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  • 标题:Fictional geometries and geometric fictions in Se um viajante numa noite de inverno, by Italo Calvino/Geometrias da ficcao e ficcoes geometricas em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.
  • 作者:Pereira, Vinicius Carvalho
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2018
  • 期号:July
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Introducao

    Nascido em 1923, em Cuba, Italo Calvino foi aos dois anos de idade para a Italia, onde viveu ate o fim da vida. Sua producao literaria, inaugurada em 1947 com A trilhados ninhos de aranha, esteve inicialmente marcada pelo neorrealismo dominante na Italia apos a Segunda Guerra Mundial. Tendo lutado na guerra de resistencia ao fascismo e participado ativamente no Partido Comunista ate 1956, Calvino escreveu, ainda em sua juventude, acerca de questoes politicas e historicas que assolavam seu pais na metade do seculo XX. Tal vies sociocritico tambem era caro a seus escritos teoricos e ensaisticos de inicio de carreira, publicados em jornais e periodicos como II Politecnico, LUnita e Rinascita (McLoughlin, 1998).

    Ainda que tais preocupacoes acerca do futuro da Italia e do mundo tenham permeado o projeto literario desse autor ao longo de toda a sua vida, essas questoes se tornaram menos salientes quando Calvino se aproximou dos grupos Tel quel e Oulipo (1), quando de sua mudanca para Paris em 1967. Nesse contexto, o autor italiano teve a oportunidade de conhecer pessoalmente Roland Barthes, a cujo curso de Semiologia assistiu em 1968 na Ecoledes Hautes Etudes; e Raymond Queneau, de quem traduziu o romance Les Fleurs Bleues para o italiano.

    A influencia de Queneau sobre Calvino, especialmente seus jogos matematicos e a ideia de uma ecrituresous contrainte, levou em 1973 o autor italiano a tornar-se oficialmente membro do Oulipo, grupo do qual nunca mais se separou e cujos principios norteadores permaneceram em sua obra ate o fim da vida, especialmente em livros como As cidades invisiveis (Calvino, 2009), O castelo dos destinos cruzados (Calvino, 2006) e Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005). Como exemplo da presenca do pensamento matematico na ficcao calviniana, diversos estudos academicos ja analisaram os jogos de combinatoria nos romances e contos do autor, especialmente nos romances supracitados.

Fictional geometries and geometric fictions in Se um viajante numa noite de inverno, by Italo Calvino/Geometrias da ficcao e ficcoes geometricas em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.


Pereira, Vinicius Carvalho


Fictional geometries and geometric fictions in Se um viajante numa noite de inverno, by Italo Calvino/Geometrias da ficcao e ficcoes geometricas em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.

Introducao

Nascido em 1923, em Cuba, Italo Calvino foi aos dois anos de idade para a Italia, onde viveu ate o fim da vida. Sua producao literaria, inaugurada em 1947 com A trilhados ninhos de aranha, esteve inicialmente marcada pelo neorrealismo dominante na Italia apos a Segunda Guerra Mundial. Tendo lutado na guerra de resistencia ao fascismo e participado ativamente no Partido Comunista ate 1956, Calvino escreveu, ainda em sua juventude, acerca de questoes politicas e historicas que assolavam seu pais na metade do seculo XX. Tal vies sociocritico tambem era caro a seus escritos teoricos e ensaisticos de inicio de carreira, publicados em jornais e periodicos como II Politecnico, LUnita e Rinascita (McLoughlin, 1998).

Ainda que tais preocupacoes acerca do futuro da Italia e do mundo tenham permeado o projeto literario desse autor ao longo de toda a sua vida, essas questoes se tornaram menos salientes quando Calvino se aproximou dos grupos Tel quel e Oulipo (1), quando de sua mudanca para Paris em 1967. Nesse contexto, o autor italiano teve a oportunidade de conhecer pessoalmente Roland Barthes, a cujo curso de Semiologia assistiu em 1968 na Ecoledes Hautes Etudes; e Raymond Queneau, de quem traduziu o romance Les Fleurs Bleues para o italiano.

A influencia de Queneau sobre Calvino, especialmente seus jogos matematicos e a ideia de uma ecrituresous contrainte, levou em 1973 o autor italiano a tornar-se oficialmente membro do Oulipo, grupo do qual nunca mais se separou e cujos principios norteadores permaneceram em sua obra ate o fim da vida, especialmente em livros como As cidades invisiveis (Calvino, 2009), O castelo dos destinos cruzados (Calvino, 2006) e Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005). Como exemplo da presenca do pensamento matematico na ficcao calviniana, diversos estudos academicos ja analisaram os jogos de combinatoria nos romances e contos do autor, especialmente nos romances supracitados.

