Fictional geometries and geometric fictions in Se um viajante numa noite de inverno, by Italo Calvino/Geometrias da ficcao e ficcoes geometricas em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.
Pereira, Vinicius Carvalho
Fictional geometries and geometric fictions in Se um viajante numa noite de inverno, by Italo Calvino/Geometrias da ficcao e ficcoes geometricas em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.
Introducao
Nascido em 1923, em Cuba, Italo Calvino foi aos dois anos de idade
para a Italia, onde viveu ate o fim da vida. Sua producao literaria,
inaugurada em 1947 com A trilhados ninhos de aranha, esteve inicialmente
marcada pelo neorrealismo dominante na Italia apos a Segunda Guerra
Mundial. Tendo lutado na guerra de resistencia ao fascismo e participado
ativamente no Partido Comunista ate 1956, Calvino escreveu, ainda em sua
juventude, acerca de questoes politicas e historicas que assolavam seu
pais na metade do seculo XX. Tal vies sociocritico tambem era caro a
seus escritos teoricos e ensaisticos de inicio de carreira, publicados
em jornais e periodicos como II Politecnico, LUnita e Rinascita
(McLoughlin, 1998).
Ainda que tais preocupacoes acerca do futuro da Italia e do mundo
tenham permeado o projeto literario desse autor ao longo de toda a sua
vida, essas questoes se tornaram menos salientes quando Calvino se
aproximou dos grupos Tel quel e Oulipo (1), quando de sua mudanca para
Paris em 1967. Nesse contexto, o autor italiano teve a oportunidade de
conhecer pessoalmente Roland Barthes, a cujo curso de Semiologia
assistiu em 1968 na Ecoledes Hautes Etudes; e Raymond Queneau, de quem
traduziu o romance Les Fleurs Bleues para o italiano.
A influencia de Queneau sobre Calvino, especialmente seus jogos
matematicos e a ideia de uma ecrituresous contrainte, levou em 1973 o
autor italiano a tornar-se oficialmente membro do Oulipo, grupo do qual
nunca mais se separou e cujos principios norteadores permaneceram em sua
obra ate o fim da vida, especialmente em livros como As cidades
invisiveis (Calvino, 2009), O castelo dos destinos cruzados (Calvino,
2006) e Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005). Como
exemplo da presenca do pensamento matematico na ficcao calviniana,
diversos estudos academicos ja analisaram os jogos de combinatoria nos
romances e contos do autor, especialmente nos romances supracitados.
No presente artigo, porem, analisa-se o rendimento estetico do
pensamento matematico na escrita de Se um viajante numa noite de inverno
(Calvino, 2005), sob outro vies: a geometrizacao do espaco literario.
Parte-se aqui do pressuposto de que a categoria de espaco da narrativa,
operador de leitura exaustivamente trabalhado pelas diversas correntes
de teoria e critica literaria, pode ganhar nova perspectiva na escrita
calviniana a luz dos formalismos matematicos e linguisticos que tanto
interessaram a Calvino apos sua filiacao ao Oulipo. Para tanto, este
artigo ensaia uma analise sobre a poetica do espaco literario no romance
de Italo Calvino, mas sob uma perspectiva geometrica. Nao se quer,
porem, medir linhas, areas ou volumes, mas questionar a propria
dimensionalidade e os desdobramentos do texto como espacialidade
infinita, mas limitada (Blanchot, 2011). A guisa de metodo, le-se aqui
Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) seguindo uma linha
ziguezagueante que ora o percorre, ora dele se afasta para dialogar com
outros textos de Calvino, mas para logo retornar ao romance em tela. Em
lugar da linha reta, opcao mais comum no genero ensaio analitico, optase
aqui por uma geometria textual mais complexa, percorrendo diferentes
textos de Calvino de modo a reconstruir, no gesto enunciativo critico,
algo das espacialidades fraturadas, dobradas e estriadas da ficcao do
autor.
Se um viajante numa noite geometrica
Trabalhado inicialmente pela critica literaria de vies
fenomenologico, o conceito de espaco, integrando a triade narrativa
personagem-tempoespaco, instalava a oposicao entre espaco real e espaco
ficcional (Ingarden, 1965): este como malogro assumido de captar as
multiplicidades daquele, segundo a impossibilidade de acesso a
totalidade do objeto e a inapreensibilidade do real na dinamica do
simbolico (Lacan, 1978-1979). Assim, ao infinito e determinado espaco
real, opor-se-ia o finito e indeterminado espaco ficcional.
No texto literario, o espaco surge-nos, em consequencia, incompleto
e sem solucoes de continuidade, dado que e impossivel esgotar todas as
suas determinacoes. Qualquer descricao, por muito exaustiva ou por muito
elaborada que seja em termos estilisticos, acaba, ainda que
involuntariamente, por ignorar a maioria dos elementos constitutivos de
qualquer paisagem que se queira retratar (Lopes, 2016).
Como modelo finito da infinitude (Lotman, 1978), o espaco
ficcional, assim como o tempo ficcional, circunscreve as dimensoes da
pagina escrita algo infinito (ou que se acreditava como tal ate algumas
das mais recentes descobertas astrofisicas). Essa limitacao na
construcao do espaco ficcional estaria condicionada pela propria visada
do narrador e sua perspectiva balizada pelo ponto zero da enunciacao:
ego, hic et nunc. Afinal, aquilo que nos e dado a conhecer, enquanto
leitores, nao e outra coisa senao setores do espaco delimitados (ora
pela incapacidade da linguagem de esgotar o todo, ora pelas ocultacoes
proporcionadas por determinada perspectiva); setores esses que se
encontram, de certo modo, encadeados pelo continuum textual (Lopes,
2016).
