Subjectification strategies in contemporary fiction by women: exile, migration, wanderings and other types of displacement/Estrategias de subjetificacao na ficcao contemporanea de mulheres: exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.
Zolin, Lucia Osana
Subjectification strategies in contemporary fiction by women: exile, migration, wanderings and other types of displacement/Estrategias de subjetificacao na ficcao contemporanea de mulheres: exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.
Introducao
A pesquisa 'Literatura brasileira contemporanea de autoria
feminina: escolhas inclusivas?' que vimos coordenando na
Universidade Estadual de Maringa nos ultimos tres anos revela que cerca
de 25% dos romances publicados por mulheres pelas editoras Rocco, Record
e Companhia das Letras, entre os anos de 2000 e 2015 tematizam questoes
e trajetorias de personagens relacionadas a exilio, migracao, errancia e
outros deslocamentos.
Isso, certamente, nao nos causa estranhamento, ja que vivenciamos
um momento marcado pela valorizacao da mobilidade e do encurtamento de
distancias, seja em termos virtuais, seja em decorrencia das facilidades
contemporaneas de que dispoe o individuo que deseja transpor fronteiras,
adentrar outros territorios, conhecer/confrontar culturas
'outras'; ou, por outro lado, anseia encontrar-se consigo
proprio, (re)construir identidades e/ou questionar herancas identitarias
essencializadas, genealogias nacionais ou familiares. Em igual medida, o
mundo contemporaneo presencia, atonito, a crise de refugiados mulcumanos
que chegam a Europa, atingidos pelo terrorismo, por guerras civis e pela
miseria, entre outras violencias, em busca de abrigo e de melhores
condicoes de vida. Todos em alguma medida, e guardadas as devidas
proporcoes, obviamente, experimentam certa 'condicao exilica',
a sensacao de estar fora de lugar, pisando com receio, muitas vezes, com
assombro, o territorio do 'Outro', condicao essa que as
terminologias utilizadas para lhes especificar as experiencias nao lhes
abarcam as especificidades.
Para alem de classificacoes/limitacoes sociopoliticas como a de
sujeito exilado, (i/e)migrante, expatriado ou, simplesmente, deslocado
que levam em conta, sobretudo, as polaridades de lugares de partida e de
chegada ou condicoes juridicas, o pesquisador frances Alexis Nouss
(2016) toma a figura do/a exilado/a e/ou do/a migrante em sentido
ontologico ('ser exilado'), historico e politico do termo,
declinado em diferentes circunstancias temporais e espaciais. Nessa
ordem de ideias, cria o neologismo 'exiliencia':
Nucleo existencial comum a todas as experiencias de sujeitos
migrantes, quaisquer que sejam as epocas, as culturas e as
circunstancias que as acolhem ou que as provocam, a exiliencia
declina-se em condicao e consciencia, podendo inclusive acontecer que as
duas, em graus distintos, nao coincidam: pode alguem sentir-se em exilio
sem ser concretamente um exilado (consciencia sem condicao), como pode
alguem ser um exilado em concreto, sem contudo sentir-se em exilio
(condicao sem consciencia) (Nouss, 2016, p. 53).
De acordo com o teorico, o sintagma bipolarizado 'condicao e
consciencia' traduz as ligacoes entre interioridade e
exterioridade, sensacoes e sentimentos, o quadro real e o psiquico, os
dados empiricos e o modo como tais dados sao apreendidos. Sendo assim,
ha que se adentrar o territorio da etica para abordar a questao, ja que
se trata de pensar reacoes possiveis da consciencia face a condicao
exilica.
Desenvolvimento
Do ponto de vista da literatura brasileira de autoria feminina,
pensar a 'exiliencia' de mulheres das ultimas decadas do
seculo XX a esse inicio, ja bem adiantado, do XXI implica percorrer um
caminho que avanca paralelamente aos desdobramentos do feminismo e suas
conquistas rumo a superacao da famigerada 'condicao feminina',
condicao de oprimida, de subjugada, de silenciada, enfim.