No presente artigo, porem, analisa-se o rendimento estetico do pensamento matematico na escrita de Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), sob outro vies: a geometrizacao do espaco literario. Parte-se aqui do pressuposto de que a categoria de espaco da narrativa, operador de leitura exaustivamente trabalhado pelas diversas correntes de teoria e critica literaria, pode ganhar nova perspectiva na escrita calviniana a luz dos formalismos matematicos e linguisticos que tanto interessaram a Calvino apos sua filiacao ao Oulipo. Para tanto, este artigo ensaia uma analise sobre a poetica do espaco literario no romance de Italo Calvino, mas sob uma perspectiva geometrica. Nao se quer, porem, medir linhas, areas ou volumes, mas questionar a propria dimensionalidade e os desdobramentos do texto como espacialidade infinita, mas limitada (Blanchot, 2011). A guisa de metodo, le-se aqui Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) seguindo uma linha ziguezagueante que ora o percorre, ora dele se afasta para dialogar com outros textos de Calvino, mas para logo retornar ao romance em tela. Em lugar da linha reta, opcao mais comum no genero ensaio analitico, optase aqui por uma geometria textual mais complexa, percorrendo diferentes textos de Calvino de modo a reconstruir, no gesto enunciativo critico, algo das espacialidades fraturadas, dobradas e estriadas da ficcao do autor.

Se um viajante numa noite geometrica

Trabalhado inicialmente pela critica literaria de vies fenomenologico, o conceito de espaco, integrando a triade narrativa personagem-tempoespaco, instalava a oposicao entre espaco real e espaco ficcional (Ingarden, 1965): este como malogro assumido de captar as multiplicidades daquele, segundo a impossibilidade de acesso a totalidade do objeto e a inapreensibilidade do real na dinamica do simbolico (Lacan, 1978-1979). Assim, ao infinito e determinado espaco real, opor-se-ia o finito e indeterminado espaco ficcional.

No texto literario, o espaco surge-nos, em consequencia, incompleto e sem solucoes de continuidade, dado que e impossivel esgotar todas as suas determinacoes. Qualquer descricao, por muito exaustiva ou por muito elaborada que seja em termos estilisticos, acaba, ainda que involuntariamente, por ignorar a maioria dos elementos constitutivos de qualquer paisagem que se queira retratar (Lopes, 2016).

Como modelo finito da infinitude (Lotman, 1978), o espaco ficcional, assim como o tempo ficcional, circunscreve as dimensoes da pagina escrita algo infinito (ou que se acreditava como tal ate algumas das mais recentes descobertas astrofisicas). Essa limitacao na construcao do espaco ficcional estaria condicionada pela propria visada do narrador e sua perspectiva balizada pelo ponto zero da enunciacao: ego, hic et nunc. Afinal, aquilo que nos e dado a conhecer, enquanto leitores, nao e outra coisa senao setores do espaco delimitados (ora pela incapacidade da linguagem de esgotar o todo, ora pelas ocultacoes proporcionadas por determinada perspectiva); setores esses que se encontram, de certo modo, encadeados pelo continuum textual (Lopes, 2016).

A partir do eu-aqui-agora que narra, o universo textual e construido, mas nunca como completude, e sim como projecao linguistica desse ponto deitico ao qual o discurso retorna, como ponto de orientacao. O que nao e visto, ouvido ou dito pelo narrador nao existe, ou existe apenas como possibilidade e suspensao. E como se, em torno do espaco descrito pelo texto, nao houvesse um espaco vazio, mas sim uma nao espacialidade, nao nomeada e, portanto, nao figurada e nao criada no texto, como percebe o protagonista de uma das varias narrativas de Se um viajante numa noite de inverno.

Ja atravessei o bar varias vezes e olhei pela porta que da para a praca invisivel, e todas as vezes a parede negra da noite me atirou para tras nessa especie de limbo luminoso, suspenso entre duas obscuridades, a do feixe de trilhos e a da cidade nebulosa. Sair para onde? A cidade la fora ainda nao tem nome, nao sabemos se ficara fora do romance ou se o contera inteiro no negrume de sua tinta. Sei apenas que este primeiro capitulo demora a afastar-se da estacao e do bar; nao e prudente que eu me afaste daqui [...] (Calvino, 2005, p. 21).

Fora da visada e do discurso do narrador, o espaco da 'cidade la fora' nao existe, ficando fora do romance ou na escuridao do nao dito. Preso na unica espacialidade ate entao enunciada, a personagemnarradora so pode ir do bar a estacao, unicos locais descritos no texto. Construcao linguistica, o espaco ficcional existe apenas quando pronunciado ou garatujado na pagina, cartografias verbais que excluem o nao dito como nao existente. Ou melhor, nem mesmo nao existente, pois, para nao existir, e primeiro preciso enunciar aquilo que nao existe; aqui o espaco literario simplesmente nao e.

Limitado pelas margens da pagina e pela perspectiva do narrador, o espaco literario finitiza o infinito, como no conto 'Do opaco', publicado no Brasil em O caminho de San Giovanni (Calvino, 2000), junto com outros exercicios de memoria em que o narrador se defronta com um

[...] inverificavel axioma para os calculos da memoria, o lugar geometrico doeu, de um mim mesmo do qual o mim mesmo necessita para se saber mim mesmo, o eu que so serve para que o mundo receba continuamente noticias da existencia do mundo, um engenho de que o mundo dispoe para saber se existe (Calvino, 2000, p. 118).