A partir do eu-aqui-agora que narra, o universo textual e
construido, mas nunca como completude, e sim como projecao linguistica
desse ponto deitico ao qual o discurso retorna, como ponto de
orientacao. O que nao e visto, ouvido ou dito pelo narrador nao existe,
ou existe apenas como possibilidade e suspensao. E como se, em torno do
espaco descrito pelo texto, nao houvesse um espaco vazio, mas sim uma
nao espacialidade, nao nomeada e, portanto, nao figurada e nao criada no
texto, como percebe o protagonista de uma das varias narrativas de Se um
viajante numa noite de inverno.
Ja atravessei o bar varias vezes e olhei pela porta que da para a
praca invisivel, e todas as vezes a parede negra da noite me atirou para
tras nessa especie de limbo luminoso, suspenso entre duas obscuridades,
a do feixe de trilhos e a da cidade nebulosa. Sair para onde? A cidade
la fora ainda nao tem nome, nao sabemos se ficara fora do romance ou se
o contera inteiro no negrume de sua tinta. Sei apenas que este primeiro
capitulo demora a afastar-se da estacao e do bar; nao e prudente que eu
me afaste daqui [...] (Calvino, 2005, p. 21).
Fora da visada e do discurso do narrador, o espaco da 'cidade
la fora' nao existe, ficando fora do romance ou na escuridao do nao
dito. Preso na unica espacialidade ate entao enunciada, a
personagemnarradora so pode ir do bar a estacao, unicos locais descritos
no texto. Construcao linguistica, o espaco ficcional existe apenas
quando pronunciado ou garatujado na pagina, cartografias verbais que
excluem o nao dito como nao existente. Ou melhor, nem mesmo nao
existente, pois, para nao existir, e primeiro preciso enunciar aquilo
que nao existe; aqui o espaco literario simplesmente nao e.
Limitado pelas margens da pagina e pela perspectiva do narrador, o
espaco literario finitiza o infinito, como no conto 'Do
opaco', publicado no Brasil em O caminho de San Giovanni (Calvino,
2000), junto com outros exercicios de memoria em que o narrador se
defronta com um
[...] inverificavel axioma para os calculos da memoria, o lugar
geometrico doeu, de um mim mesmo do qual o mim mesmo necessita para se
saber mim mesmo, o eu que so serve para que o mundo receba continuamente
noticias da existencia do mundo, um engenho de que o mundo dispoe para
saber se existe (Calvino, 2000, p. 118).
Conto-tese, 'Do opaco' combina um carater memorialista,
revivendo lembrancas opticas do narrador, com uma sintese da visao
geometrica de Calvino (2000) acerca do mundo e sua arte, reincidente em
suas obras. Debrucado sobre a sacada de uma janela de fronte a cidade,
com o mar ao fundo, o narrador observa detalhadamente a paisagem ao seu
redor e descobre nela uma miriade de formas matematicas e perspectivas,
decompondo a suposta unidade e organicidade visual da urbe em uma serie
de fragmentos geometricos descontinuos. Como em um Cubismo literario, o
narrador, ao fim de suas observacoes e especulacoes, descobre que fala
sempre de um 'lugar geometrico' do eu, a partir do qual
constroi asieao mundo. Com regua e compasso?
Como ponto zero da enunciacao, esse lugar geometrico--metafora no
pos-estruturalismo frances tambem para dizer do estilo de um autor
(Barthes, 2004)--define as limitacoes do alcance da perspectiva e, por
conseguinte, as fronteiras do espaco narrativo. Este, por sua vez, e
tambem um mosaico de planos, solidos e poligonos, concepcao de espaco
que norteara toda a producao calviniana:
Comecarei entao dizendo que o mundo e composto por linhas quebradas
e continuas, com segmentos que, salientes, tendem a avancar para alem
dos cantos de cada degrau, como fazem as agaves que crescem amiude nas
bordas, e com linhas verticais ascendentes como as palmeiras que
sombreiam os jardins ou terracos sobranceiros aqueles em que tem suas
raizes (Calvino, 2000, p. 106).
Formada de linhas e segmentos, mais do que de pessoas e coisas, a
paisagem contemplada pelo narrador e como a propria pagina literaria que
o leitor tem diante dos olhos. Antes de ver ou imaginar as praias, casas
e arvores descritas pela voz narrativa, o que o leitor mira na folha de
papel sao, na verdade, letras formadas por 'linhas quebradas e
continuas', organizadas em paragrafos que, de certa forma, mais nao
sao do que esbocos de retangulos zebrados em preto contra um fundo
branco.
Essa perspectiva fragmentaria e imanente na materialidade do texto
e ainda confirmada pela diccao do narrador de 'Do opaco', que
corta seus paragrafos abruptamente, no meio de frases incompletas, de
modo que qualquer paragrafo pode comecar com letra minuscula, como
continuacao do anterior, mas ja integrando um novo retangulo listrado,
separado do anterior pela indentacao. Para cada imagem da cidade,
descrita em formas geometricas, um novo retangulo na pagina: fratura e
fragmentacao como um Cubismo do verbo. Em oposicao a tradicional ideia
de espaco ficcional acabado e bem marcado, 'Do opaco'
apresenta uma espacialidade fraturada ao infinito, como em um jogo de
fractais, ou um prisma narrativo.