Clarice Lispector, em A hora da estrela (1977), constroi uma
Macabea deslocada, marcada pelo 'nao ser' e pelo 'nao
te'; nao ter, sobretudo, um lugar alem das paginas do livro cuja
escritura esta sendo encenada. Migrante nordestina, ela experimenta a
exiliencia de que fala Nouss (2016) declinada apenas em condicao, ja que
nao tem consciencia do quanto e estrangeira na cidade que, nas palavras
do narrador, lhe e 'inconquistavel'. Embora leitor/a e
narrador percebam a condicao exilica que alicerca toda a trajetoria da
personagem, ela propria parece so se dar conta disso na sua 'hora
de estrela', momento fugaz em que experimenta uma especie de
epifania na qual fica sugerido, no seu campo de consciencia, o
descortino da sua exiliencia.
Na decada seguinte, A republica dos sonhos (1984), de Nelida Pinon
faz emergir importantes reflexoes acerca da condicao exilica e da
exiliencia de mulheres a partir da perspectiva da mulher, ecoando certo
movimento observado na ficcao brasileira dos anos 80 "[...] de
interrogar a inscricao do sujeito no conjunto do patrimonio cultural e
no devir transcultural da Nacao" (Tonus, 2012b, p. 87). Nesse
sentido, avultam os estudos do imigrante como figura literaria. Segundo
Leonardo Tonus (2012a, p. 63),
[...] o imigrante e sua descendencia passam a ocupar
um lugar central em autoficcoes (Salim Miguel, Nur
na escuridao, e As aves de Cassandra, de Per Johns) e
nos chamados romances familiares (Raduan Nassar,
Lavoura arcaica, Lya Luft, A asa esquerda do anjo,
Milton Hatoum, Relato de um certo oriente e Dois
irmaos, e Nelida Pinon, A republica dos sonhos). Do
mesmo modo, aos conflitos geracionais, associam-se
agora os conflitos decorrentes de uma pretensa
desterritorializacao que a presenca de vozes
descentradas, hibridas e bastardas, expurgadas de
suas escorias, vem corroborar.
De fato, o romance de Pinon explora, com maestria, a saga familiar
de Madruga no Brasil, para onde veio ainda menino 'fazer a
America', explorando-lhe os sonhos e, principalmente, as agonias
peculiares a sua condicao de imigrante. No entanto, para alem das
pelejas do patriarca pela plena cidadania, vislumbrada na perda jamais
consumada do rotulo de estrangeiro que, a despeito do sucesso
empresarial, o marginalizaria ate o fim, a trajetoria de Eulalia remete
a condicao exilica em uma dimensao que transcende a experiencia
transcultural: ela nao so esta em um pais que nao e o seu, mas tambem
presa a um destino de mulher que alem de nao lhe conferir plenitude
existencial, ela intui nao ser o unico possivel. Tanto o pai, quanto o
marido lhe haviam explicado "[...] a vida pela metade [...]"
(Pinon, 1984, p. 14). Dito de outro modo, permitiram-lhe saber apenas o
que rezava a cartilha do patriarcado: Dom Miguel, 'excessivamente
zeloso com a filha', 'a mantinha quase num carcere
encantado', conservando-a "[...] dentro da casa, para que se
esquecesse da paisagem de Sobreira, por meio de historias e frutas
sumarentas colhidas da horta [...]" (Pinon, 1984, p. 441); Madruga,
por seu turno, "[...] manteve a vida, rigorosamente secreta, fora
das grades da casa [...]", nao "[...] permitiria que Eulalia
sofresse [...]", bastava-lhe "[...] a saude fragil, e ainda a
inclinacao para o devaneio [...]" (Pinon, 1984, p. 126). A
'exiliencia' da personagem, portanto, tomada no seu sentido
mais amplo, ou seja, na cisao com a terra natal, com o mundo vislumbrado
para alem dos muros da casa, e, sobretudo, com certa parte de si,
espoliada antes que ela pudesse apreende-la, parece declinada em
condicao e em consciencia. Em alguma medida, a personagem sabese
apartada do que foi e viveu na terra natal, mas tambem da plenitude
existencial que poderia experimentar, nao fossem as amarras de genero.