Conto-tese, 'Do opaco' combina um carater memorialista, revivendo lembrancas opticas do narrador, com uma sintese da visao geometrica de Calvino (2000) acerca do mundo e sua arte, reincidente em suas obras. Debrucado sobre a sacada de uma janela de fronte a cidade, com o mar ao fundo, o narrador observa detalhadamente a paisagem ao seu redor e descobre nela uma miriade de formas matematicas e perspectivas, decompondo a suposta unidade e organicidade visual da urbe em uma serie de fragmentos geometricos descontinuos. Como em um Cubismo literario, o narrador, ao fim de suas observacoes e especulacoes, descobre que fala sempre de um 'lugar geometrico' do eu, a partir do qual constroi asieao mundo. Com regua e compasso?

Como ponto zero da enunciacao, esse lugar geometrico--metafora no pos-estruturalismo frances tambem para dizer do estilo de um autor (Barthes, 2004)--define as limitacoes do alcance da perspectiva e, por conseguinte, as fronteiras do espaco narrativo. Este, por sua vez, e tambem um mosaico de planos, solidos e poligonos, concepcao de espaco que norteara toda a producao calviniana:

Comecarei entao dizendo que o mundo e composto por linhas quebradas e continuas, com segmentos que, salientes, tendem a avancar para alem dos cantos de cada degrau, como fazem as agaves que crescem amiude nas bordas, e com linhas verticais ascendentes como as palmeiras que sombreiam os jardins ou terracos sobranceiros aqueles em que tem suas raizes (Calvino, 2000, p. 106).

Formada de linhas e segmentos, mais do que de pessoas e coisas, a paisagem contemplada pelo narrador e como a propria pagina literaria que o leitor tem diante dos olhos. Antes de ver ou imaginar as praias, casas e arvores descritas pela voz narrativa, o que o leitor mira na folha de papel sao, na verdade, letras formadas por 'linhas quebradas e continuas', organizadas em paragrafos que, de certa forma, mais nao sao do que esbocos de retangulos zebrados em preto contra um fundo branco.

Essa perspectiva fragmentaria e imanente na materialidade do texto e ainda confirmada pela diccao do narrador de 'Do opaco', que corta seus paragrafos abruptamente, no meio de frases incompletas, de modo que qualquer paragrafo pode comecar com letra minuscula, como continuacao do anterior, mas ja integrando um novo retangulo listrado, separado do anterior pela indentacao. Para cada imagem da cidade, descrita em formas geometricas, um novo retangulo na pagina: fratura e fragmentacao como um Cubismo do verbo. Em oposicao a tradicional ideia de espaco ficcional acabado e bem marcado, 'Do opaco' apresenta uma espacialidade fraturada ao infinito, como em um jogo de fractais, ou um prisma narrativo.

Considerando que toda palavra tem um 'sentido', termo caro nao so a linguistica, como aos vetores matematicos, a propria dimensao do texto, como espaco, pode ser iluminada por alguns lampejos da geometria. Sendo esta uma ciencia nao so das formas, mas tambem da ordenacao, da relacao e da composicao, a frase, na condicao de microespaco, que engendra o texto como espaco literario, e tambem um fenomeno geometrico.

Vendo entao que a verdade consiste na adequada ordenacao de nomes em nossas afirmacoes, um homem que procurar a verdade rigorosa deve lembrar-se que coisa substitui cada palavra de que se serve, e coloca-la de acordo comisso; de outro modo ver-se-a enredado em palavras, como uma ave em varas enviscadas: quanto mais lutar, mais se fere. E, portanto, em geometria (que e a unica ciencia que prouve a Deus conceder a humanidade) os homens comecam por estabelecer as significacoes de suas palavras, e a esse estabelecimento de significacoes chamam definicoes, e colocam-nas no inicio de seu calculo (Hobbes, 1988, p. 18).

A ordem, como constituinte matematicogeometrico, revela-se modo de significar da sintaxe da frase a sintaxe da narrativa, pois as figuras do texto se constroem segundo uma topica (Barthes, 2007), em que, como pontos na linha, definem o percurso da narrativa. No que tange a esse carater significativo que a geometria da frase e do texto assume dentro da literatura, Deleuze (2009) postula a existencia de uma semantica topica, em que os efeitos de sentido, mais do que emergentes de uma profundidade da linguagem ou do sujeito, seriam efeitos de superficie. Essa afirmacao, contraria a imagem convencional de uma interioridade do artista e do suposto espirito criativo, toma o sentido como um plano matematico, pelicula de espessura zero entre as coisas e seus nomes, os acontecimentos e as proposicoes.

Trata-se, antes, da coexistencia de duas faces sem espessura, tal que passamos de uma para a outra margeando o comprimento. Inseparavelmente o sentido e o exprimivel ou o expresso da proposicao e o atributo do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, uma face para as proposicoes. Mas nao se confunde nem com a proposicao que o exprime nem com o estado de coisas ou a qualidade que a proposicao designa. E, exatamente, a fronteira entre as proposicoes e as coisas. E este aliquid [...] (Deleuze, 2009, p. 23).

Entre o mundo, como volume tridimensional, e a palavra, como unidimensionalidade marcada pela linearidade do significante saussuriano, o sentido e imagem bidimensional, que mostra o decrescimento das dimensoes: 3 (mundo), 2 (sentido), 1 (palavra), ate chegar ao ponto adimensional, sujeito que, para Lacan (1978-1979) e a psicanalise pos-saussuriana, so pode se dar como 0 ou posicao na estrutura, marcado na intersecao de duas linhas ou na inscricao no universo tambem linear do significante.