Considerando que toda palavra tem um 'sentido', termo
caro nao so a linguistica, como aos vetores matematicos, a propria
dimensao do texto, como espaco, pode ser iluminada por alguns lampejos
da geometria. Sendo esta uma ciencia nao so das formas, mas tambem da
ordenacao, da relacao e da composicao, a frase, na condicao de
microespaco, que engendra o texto como espaco literario, e tambem um
fenomeno geometrico.
Vendo entao que a verdade consiste na adequada ordenacao de nomes
em nossas afirmacoes, um homem que procurar a verdade rigorosa deve
lembrar-se que coisa substitui cada palavra de que se serve, e coloca-la
de acordo comisso; de outro modo ver-se-a enredado em palavras, como uma
ave em varas enviscadas: quanto mais lutar, mais se fere. E, portanto,
em geometria (que e a unica ciencia que prouve a Deus conceder a
humanidade) os homens comecam por estabelecer as significacoes de suas
palavras, e a esse estabelecimento de significacoes chamam definicoes, e
colocam-nas no inicio de seu calculo (Hobbes, 1988, p. 18).
A ordem, como constituinte matematicogeometrico, revela-se modo de
significar da sintaxe da frase a sintaxe da narrativa, pois as figuras
do texto se constroem segundo uma topica (Barthes, 2007), em que, como
pontos na linha, definem o percurso da narrativa. No que tange a esse
carater significativo que a geometria da frase e do texto assume dentro
da literatura, Deleuze (2009) postula a existencia de uma semantica
topica, em que os efeitos de sentido, mais do que emergentes de uma
profundidade da linguagem ou do sujeito, seriam efeitos de superficie.
Essa afirmacao, contraria a imagem convencional de uma interioridade do
artista e do suposto espirito criativo, toma o sentido como um plano
matematico, pelicula de espessura zero entre as coisas e seus nomes, os
acontecimentos e as proposicoes.
Trata-se, antes, da coexistencia de duas faces sem espessura, tal
que passamos de uma para a outra margeando o comprimento.
Inseparavelmente o sentido e o exprimivel ou o expresso da proposicao e
o atributo do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, uma
face para as proposicoes. Mas nao se confunde nem com a proposicao que o
exprime nem com o estado de coisas ou a qualidade que a proposicao
designa. E, exatamente, a fronteira entre as proposicoes e as coisas. E
este aliquid [...] (Deleuze, 2009, p. 23).
Entre o mundo, como volume tridimensional, e a palavra, como
unidimensionalidade marcada pela linearidade do significante
saussuriano, o sentido e imagem bidimensional, que mostra o
decrescimento das dimensoes: 3 (mundo), 2 (sentido), 1 (palavra), ate
chegar ao ponto adimensional, sujeito que, para Lacan (1978-1979) e a
psicanalise pos-saussuriana, so pode se dar como 0 ou posicao na
estrutura, marcado na intersecao de duas linhas ou na inscricao no
universo tambem linear do significante.
Influenciado por esse universo formal da Linguistica, da Literatura
e da Psicanalise permeadas por conceitos e metaforas matematicos,
Calvino defende o projeto estrutural de Se um viajante numa noite de
inverno em resposta a midia italiana e a criticas sobre o carater
supostamente alienante do formalismo geometrico que preside a construcao
de tantas de suas obras. Para tanto, o autor definiu seu livro como
[...] obra fechada e calculada, na qual fechamento e calculo sao
apostas paradoxais que apenas indicam a verdade contraria aquela
tranquilizadora (de completude e conteudo) que a propria forma parece
significar, isto e, transmitem o sentido de um mundo precario, a ponto
de ruir, despedacar-se (Calvino, 2005, p. 267).
Em vez de uma razao ordenadora ou um iluminismo instrumental, o
projeto estetico de Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005)
enquanto topica, no qual as figuras se determinam mutuamente a partir de
suas posicoes, revela que a forma, em seus escritos, esta relacionada a
incerteza, a labilidade e a precariedade que a combinatoria, como parte
da probabilistica, indaga no caos. Essa e uma premissa de boa parte das
obras de Calvino, em que nao so as personagens transitam por espacos
ficticios, mas as proprias palavras,
[...] como espacialidades na pagina, relacionam-se segundo angulos
surpreendentes, revelando faces ocultas ou volumes secretos, que
escapariam a qualquer discurso que se pretendesse monolitico e
monossemico. Desse modo, nao mais podemos ver o texto como a composicao
binaria de um fundo e de uma forma; o texto nao e duplice, mas multiplo;
no texto so ha formas, ou, mais exatamente, o texto, em seu conjunto,
nao e mais do que uma multiplicidade de formas--sem fundo. Dir-se-a
metaforicamente que o texto literario e uma estereografia: nem melodica,
nem harmonica (ou, pelo menos, nao sem mediacao), e resolutamente um
contraponto; mistura vozes em um volume, e nao segundo uma linha, ainda
que fosse dupla (Barthes, 2004, p. 151).
