao Nacional para as Comemoracoes dos Descobrimentos Portugueses: IN/CM, 1996.

Torres, Amadeu. Noese e crise na epistolografia latina goisiana: as cartas latinas de Damiao de Gois. Fundacao calouste Gulbenkian/ centro cultural Portugues, 1982, 2 vols.

(1) MVF refere-se daqui em diante ao Manuscrito Valentim Fernandes, conforme edicao de Antonio Baiao (1940).
COPYRIGHT 2018 University of North Carolina at Chapel Hill, Department of Romance Languages
No portion of this article can be reproduced without the express written permission from the copyright holder.
Copyright 2018 Gale, Cengage Learning. All rights reserved.

联系我们|关于我们|网站声明
国家哲学社会科学文献中心版权所有