Influenciado por esse universo formal da Linguistica, da Literatura e da Psicanalise permeadas por conceitos e metaforas matematicos, Calvino defende o projeto estrutural de Se um viajante numa noite de inverno em resposta a midia italiana e a criticas sobre o carater supostamente alienante do formalismo geometrico que preside a construcao de tantas de suas obras. Para tanto, o autor definiu seu livro como

[...] obra fechada e calculada, na qual fechamento e calculo sao apostas paradoxais que apenas indicam a verdade contraria aquela tranquilizadora (de completude e conteudo) que a propria forma parece significar, isto e, transmitem o sentido de um mundo precario, a ponto de ruir, despedacar-se (Calvino, 2005, p. 267).

Em vez de uma razao ordenadora ou um iluminismo instrumental, o projeto estetico de Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) enquanto topica, no qual as figuras se determinam mutuamente a partir de suas posicoes, revela que a forma, em seus escritos, esta relacionada a incerteza, a labilidade e a precariedade que a combinatoria, como parte da probabilistica, indaga no caos. Essa e uma premissa de boa parte das obras de Calvino, em que nao so as personagens transitam por espacos ficticios, mas as proprias palavras,

[...] como espacialidades na pagina, relacionam-se segundo angulos surpreendentes, revelando faces ocultas ou volumes secretos, que escapariam a qualquer discurso que se pretendesse monolitico e monossemico. Desse modo, nao mais podemos ver o texto como a composicao binaria de um fundo e de uma forma; o texto nao e duplice, mas multiplo; no texto so ha formas, ou, mais exatamente, o texto, em seu conjunto, nao e mais do que uma multiplicidade de formas--sem fundo. Dir-se-a metaforicamente que o texto literario e uma estereografia: nem melodica, nem harmonica (ou, pelo menos, nao sem mediacao), e resolutamente um contraponto; mistura vozes em um volume, e nao segundo uma linha, ainda que fosse dupla (Barthes, 2004, p. 151).

Como multiplicidade de formas, um texto e uma topologia de figuras, relacoes, vetores e sentidos, que, como na arte da estereografia, transpoe ilusoriamente para o bidimensional algo que e da ordem do tridimensional. Assim, sob a superficie da palavra impressa, Calvino (2005) esconde volumes e espacos ficticios que se intercalam vertiginosamente em Se um viajante numa noite de inverno.

Publicado pela primeira vez em 1979, o romance foi aclamado pela critica de sua epoca como uma obra associada a crise da representacao e aos limites a que a forma narrativa pode se lancar, desde a revolucionaria arquitetura do proprio livro as inquietantes geometrias verbais mais pontuais do enunciado. De modo geral, pode-se dizer que o romance narra a saga de um Leitor e de uma Leitora (personagens assim nomeadas no romance) que se confrontam com um livro interrompido e, na busca pela continuacao desse texto, deparam-se com diversos outros inicios de livro jamais completados. Os protagonistas acabam se apaixonando ao longo desse percurso, que os leva a questionar os proprios limites da narracao e da leitura, em um romance tipicamente metaliterario, bem ao gosto de Calvino.

Livro composto por vinte e dois capitulos, doze deles sao indicados genericamente como 'Capitulo 1', 'Capitulo 2', 'Capitulo 3' etc., contando a saga do Leitor e da Leitora. Contudo, os outros dez capitulos (intercalados aos anteriores), que narram as leituras interrompidas dessas personagens, nao recebem nenhuma designacao por meio de algarismos, e sim por sintagmas aparentemente desconexos: 'Se um viajante numa noite de inverno', 'Fora do povoado de Malbork', 'Debrucando-se na borda da costa escarpada', 'Sem temer o vento e a vertigem', 'Olha para baixo onde a sombra se adensa', 'Numa rede de linhas que se entrelacam', 'Numa rede de linhas que se entrecruzam', 'No tapete de folhas iluminadas pela lua', 'Ao redor de uma cova vazia' e 'Que historia espera seu fim la embaixo?'.

Mesmo que essa estruturacao pareca pouco logica, indicando impessoalmente como capitulos numerados apenas alguns dos componentes do sumario, enquanto outros receberiam nomes muito mais particulares e elaborados, nao e gratuita tal arquitetura da obra. Cada uma dessas series de capitulos se organiza segundo uma logica diferente, ainda que relacionadas dialeticamente pela leitura operada pelas personagens: quando se le 'que elas leem', tem-se a serie de capitulos numerados; quando se le 'o que elas leem', tem-se a serie de capitulos nomeados. Esta e a primeira contrainte que Calvino (2005) se impos, oscilando entre o plano da ficcao e o da metaficcao--se e que e possivel separalos.