Como multiplicidade de formas, um texto e uma topologia de figuras,
relacoes, vetores e sentidos, que, como na arte da estereografia,
transpoe ilusoriamente para o bidimensional algo que e da ordem do
tridimensional. Assim, sob a superficie da palavra impressa, Calvino
(2005) esconde volumes e espacos ficticios que se intercalam
vertiginosamente em Se um viajante numa noite de inverno.
Publicado pela primeira vez em 1979, o romance foi aclamado pela
critica de sua epoca como uma obra associada a crise da representacao e
aos limites a que a forma narrativa pode se lancar, desde a
revolucionaria arquitetura do proprio livro as inquietantes geometrias
verbais mais pontuais do enunciado. De modo geral, pode-se dizer que o
romance narra a saga de um Leitor e de uma Leitora (personagens assim
nomeadas no romance) que se confrontam com um livro interrompido e, na
busca pela continuacao desse texto, deparam-se com diversos outros
inicios de livro jamais completados. Os protagonistas acabam se
apaixonando ao longo desse percurso, que os leva a questionar os
proprios limites da narracao e da leitura, em um romance tipicamente
metaliterario, bem ao gosto de Calvino.
Livro composto por vinte e dois capitulos, doze deles sao indicados
genericamente como 'Capitulo 1', 'Capitulo 2',
'Capitulo 3' etc., contando a saga do Leitor e da Leitora.
Contudo, os outros dez capitulos (intercalados aos anteriores), que
narram as leituras interrompidas dessas personagens, nao recebem nenhuma
designacao por meio de algarismos, e sim por sintagmas aparentemente
desconexos: 'Se um viajante numa noite de inverno', 'Fora
do povoado de Malbork', 'Debrucando-se na borda da costa
escarpada', 'Sem temer o vento e a vertigem', 'Olha
para baixo onde a sombra se adensa', 'Numa rede de linhas que
se entrelacam', 'Numa rede de linhas que se entrecruzam',
'No tapete de folhas iluminadas pela lua', 'Ao redor de
uma cova vazia' e 'Que historia espera seu fim la
embaixo?'.
Mesmo que essa estruturacao pareca pouco logica, indicando
impessoalmente como capitulos numerados apenas alguns dos componentes do
sumario, enquanto outros receberiam nomes muito mais particulares e
elaborados, nao e gratuita tal arquitetura da obra. Cada uma dessas
series de capitulos se organiza segundo uma logica diferente, ainda que
relacionadas dialeticamente pela leitura operada pelas personagens:
quando se le 'que elas leem', tem-se a serie de capitulos
numerados; quando se le 'o que elas leem', tem-se a serie de
capitulos nomeados. Esta e a primeira contrainte que Calvino (2005) se
impos, oscilando entre o plano da ficcao e o da metaficcao--se e que e
possivel separalos.
Para tanto, o narrador poe o leitor empirico na condicao ora de
leitor em primeiro grau, ora de leitor em segundo grau, interpondo-lhe
sistematicamente os olhos das personagens tambem leitoras como lentes
sobre o texto. Alem disso, a selecao dos titulos dos capitulos nomeados
e produto de uma segunda contrainte que Calvino (2005) se impos: se
lidos em sequencia, os titulos dos capitulos nao numerados formam uma
longa frase, que antecipa algumas das reflexoes a que o livro se propoe.
Assim, ignorando os capitulos numerados e justapondo os titulos dos
capitulos nomeados em uma unica frase, obtem-se a seguinte formulacao:
"Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Malbork,
debrucando-se na bordada costa escarpada, sem temer o vento e a
vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa, numa rede de linhas
que se entrelacam, numa rede de linhas que se entrecruzam, no tapete de
folhas iluminadas pela lua, ao redor de uma cova vazia, que historia
espera seu fim la embaixo?"
Nessa longa frase, uma voz impessoal--quica da propria
literatura--indaga-se sobre um leitorviajante, fora de seu espaco
habitual, porque lancado no universo ficcional, o qual olha alem das
folhas do livro, no abismo simbolico e numa rede de linhas impressas que
se cruzam, sentindo a vertigem do infinito em que reside a ficcao.
E esse ambiguo leitor de Calvino (2005) (personagem por ele criada
ou sujeito real que tem em maos Se um viajante numa noite de inverno) se
perguntaria: que historia o espera mais a frente? O que Sherazade, aqui
tornada geometra, esta calculando para seduzi-lo? Na borda da escarpada
da pagina, onde a sombra se adensa, so pode haver novas historias,
processo meticulosamente calculado - como o projeto do romance logo se
mostra--e infinito, uma vez que a frase engendrada pelos titulos dos
capitulos nao se encerra em ponto final. Em vez disso, ha ali um sinal
de interrogacao que exige resposta e mais uma historia, em claro
intertexto com As mil e uma noites e as trapacas matematicas de
encaixamento estrutural operadas, calculadas e contadas por Sherazade.
Ademais, esse longo periodo formado pelos titulos dos capitulos
nomeados, composto majoritariamente por circunstancias adverbiais de
tempo e espaco, ja sugere os sucessivos deslocamentos e rupturas
espaco-temporais que ocorrem ao longo da narrativa, sendo as virgulas
exigidas pela sintaxe para separar os adjuntos e oracoes adverbiais da
frase um indice dessas quebras e interrupcoes. Na arquitetura do periodo
formado pelos titulos dos capitulos, essa diccao entrecortada reduplica
a macroestrutura geometrica do romance, com seus solavancos e angulacoes
entre as diversas narrativas que o compoem, vividas ou lidas pelas
personagens, as quais nao se apresentam de modo homogeneo, como uma
linha reta ou segundo a estrutura canonica do genero romance, mas sim
como subversiva linha poligonal (Figura 1).