Tambem Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, poe
em cena a protagonista Lena experimentando a 'exiliencia',
conceituada por Nouss (2016), declinada em condicao e em consciencia: de
um lado, ela se ve forcada a deixar o pais, fugindo dos horrores da
Ditadura Militar, e a vivenciar os terrores e os temores do exilio e da
clandestinidade; de outro, vivencia a subjetivacao da experiencia
exilica, mesmo estando ja de volta ao Brasil, quando, na casa da mae,
tenta se convalescer, equacionando os traumas da ditadura que,
propagando-se em diversas direcoes e provocando toda sorte de cisoes, a
impediam de exercer o jornalismo e de tocar a vida adiante.
Ao que nos parece, esses romances, a exemplo de outros publicados
por mulheres na mesma decada de 1980, como tambem e o caso de A asa
esquerda do anjo (1981) de Lya Luft, retratam a exiliencia de mulheres,
declinada, nos termos referidos por Nouss (2016), em condicao e,
sobretudo, em consciencia, por meio de um discurso alicercado na critica
da dominacao masculina e nos seus ecos disseminados em praticas de
poder. Tais protagonistas, ao colocarem em perspectiva a condicao
exilica a que sao submetidas, para alem dos desdobramentos da propria
desterritorializacao, na esfera das relacoes hierarquizadas de genero,
fomentam o debate feminista e a revisao de valores tao cara ao contexto
em que emergem.
Na literatura brasileira recente escrita por mulheres, as chamadas
narrativas 'de' ou 'sobre' a imigracao, tao comuns
nos anos 80, como salienta Tonus (2012a), se propagam de maneira
bastante intensa, embora revestidas com nova roupagem, segundo as
influencias do contexto sociocultural em que emergem. A pesquisa
'Literatura brasileira contemporanea de autoria feminina: escolhas
inclusivas?', a que nos referimos no inicio dessas reflexoes,
analisou, a partir de uma perspectiva epistemologica feminista, 88
romances publicados por mulheres na ultima decada e meia, com atencao
especial no modo de construcao de cada uma das 369 personagens
consideradas fundamentais para o desenrolar dos acontecimentos. O
objetivo central foi perscrutar se as escolhas dessas escritoras quando
do desempenho da tarefa de representar o outro sao inclusivas, no
sentido de trazerem para a cena literaria praticas e discursos vedados a
seguimentos sociais marginalizados e/ou de minorias; saliente-se ai
nosso olhar interessado em reconhecer (ou nao) apadroes de
comportamento, tradicionalmente, interditados a mulher, como e o caso da
livre transposicao de fronteiras. Nesse recorte, 102 personagens
(27,6%), integrantes de 21 romances (1) (25%), vivenciam intensas
experiencias de deslocamentos. A pulsao de errancia, aqui tomada nos
termos de Michel Maffesoli (2001), e representada, com maior
recorrencia, como parte de um esforco de (re)construcao identitaria de
suas protagonistas, flagradas em momentos de crise em que problematizam
os valores estabelecidos, de ordem genealogica e/ou nacional, recebidos
como especies de herancas compulsorias que, embora de uma maneira ou de
outra lhes pesassem como fardos as costas, nunca puderam renegar. Esse
esforco, nao raro, acaba por redundar no repudio a tais herancas, as
quais sao substituidas por afiliacoes a comunidades afetivas e a
territorios descentrados. De outro lado, a referida pulsao de errancia
funciona como estrategia de afirmacao de si como sujeitos de suas
historias, de modo que o deslocar-se nos parece sinalizar autonomia,
agencia, bem como capacidade de repudiar os confinamentos compulsorios
de certos sistemas politicos, ideologicos e/ou familiares que aprisionam
em nome de seus valores e de seus afetos. Seja como for, a pulsao de
errancia, como sugere o sociologo frances acima citado, tao
recorrentemente representada nessas narrativas, parece implicar uma
especie insurgencia contra o compromisso de residencia que prevaleceu
durante toda a modernidade, em que as massas foram domesticadas,
assentadas no trabalho e fixadas no seu devido lugar, de onde poderiam
ser mais facilmente dominadas.