Para tanto, o narrador poe o leitor empirico na condicao ora de leitor em primeiro grau, ora de leitor em segundo grau, interpondo-lhe sistematicamente os olhos das personagens tambem leitoras como lentes sobre o texto. Alem disso, a selecao dos titulos dos capitulos nomeados e produto de uma segunda contrainte que Calvino (2005) se impos: se lidos em sequencia, os titulos dos capitulos nao numerados formam uma longa frase, que antecipa algumas das reflexoes a que o livro se propoe. Assim, ignorando os capitulos numerados e justapondo os titulos dos capitulos nomeados em uma unica frase, obtem-se a seguinte formulacao: "Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Malbork, debrucando-se na bordada costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa, numa rede de linhas que se entrelacam, numa rede de linhas que se entrecruzam, no tapete de folhas iluminadas pela lua, ao redor de uma cova vazia, que historia espera seu fim la embaixo?"

Nessa longa frase, uma voz impessoal--quica da propria literatura--indaga-se sobre um leitorviajante, fora de seu espaco habitual, porque lancado no universo ficcional, o qual olha alem das folhas do livro, no abismo simbolico e numa rede de linhas impressas que se cruzam, sentindo a vertigem do infinito em que reside a ficcao.

E esse ambiguo leitor de Calvino (2005) (personagem por ele criada ou sujeito real que tem em maos Se um viajante numa noite de inverno) se perguntaria: que historia o espera mais a frente? O que Sherazade, aqui tornada geometra, esta calculando para seduzi-lo? Na borda da escarpada da pagina, onde a sombra se adensa, so pode haver novas historias, processo meticulosamente calculado - como o projeto do romance logo se mostra--e infinito, uma vez que a frase engendrada pelos titulos dos capitulos nao se encerra em ponto final. Em vez disso, ha ali um sinal de interrogacao que exige resposta e mais uma historia, em claro intertexto com As mil e uma noites e as trapacas matematicas de encaixamento estrutural operadas, calculadas e contadas por Sherazade.

Ademais, esse longo periodo formado pelos titulos dos capitulos nomeados, composto majoritariamente por circunstancias adverbiais de tempo e espaco, ja sugere os sucessivos deslocamentos e rupturas espaco-temporais que ocorrem ao longo da narrativa, sendo as virgulas exigidas pela sintaxe para separar os adjuntos e oracoes adverbiais da frase um indice dessas quebras e interrupcoes. Na arquitetura do periodo formado pelos titulos dos capitulos, essa diccao entrecortada reduplica a macroestrutura geometrica do romance, com seus solavancos e angulacoes entre as diversas narrativas que o compoem, vividas ou lidas pelas personagens, as quais nao se apresentam de modo homogeneo, como uma linha reta ou segundo a estrutura canonica do genero romance, mas sim como subversiva linha poligonal (Figura 1).

Existindo descontinuidade e oscilacao entre a narrativa tecida nos capitulos numerados e aquelas apresentadas nos capitulos nomeados, pode-se dizer que em cada um desses dois conjuntos ha uma aparente linearidade; porem, quando se combinam no livro em uma unica serie, as relacoes passam a ser de complementaridade nao linear, uma vez que ha sempre uma ruptura brusca--enquanto angulo na linha poligonal--no movimento de uma narrativa a outra, embora tudo se passe no mesmo livro. Desde o sumario do romance, entao, entreve-se sua geometria, em que dois conjuntos de trechos narrativos, agrupados como segmentos de historias aparentemente lineares que se articulam segundo angulosos procedimentos formais, estruturam o transcorrer poligonal da narrativa.

Os capitulos nomeados, em que se apresentam as breves narrativas dos livros interrompidos, possuem grande coesao interna e poderiam mesmo ser publicadas como contos independentes, haja vista a nocao de totalidade que, nesse caso, esta presente em cada uma dessas partes fraturadas. Nesse momento, um paradoxo matematico se estabelece, uma vez que o romance todo tem a mesma dimensao de cada uma de suas partes na ficcao de Calvino (2005) (afinal, cada parte e, em si, um pequeno texto inteirico), como num livro-fractal. Cada breve narrativa interrompida lida pelo Leitor e pela Leitora paradoxalmente equivale, segundo essa perspectiva, a todo Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), uma vez que tambem esse texto poderia ser entendido como romance interrompido, justamente no ultimo capitulo, quando as personagens terminam de ler um livro tambem chamado 'Se um viajante numa noite de inverno'.

Como trapaca em que cada capitulo e o romance tem a mesma dimensao, o livros e estrutura como um complexo mise em abime, em que as partes imitam o todo e vice-versa. Assim, por prismatico jogo de espelhos entre ficcao e metaficcao, o romance paradoxalmente instaura um infinito narrativo dentro do objeto livro, fisicamente restrito ao espaco entre capa e contracapa. Reflexoes analogas sobre o infinito e o vazio, instancias espaciais para onde aponta o texto literario, sao recorrentes nas reflexoes das personagens de Se um viajante numa noite de inverno, por meio de metaforas de abismo, labirinto e falta:

Numa perturbacao que dura um instante, parece-me estar sentindo o mesmo que ela sente: que todo vazio se prolonga no vazio, todo desnivel, mesmo minimo, da em outro desnivel, todo precipicio desemboca no abismo infinito. [...] Talvez este meu relato seja uma ponte no vazio (Calvino, 2005, p. 87).