Existindo descontinuidade e oscilacao entre a narrativa tecida nos
capitulos numerados e aquelas apresentadas nos capitulos nomeados,
pode-se dizer que em cada um desses dois conjuntos ha uma aparente
linearidade; porem, quando se combinam no livro em uma unica serie, as
relacoes passam a ser de complementaridade nao linear, uma vez que ha
sempre uma ruptura brusca--enquanto angulo na linha poligonal--no
movimento de uma narrativa a outra, embora tudo se passe no mesmo livro.
Desde o sumario do romance, entao, entreve-se sua geometria, em que dois
conjuntos de trechos narrativos, agrupados como segmentos de historias
aparentemente lineares que se articulam segundo angulosos procedimentos
formais, estruturam o transcorrer poligonal da narrativa.
Os capitulos nomeados, em que se apresentam as breves narrativas
dos livros interrompidos, possuem grande coesao interna e poderiam mesmo
ser publicadas como contos independentes, haja vista a nocao de
totalidade que, nesse caso, esta presente em cada uma dessas partes
fraturadas. Nesse momento, um paradoxo matematico se estabelece, uma vez
que o romance todo tem a mesma dimensao de cada uma de suas partes na
ficcao de Calvino (2005) (afinal, cada parte e, em si, um pequeno texto
inteirico), como num livro-fractal. Cada breve narrativa interrompida
lida pelo Leitor e pela Leitora paradoxalmente equivale, segundo essa
perspectiva, a todo Se um viajante numa noite de inverno (Calvino,
2005), uma vez que tambem esse texto poderia ser entendido como romance
interrompido, justamente no ultimo capitulo, quando as personagens
terminam de ler um livro tambem chamado 'Se um viajante numa noite
de inverno'.
Como trapaca em que cada capitulo e o romance tem a mesma dimensao,
o livros e estrutura como um complexo mise em abime, em que as partes
imitam o todo e vice-versa. Assim, por prismatico jogo de espelhos entre
ficcao e metaficcao, o romance paradoxalmente instaura um infinito
narrativo dentro do objeto livro, fisicamente restrito ao espaco entre
capa e contracapa. Reflexoes analogas sobre o infinito e o vazio,
instancias espaciais para onde aponta o texto literario, sao recorrentes
nas reflexoes das personagens de Se um viajante numa noite de inverno,
por meio de metaforas de abismo, labirinto e falta:
Numa perturbacao que dura um instante, parece-me estar sentindo o
mesmo que ela sente: que todo vazio se prolonga no vazio, todo desnivel,
mesmo minimo, da em outro desnivel, todo precipicio desemboca no abismo
infinito. [...] Talvez este meu relato seja uma ponte no vazio (Calvino,
2005, p. 87).
Ora como materia narrada nas reflexoes das personagens, ora como
processo estrutural nas replicacoes de historietas dentro da historia
maior, o infinito e uma linha de forca que perpassa todo o livro de
Calvino. Em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), o
autor optou por construir um romance de geometria imbricada, com contos
encaixados, nao justapostos. Assim, mais uma vez reeditam-se os
adiamentos de Sherazade quanto a um ponto final da narrativa, a qual
poderia ser sempre ampliada com outra historieta a ser lida pelo Leitor
e pela Leitora.
Procedimento narrativo semelhante ja havia sido empregado em As
cidades invisiveis (Calvino, 2009), com Marco Polo assumindo a tarefa de
Sherazade para agradar nao mais ao sultao, mas ao imperador mongol
Kublai Khan. Narrando suas viagens para os confins do enorme imperio
mongol, Marco Polo procede a uma geografia--ou geometria?--dos terrenos
ficcionais sobre os quais se estenderia o poder do monarca.
Alias, e tambem do estudo e das medicoes do mundo que essas duas
'geodisciplinas' surgem, como discursos analogos sobre o
espaco e as formas humanas de concebe-lo e ocupa-lo. Na interface entre
ambas as areas, interrogando o espaco e o homem, relacao mediada sempre
pela forma enquanto topologia, a urbe, em As cidades invisiveis
(Calvino, 2009), se torna um simbolo matricial do texto, pois permite
"[...] maiores possibilidades de exprimir a tensao entre a
racionalidade geometrica e o emaranhado das existencias humanas"
(Calvino, 2009, p. 85).
O livro se constroi por um intrincado encaixamento de narrativas,
com um enredo poliedrico estruturado a partir das descricoes que Marco
Polo faz de cada uma das cidades que visita; no entanto, cada vertice
desse poliedro--as urbes dominadas pelos mongois e descritas pelo
narrador reduplica o espaco narrativo do romance.
Ao entrar no territorio que tem Eutropia como capital, o viajante
nao ve uma, mas muitas cidades, todas do mesmo tamanho e nao
dessemelhantes entre si, espalhadas por um vasto e ondulado planalto.