Ora como materia narrada nas reflexoes das personagens, ora como processo estrutural nas replicacoes de historietas dentro da historia maior, o infinito e uma linha de forca que perpassa todo o livro de Calvino. Em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), o autor optou por construir um romance de geometria imbricada, com contos encaixados, nao justapostos. Assim, mais uma vez reeditam-se os adiamentos de Sherazade quanto a um ponto final da narrativa, a qual poderia ser sempre ampliada com outra historieta a ser lida pelo Leitor e pela Leitora.

Procedimento narrativo semelhante ja havia sido empregado em As cidades invisiveis (Calvino, 2009), com Marco Polo assumindo a tarefa de Sherazade para agradar nao mais ao sultao, mas ao imperador mongol Kublai Khan. Narrando suas viagens para os confins do enorme imperio mongol, Marco Polo procede a uma geografia--ou geometria?--dos terrenos ficcionais sobre os quais se estenderia o poder do monarca.

Alias, e tambem do estudo e das medicoes do mundo que essas duas 'geodisciplinas' surgem, como discursos analogos sobre o espaco e as formas humanas de concebe-lo e ocupa-lo. Na interface entre ambas as areas, interrogando o espaco e o homem, relacao mediada sempre pela forma enquanto topologia, a urbe, em As cidades invisiveis (Calvino, 2009), se torna um simbolo matricial do texto, pois permite "[...] maiores possibilidades de exprimir a tensao entre a racionalidade geometrica e o emaranhado das existencias humanas" (Calvino, 2009, p. 85).

O livro se constroi por um intrincado encaixamento de narrativas, com um enredo poliedrico estruturado a partir das descricoes que Marco Polo faz de cada uma das cidades que visita; no entanto, cada vertice desse poliedro--as urbes dominadas pelos mongois e descritas pelo narrador reduplica o espaco narrativo do romance.

Ao entrar no territorio que tem Eutropia como capital, o viajante nao ve uma, mas muitas cidades, todas do mesmo tamanho e nao dessemelhantes entre si, espalhadas por um vasto e ondulado planalto. Eutropia nao e apenas uma dessas cidades mas todas juntas; somente uma e habitada, as outras sao desertas; e isso se da por turnos. Explico de que maneira. No dia em que os habitantes de Eutropia se sentem acometidos pelo tedio e ninguem mais suporta o proprio trabalho, os parentes, a casa e a rua, os debitos, as pessoas que devem cumprimentar ou que os cumprimentam, nesse momento todos os cidadaos decidem deslocar-se para a cidade vizinha que esta ali a espera, vazia e como se fosse nova, onde cada um escolhera um outro trabalho, uma outra mulher, vera outras paisagens ao abrir as janelas, passara as noites com outros passatempos amizades improperios. [...] Deste modo a cidade repete uma vida identica deslocando-se para cima e para baixo em seu tabuleiro vazio. Os habitantes voltam a recitar as mesmas cenas com atores diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes combinacoes de palavras; escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais (Calvino, 2009, p. 62-63).

Em Eutropia, uma das diversas cidades visitadas e descritas por Marco Polo, esse jogo de narrativas encaixadas se torna ainda mais explicito: como urbe composta por urbes ainda menores, Eutropia e um espaco onde a parte e o todo tem o mesmo tamanho, desafiando as impressoes mais imediatas acerca das dimensoes. Assim, 'deslocando-se para cima e para baixo em seu tabuleiro vazio', os habitantes dessa cidade movimentam-se como pecas em um jogo de bonecas russas ou cubos encaixados, onde toda diferenca nada mais e do que manipulacao e prestidigitacao com algumas constantes.

Essa vida, entao, que se repete identicamente em cada subcidade de Eutropia, com as mesmas relacoes entre os individuos e o espaco urbano, alterando-se apenas de que individuos e de que espaco se trata, assemelha-se sobremaneira as narrativas interrompidas de Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005). Nessas historias inacabadas que o Leitor e a Leitora leem, mudam-se radicalmente os espacos--uma praia, uma ponte, uma cidade em guerra, um pais misterioso e distante--, a atmosfera do texto e os nomes das personagens. No entanto, assim como em Eutropia, essas alteracoes sao apenas aparentes, pois as relacoes entre as personagens e a sintaxe dos enredos se mantem identicas: mudam-se os elementos combinados, mas nao os procedimentos combinatorios.

Em termos geometricos, pode-se pensar a arquitetura de Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) como a de um espaco topologico metafora usada tambem por Kristeva (1974) para descrever a espacializacao da linguagem poetica e por Lacan (1978-1979) para descrever o inconsciente como linguagem. Como ramo da geometria, a topologia designa nao distancias, mas posicoes relativas; estas podem ser aproximadas ou afastadas, como quem esticasse uma estrutura de borracha, mas as relacoes morfologicas permanecem inalteradas. Sao, pois, espacos topologicos os incipits que compoem Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), uma vez que, a despeito de mudancas de conteudo, preserva-se nesses fragmentos uma mesma narrativa elementar: uma personagem masculina, que, em busca de uma verdade, uma informacao, um segredo, depara-se com uma mulher misteriosa e por ela se apaixona, embora nunca o romance se concretize, dada a interrupcao dos textos no seu respectivo climax.

[...]--O que quer saber?--Ele fica nervoso.--O senhor se interessa por literatura cimeria ou ... Parece que completaria: 'por Ludmilla?'. Entretanto, nao termina a frase. Voce, se fosse sincero, responderia que nao consegue distinguir do interesse pelo romance cimerio o interesse pela Leitora do romance. Depois, as reacoes do professor ao nome de Ludmilla, somando-se as confidencias de Irnerio, lancam lampejos misteriosos, criam ao redor da Leitora uma curiosidade apreensiva, nao diferente da que liga voce a Zwida Ozkart, no romance cuja sequencia voce procura, como antes essa curiosidade o ligava a senhora Marne no romance que voce comecara a ler um dia e que pos temporariamente de lado, e agora eis que voce se lanca a busca de todas essas sombras, as da imaginacao e a da vida (Calvino, 2005, p. 56-57).

Identificando na amada Leitora Ludmilla as personagens femininas de todos os romances interrompidos, o Leitor realiza uma verdadeira declaracao de amor. Apaixonando-se a cada texto lido por uma nova mulher, todas elas sao Ludmilla, pois indicam partes de seu temperamento variado e, mais uma vez, aqui a parte se confunde com o todo.

Como tal semelhanca se verifica tambem na relacao entre as demais personagens e os elementos narrativos de cada incipit, repetidos apenas com variacoes de conteudo, mas nao de sintaxe narrativa, o modelo actancial de Greimas e Courtes (1979) pode aqui ser evocado. Mais como actantes do que como personagens, uma vez que sua funcao narrativa constante em todas as historietas interrompidas se sobrepoe as caracteristicas psicologicas ou fisicas individuais, esse jogo de semelhancas e tao baseado em simetrias e truques geometricos que nao se pode perder de vista que o proprio Greimas e Courtes (1979) cunhou o termo quadrado semiotico para dar conta de fenomenos dessa sorte.

Na condicao de variacoes em torno dos mesmos actantes, recombinando os vertices do quadrado semiotico, as narrativas interrompidas apresentam ainda outra conexao, para alem da longa frase que seus titulos engendram: segundo Calvino (1984), tratando-se de um romance de paixao pela leitura, esses contos encaixados no livro representariam o inicio de obras que o ficcionista italiano gostaria de ter lido. Na arquitetura da obra, o narrador atribui a personagem da Leitora essas predilecoes literarias, as quais sao atendidas a cada novo incipit com que esta e o Leitor se defrontam:

--Gosto de saber que existem livros que ainda poderei ler--ela diz, certa de que a forca de seu desejo devem corresponder objetos existentes, concretos, mesmo que ainda desconhecidos. Como acompanhar o passo dessa mulher, que sempre le outro livro alem daquele que tem diante dos olhos, um livro que ainda nao existe, mas que dado que ela o deseja, nao pode deixar de existir? (Calvino, 2005, p. 78).

E o desejo da Leitora que conduz a voz narrativa, fazendo da leitura um objeto de seducao no triangulo amoroso que se estabelece entre as personagens do Autor atormentado, do Leitor e da Leitora ao longo do romance. Desse desejo, nasce o livro como infinito potencial, abrindo, a partir da superficie da pagina, espacos outros, 'alem daquele que se tem diante dos olhos'

Desse modo, a cada afirmacao do desejo da Leitora, a personagem do Autor desvia a narrativa com um solavanco para agradar a amada, qual aresta na linha poligonal em que se estrutura o romance. Assim, a propria estrutura classica do romance dividido em capitulos, oriunda das contingencias de circulacao e recepcao dos folhetins oitocentistas, ganha em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) nova dimensao.

Mais alem das cesuras tipicas para garantir pausas a leitura e suspense para a proxima edicao do folhetim, o "[...] velho topos romanesco [...]" (Calvino, 2005, p. 267) da quebra dos capitulos aqui e um efeito geometrico e fractal, em que um ponto de cada capitulo da narrativa central--a afirmativa do desejo da Leitora quanto ao livro de seus sonhos replica por antecipacao a estrutura de todo o proximo capitulo: eis-nos mais uma vez diante do paradoxo das partes que tem o mesmo tamanho que o todo.

A intrincada arquitetura dos capitulos em relacao aos desejos da amada corresponde um diagrama exercicio escritural de geometria?--feito por Calvino.

Segundo esse modelo proposto pelo autor, cada selecao de um romance cujo incipit seria inserido em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) implica uma bifurcacao: uma das opcoes culminaria em uma dessas narrativas encaixadas (destacadas em retangulos no diagrama do autor); a outra, em uma nova bifurcacao. Esse procedimento se repete dez vezes, uma para cada romance interrompido, como se pode notar na Figura 2. Por fim, o ramo orfao da ultima bifurcacao poderia ser ligado ao inicio do diagrama, segundo um modelo circular, haja vista que o livro lido por Leitor e Leitora, na ultima pagina do romance, intitula-se tambem 'Se um viajante numa noite de inverno'.

No entanto, como sublinhado no posfacio do romance, tal esquema matematico do texto nao deve ser lido como programacao estavel e controle sistematico dos efeitos de sentido. Em vez disso, ja que se trata da representacao de "[...] um mundo precario, a ponto de ruir, despedacar-se [...]" (Calvino, 2005, p .267), a imagem geometrica e aqui uma metafora do romance como projeto estetico, sujeito, porem, a todo caos, desordem e imprevisibilidade da arte, ainda que dentro das contingencias da forma e do espaco.