Eutropia nao e apenas uma dessas cidades mas todas juntas; somente uma e
habitada, as outras sao desertas; e isso se da por turnos. Explico de
que maneira. No dia em que os habitantes de Eutropia se sentem
acometidos pelo tedio e ninguem mais suporta o proprio trabalho, os
parentes, a casa e a rua, os debitos, as pessoas que devem cumprimentar
ou que os cumprimentam, nesse momento todos os cidadaos decidem
deslocar-se para a cidade vizinha que esta ali a espera, vazia e como se
fosse nova, onde cada um escolhera um outro trabalho, uma outra mulher,
vera outras paisagens ao abrir as janelas, passara as noites com outros
passatempos amizades improperios. [...] Deste modo a cidade repete uma
vida identica deslocando-se para cima e para baixo em seu tabuleiro
vazio. Os habitantes voltam a recitar as mesmas cenas com atores
diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes combinacoes de
palavras; escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais
(Calvino, 2009, p. 62-63).
Em Eutropia, uma das diversas cidades visitadas e descritas por
Marco Polo, esse jogo de narrativas encaixadas se torna ainda mais
explicito: como urbe composta por urbes ainda menores, Eutropia e um
espaco onde a parte e o todo tem o mesmo tamanho, desafiando as
impressoes mais imediatas acerca das dimensoes. Assim,
'deslocando-se para cima e para baixo em seu tabuleiro vazio',
os habitantes dessa cidade movimentam-se como pecas em um jogo de
bonecas russas ou cubos encaixados, onde toda diferenca nada mais e do
que manipulacao e prestidigitacao com algumas constantes.
Essa vida, entao, que se repete identicamente em cada subcidade de
Eutropia, com as mesmas relacoes entre os individuos e o espaco urbano,
alterando-se apenas de que individuos e de que espaco se trata,
assemelha-se sobremaneira as narrativas interrompidas de Se um viajante
numa noite de inverno (Calvino, 2005). Nessas historias inacabadas que o
Leitor e a Leitora leem, mudam-se radicalmente os espacos--uma praia,
uma ponte, uma cidade em guerra, um pais misterioso e distante--, a
atmosfera do texto e os nomes das personagens. No entanto, assim como em
Eutropia, essas alteracoes sao apenas aparentes, pois as relacoes entre
as personagens e a sintaxe dos enredos se mantem identicas: mudam-se os
elementos combinados, mas nao os procedimentos combinatorios.
Em termos geometricos, pode-se pensar a arquitetura de Se um
viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) como a de um espaco
topologico metafora usada tambem por Kristeva (1974) para descrever a
espacializacao da linguagem poetica e por Lacan (1978-1979) para
descrever o inconsciente como linguagem. Como ramo da geometria, a
topologia designa nao distancias, mas posicoes relativas; estas podem
ser aproximadas ou afastadas, como quem esticasse uma estrutura de
borracha, mas as relacoes morfologicas permanecem inalteradas. Sao,
pois, espacos topologicos os incipits que compoem Se um viajante numa
noite de inverno (Calvino, 2005), uma vez que, a despeito de mudancas de
conteudo, preserva-se nesses fragmentos uma mesma narrativa elementar:
uma personagem masculina, que, em busca de uma verdade, uma informacao,
um segredo, depara-se com uma mulher misteriosa e por ela se apaixona,
embora nunca o romance se concretize, dada a interrupcao dos textos no
seu respectivo climax.
[...]--O que quer saber?--Ele fica nervoso.--O senhor se interessa
por literatura cimeria ou ... Parece que completaria: 'por
Ludmilla?'. Entretanto, nao termina a frase. Voce, se fosse
sincero, responderia que nao consegue distinguir do interesse pelo
romance cimerio o interesse pela Leitora do romance. Depois, as reacoes
do professor ao nome de Ludmilla, somando-se as confidencias de Irnerio,
lancam lampejos misteriosos, criam ao redor da Leitora uma curiosidade
apreensiva, nao diferente da que liga voce a Zwida Ozkart, no romance
cuja sequencia voce procura, como antes essa curiosidade o ligava a
senhora Marne no romance que voce comecara a ler um dia e que pos
temporariamente de lado, e agora eis que voce se lanca a busca de todas
essas sombras, as da imaginacao e a da vida (Calvino, 2005, p. 56-57).
Identificando na amada Leitora Ludmilla as personagens femininas de
todos os romances interrompidos, o Leitor realiza uma verdadeira
declaracao de amor. Apaixonando-se a cada texto lido por uma nova
mulher, todas elas sao Ludmilla, pois indicam partes de seu temperamento
variado e, mais uma vez, aqui a parte se confunde com o todo.
Como tal semelhanca se verifica tambem na relacao entre as demais
personagens e os elementos narrativos de cada incipit, repetidos apenas
com variacoes de conteudo, mas nao de sintaxe narrativa, o modelo
actancial de Greimas e Courtes (1979) pode aqui ser evocado. Mais como
actantes do que como personagens, uma vez que sua funcao narrativa
constante em todas as historietas interrompidas se sobrepoe as
caracteristicas psicologicas ou fisicas individuais, esse jogo de
semelhancas e tao baseado em simetrias e truques geometricos que nao se
pode perder de vista que o proprio Greimas e Courtes (1979) cunhou o
termo quadrado semiotico para dar conta de fenomenos dessa sorte.
Na condicao de variacoes em torno dos mesmos actantes, recombinando
os vertices do quadrado semiotico, as narrativas interrompidas
apresentam ainda outra conexao, para alem da longa frase que seus
titulos engendram: segundo Calvino (1984), tratando-se de um romance de
paixao pela leitura, esses contos encaixados no livro representariam o
inicio de obras que o ficcionista italiano gostaria de ter lido. Na
arquitetura da obra, o narrador atribui a personagem da Leitora essas
predilecoes literarias, as quais sao atendidas a cada novo incipit com
que esta e o Leitor se defrontam:
--Gosto de saber que existem livros que ainda poderei ler--ela diz,
certa de que a forca de seu desejo devem corresponder objetos
existentes, concretos, mesmo que ainda desconhecidos. Como acompanhar o
passo dessa mulher, que sempre le outro livro alem daquele que tem
diante dos olhos, um livro que ainda nao existe, mas que dado que ela o
deseja, nao pode deixar de existir? (Calvino, 2005, p. 78).
E o desejo da Leitora que conduz a voz narrativa, fazendo da
leitura um objeto de seducao no triangulo amoroso que se estabelece
entre as personagens do Autor atormentado, do Leitor e da Leitora ao
longo do romance. Desse desejo, nasce o livro como infinito potencial,
abrindo, a partir da superficie da pagina, espacos outros, 'alem
daquele que se tem diante dos olhos'
Desse modo, a cada afirmacao do desejo da Leitora, a personagem do
Autor desvia a narrativa com um solavanco para agradar a amada, qual
aresta na linha poligonal em que se estrutura o romance. Assim, a
propria estrutura classica do romance dividido em capitulos, oriunda das
contingencias de circulacao e recepcao dos folhetins oitocentistas,
ganha em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) nova
dimensao.
Mais alem das cesuras tipicas para garantir pausas a leitura e
suspense para a proxima edicao do folhetim, o "[...] velho topos
romanesco [...]" (Calvino, 2005, p. 267) da quebra dos capitulos
aqui e um efeito geometrico e fractal, em que um ponto de cada capitulo
da narrativa central--a afirmativa do desejo da Leitora quanto ao livro
de seus sonhos replica por antecipacao a estrutura de todo o proximo
capitulo: eis-nos mais uma vez diante do paradoxo das partes que tem o
mesmo tamanho que o todo.
A intrincada arquitetura dos capitulos em relacao aos desejos da
amada corresponde um diagrama exercicio escritural de geometria?--feito
por Calvino.
Segundo esse modelo proposto pelo autor, cada selecao de um romance
cujo incipit seria inserido em Se um viajante numa noite de inverno
(Calvino, 2005) implica uma bifurcacao: uma das opcoes culminaria em uma
dessas narrativas encaixadas (destacadas em retangulos no diagrama do
autor); a outra, em uma nova bifurcacao. Esse procedimento se repete dez
vezes, uma para cada romance interrompido, como se pode notar na Figura
2. Por fim, o ramo orfao da ultima bifurcacao poderia ser ligado ao
inicio do diagrama, segundo um modelo circular, haja vista que o livro
lido por Leitor e Leitora, na ultima pagina do romance, intitula-se
tambem 'Se um viajante numa noite de inverno'.
No entanto, como sublinhado no posfacio do romance, tal esquema
matematico do texto nao deve ser lido como programacao estavel e
controle sistematico dos efeitos de sentido. Em vez disso, ja que se
trata da representacao de "[...] um mundo precario, a ponto de
ruir, despedacar-se [...]" (Calvino, 2005, p .267), a imagem
geometrica e aqui uma metafora do romance como projeto estetico,
sujeito, porem, a todo caos, desordem e imprevisibilidade da arte, ainda
que dentro das contingencias da forma e do espaco.
Consideracoes finais
O espaco, como condicao de significacao, esta presente na
compreensao fenomenologica da linguagem e do pensamento, pois toda
lingua se estrutura por metaforas espaciais: um conceito
'dentro' do outro, uma ideia 'fora' de contexto, um
argumento 'em face' de uma tese, ou uma posicao hierarquica
'acima' das demais. Pensa-se a partir da nocao de espaco,
utilizando-se dele como metafora primeira para ordenacao das ideias e
das palavras, sendo sua sintaxe transposta para a lingua quando se
consideram as relacoes posicionais que os termos assumem entre si quando
lancados na fala.
O exterior e o interior formam uma dialetica de dissecacao, e a
geometria evidente dessa dialetica nos cega desde o momento em que a
fizermos aparecer nos dominios metaforicos. Ela tem a nitidez decisiva
da dialetica do sim e do nao, que tudo decide. Fazemos de tal dialetica,
sem tomar maiores cuidados, uma base para as imagens que comandam todos
os pensamentos do positivo e do negativo. Os logicos tracam circulos que
se produzem ou se excluem e logo todas as suas regras ficam claras. O
filosofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o nao-ser. A
metafisica mais profunda enraiza-se numa geometria implicita, numa
geometria que--queiramos ou nao--espacializa o pensamento; se o
metafisico nao desenhasse, sera que ele pensaria? O aberto e o fechado
sao, para ele, pensamentos. O aberto e o fechado sao metaforas que ele
liga a tudo, inclusive aos seus sistemas (Bachelard, 1988, p. 153).