Consideracoes finais

O espaco, como condicao de significacao, esta presente na compreensao fenomenologica da linguagem e do pensamento, pois toda lingua se estrutura por metaforas espaciais: um conceito 'dentro' do outro, uma ideia 'fora' de contexto, um argumento 'em face' de uma tese, ou uma posicao hierarquica 'acima' das demais. Pensa-se a partir da nocao de espaco, utilizando-se dele como metafora primeira para ordenacao das ideias e das palavras, sendo sua sintaxe transposta para a lingua quando se consideram as relacoes posicionais que os termos assumem entre si quando lancados na fala.

O exterior e o interior formam uma dialetica de dissecacao, e a geometria evidente dessa dialetica nos cega desde o momento em que a fizermos aparecer nos dominios metaforicos. Ela tem a nitidez decisiva da dialetica do sim e do nao, que tudo decide. Fazemos de tal dialetica, sem tomar maiores cuidados, uma base para as imagens que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo. Os logicos tracam circulos que se produzem ou se excluem e logo todas as suas regras ficam claras. O filosofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o nao-ser. A metafisica mais profunda enraiza-se numa geometria implicita, numa geometria que--queiramos ou nao--espacializa o pensamento; se o metafisico nao desenhasse, sera que ele pensaria? O aberto e o fechado sao, para ele, pensamentos. O aberto e o fechado sao metaforas que ele liga a tudo, inclusive aos seus sistemas (Bachelard, 1988, p. 153).

Condicao de percepcao e significacao, o espaco, como categoria nao so linguistica, mas tambem literaria, e questionado em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005) por engenhosas trapacas com as convencoes narrativas e, por conseguinte, com os limites da representacao. Segundo tal perspectiva, o presente artigo realizou uma analise das espacialidades do romance, mas, em lugar da tradicional discussao do espaco apenas como paisagem literaria, a leitura aqui ensaiada lancou mao de metaforas geometricas para entender o romance como transgressao dimensional nos planos do enunciado e da enunciacao.

Em Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005), a materialidade textual e revisitada como espaco, e nao somente como tempo, em que os pontos--da tinta nas retas da pagina, dos significados na linearidade do significante, das personagens nas linhas do enredo--se revelam instancias cujos sentidos se constroem a partir de suas posicoes relativas, tal qual vertices de qualquer figura topologica. Feito espaco, o verbo constroi todos os possiveis percursos para o leitor que viaja numa noite invernal pelo livro, seguindo as trilhas poligonais do enredo a luz do ponto zero da enunciacao da penado narrador--ou do compasso do geometra?

Nesse processo, ganham destaque as contraintes, ou restricoes formais autoimpostas por Calvino, as quais determinam as topicas que podem ser construidas em seu texto, os espacos que podem ser habitados pelas personagens e a trajetoria do leitor que viaja livro adentro na noite de inverno. No ambito dos experimentalismos formais do grupo Oulipo, Calvino cria, em Se um viajante numa noite de inverno (2005), sua propria maneira de fazer matematica. Para alem das geometrias euclidiana e nao euclidiana, eis-nos diante de um novo ramo da area: a geometria calviniana.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v40i2.36613

Referencias

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Calvino, I. (2006). O castelo dos destinos cruzados. Sao Paulo, SP: Companhia das Letras.

Calvino, I. (2009). As cidades invisiveis. Sao Paulo, SP: Companhia das Letras.

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Hobbes, T. (1988). Leviata ou materia, forma e poder de um estado eclesiastico e civil. Sao Paulo, SP: Nova Cultural.

Ingarden, R. (1965). A obra literaria. Lisboa, PT: Calouste Gulbenkian.

Kristeva, J. (1974). Introducao a semanalise. Sao Paulo, SP: Perspectiva.

Lacan, J. (1978-1979). Le Seminaire--Livre XXVI--La topologie et le temps. Recuperado de http://ecolelacanienne.net/en/bibliolacan/seminaires-version-j-l- et-non-j-l/.

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Mcloughlin, M. (1998). italo Calvino. Edinburgh, GB: Edinburgh University Press.

Received on April 8, 2017.

Accepted on March 16, 2018 .

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Vinicius Carvalho Pereira

Instituto de Linguagens, Departamento de Letras, Universidade Federal de Mato Grosso, Av. Fernando Correa da Costa, 2367, 78060-900, Cuiaba, Mato Grosso, Brasil. E-mail: viniciuscarpe@gmail.com

(1) O Oulipo, ou Ouvroir de Litterature Potentielle, foi criado na decada de 60 do seculo XX por matematicos e literatos, entre os quais se podem destacar Raymond Queneau, Georges Perec, Marcel Benabou e Jacques Roubaud. Os oulipianos defendiam que a literatura poderia ser produzida, de forma libertaria, a partir de restricoes formais autoimpostas--as contraintes -, as quais funcionariam como regras de um jogo, do qual caberia ao escritor participar.

Caption: Figura 1. Linha reta e linha poligonal aberta (Elaborada pelo autor).

Caption: Figura 2. Diagrama arboreo (adaptado) do projeto de Se um viajante numa noite de inverno (Calvino, 2005, p. 275).
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