Condicao de percepcao e significacao, o espaco, como categoria nao
so linguistica, mas tambem literaria, e questionado em Se um viajante
numa noite de inverno (Calvino, 2005) por engenhosas trapacas com as
convencoes narrativas e, por conseguinte, com os limites da
representacao. Segundo tal perspectiva, o presente artigo realizou uma
analise das espacialidades do romance, mas, em lugar da tradicional
discussao do espaco apenas como paisagem literaria, a leitura aqui
ensaiada lancou mao de metaforas geometricas para entender o romance
como transgressao dimensional nos planos do enunciado e da enunciacao.
Em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), a
materialidade textual e revisitada como espaco, e nao somente como
tempo, em que os pontos--da tinta nas retas da pagina, dos significados
na linearidade do significante, das personagens nas linhas do enredo--se
revelam instancias cujos sentidos se constroem a partir de suas posicoes
relativas, tal qual vertices de qualquer figura topologica. Feito
espaco, o verbo constroi todos os possiveis percursos para o leitor que
viaja numa noite invernal pelo livro, seguindo as trilhas poligonais do
enredo a luz do ponto zero da enunciacao da penado narrador--ou do
compasso do geometra?
Nesse processo, ganham destaque as contraintes, ou restricoes
formais autoimpostas por Calvino, as quais determinam as topicas que
podem ser construidas em seu texto, os espacos que podem ser habitados
pelas personagens e a trajetoria do leitor que viaja livro adentro na
noite de inverno. No ambito dos experimentalismos formais do grupo
Oulipo, Calvino cria, em Se um viajante numa noite de inverno (2005),
sua propria maneira de fazer matematica. Para alem das geometrias
euclidiana e nao euclidiana, eis-nos diante de um novo ramo da area: a
geometria calviniana.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v40i2.36613
Referencias
Bachelard, G. (1988). A poetica do espaco. Sao Paulo, SP: Abril.
Barthes, R. (2004). O grau zero da escrita. Sao Paulo, SP: Martins
Fontes.
Barthes, R. (2007). Fragmentos de um discurso amoroso. Sao Paulo,
SP: Martins Fontes.
Blanchot, M. (2011). O espaco literario. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.
Calvino, I. (1984) II libro, i libri. Nuovi quaderni italiani,
#(1), 11-21. (Istituto Italiano di Cultura).
Calvino, I. (2000). O caminho de San Giovanni. Sao Paulo, SP:
Companhia das Letras.
Calvino, I. (2005). Se um viajante numa noite de inverno. Sao
Paulo, SP: Companhia das Letras.
Calvino, I. (2006). O castelo dos destinos cruzados. Sao Paulo, SP:
Companhia das Letras.
Calvino, I. (2009). As cidades invisiveis. Sao Paulo, SP: Companhia
das Letras.
Deleuze, G. (2009). Logica do sentido. Sao Paulo, SP: Perspectiva.
Greimas, A. J., & Courtes, J. (1979). Semiotique: dictionnaire
raisonne de la theorie du langage. Paris, FR: Hachette.
Hobbes, T. (1988). Leviata ou materia, forma e poder de um estado
eclesiastico e civil. Sao Paulo, SP: Nova Cultural.
Ingarden, R. (1965). A obra literaria. Lisboa, PT: Calouste
Gulbenkian.
Kristeva, J. (1974). Introducao a semanalise. Sao Paulo, SP:
Perspectiva.
Lacan, J. (1978-1979). Le Seminaire--Livre XXVI--La topologie et le
temps. Recuperado de
http://ecolelacanienne.net/en/bibliolacan/seminaires-version-j-l-
et-non-j-l/.
Lopes, A. (2016). Espaco. In C. Ceia, E-dicionario de termos
literarios. Recuperado de http://www.edtl.com.pt. Lotman, Y. (1978). A
estrutura do texto artistico. Lisboa, PT: Estampa.
Mcloughlin, M. (1998). italo Calvino. Edinburgh, GB: Edinburgh
University Press.
Received on April 8, 2017.
Accepted on March 16, 2018 .
License information: This is an open-access article distributed
under the terms of the Creative Commons Attribution License, which
permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium,
provided the original work is properly cited.
Vinicius Carvalho Pereira
Instituto de Linguagens, Departamento de Letras, Universidade
Federal de Mato Grosso, Av. Fernando Correa da Costa, 2367, 78060-900,
Cuiaba, Mato Grosso, Brasil. E-mail: viniciuscarpe@gmail.com
(1) O Oulipo, ou Ouvroir de Litterature Potentielle, foi criado na
decada de 60 do seculo XX por matematicos e literatos, entre os quais se
podem destacar Raymond Queneau, Georges Perec, Marcel Benabou e Jacques
Roubaud. Os oulipianos defendiam que a literatura poderia ser produzida,
de forma libertaria, a partir de restricoes formais autoimpostas--as
contraintes -, as quais funcionariam como regras de um jogo, do qual
caberia ao escritor participar.
Caption: Figura 1. Linha reta e linha poligonal aberta (Elaborada
pelo autor).
Caption: Figura 2. Diagrama arboreo (adaptado) do projeto de Se um
viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005, p. 275).
COPYRIGHT 2018 Universidade Estadual de Maringa
No portion of this article can be reproduced without the express written permission from the copyright holder.
Copyright 2018 Gale, Cengage Learning. All rights reserved.