O ir e vir que permeia a trajetoria das/os protagonistas dessas
narrativas, nesse sentido, e impulsionado por uma multiplicidade de
situacoes derivadas, grosso modo, do desejo ou da necessidade de
(re)construcao identitaria e de processos de subjetivacao que, como tal,
pressupoe agencia. No caso de Uma ponte para Terebin (2006), de Leticia
Wierzchowski, romance inspirado na trajetoria do avo da escritora, Jan
Wierzchowski (2006), as viagens do protagonista entre a Polonia e o
Brasil tem motivacao politica. Trata-se da historia de um imigrante
polones que veio para o Brasil anos antes de a Polonia ser invadida pela
Alemanha, durante a 2 Guerra mundial, no entanto, acaba por voltar para
la, como voluntario da guerra, por nao suportar acompanhar so pelos
jornais noticias permeadas de palavras como 'centenas',
'milhares', 'bombardeios', 'refugiados',
'avanco', 'invasao', sabendo estarem la, em meio a
tudo isso, rostos e nomes de familiares e amigos que lhe eram tao caros.
Enquanto isso, a esposa Anna fica sozinha no Brasil, vivenciando uma
dolorosa e corajosa espera, que inclui cuidar de um filho doente e saber
que, agora, entre os destrocos da guerra, perambula um rosto seu. Embora
seja ele o exilado, num certo sentido, ela tambem experimenta uma
especie de condicao exilica, peculiar por ser vivenciada na terra natal,
fazendo saltar aos olhos do/a leitor/a que a sua imobilidade nao era,
certamente, um desejo seu, mas uma imposicao daquele contexto de guerras
e de condicoes pouco favoraveis as mulheres.
Ja em Judite no pais do futuro (2008), de Adriana Armony, a
protagonista, depois de uma infancia de privacoes, vem da Palestina para
o Brasil ainda adolescente, fugida da guerra, da fome, da pobreza, onde
formou familia. No presente da narrativa, ja idosa, rememora sua
trajetoria permeada das agruras da condicao exilica, declinada em
condicao e em consciencia. Mas e em Um defeito de cor (2006), de Ana
Maria Goncalves, que se ve representada no romance contemporaneo de
autoria feminina a sumula da exiliencia feminina, declinada em condicao
e em consciencia, conforme pondera Nouss (2016). A condicao exilica de
Kehinde se desdobra, no contexto da diaspora africana, motivada por
interesses economicos e de poder, em um doloroso processo que tem
inicio, ainda na infancia, com a sua captura e trafico para o Brasil,
junto a outros/as negros/as que seriam igualmente escravizados/as. A
problematizacao da exiliencia da protagonista esta, nesse sentido,
associada a perda da identidade africana, materializada na cisao com a
terra natal, com a familia, com suas crencas, com sua lingua e ate com
seu proprio nome, conforme se pode constatar no fragmento que segue:
Nao sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar
viva ou se medo. Mas o pior de todas as sensacoes mesmo nao sabendo
direito o que significava, era a de ser um navio perdido no mar, e nao a
de estar dentro de um. Nao estava mais na minha terra, nao tinha mais a
minha familia, estava indo para um lugar que nao conhecia, sem saber se
ainda era para presente ou, ja que nao tinha mais a Taiwo, para virar
carneiro de branco (Goncalves, 2011, p. 61).
A despeito de toda ordem de imobilidades que sua condicao de mulher
negra e escrava lhe impunha, sua longa trajetoria e permeada de idas e
vindas, por meio das quais ela vai (re)conquistando e (re)construindo a
identidade e a cidadania espoliadas pela escravidao e pelos
preconceitos, literalmente, sentidos na pele. Ha que se salientar, nesse
sentido, que tanto a viagem de volta a Africa, apos conseguir comprar
sua liberdade e a do primeiro filho, quanto a de retorno ao Brasil, ja
idosa, em uma ultima e definitiva tentativa de reencontrar o outro
filho, vendido pelo pai branco para pagar dividas de jogo, remetem a
agencia que marca profundamente a trajetoria da personagem. Por meio da
primeira, ela (re)conquista sua cidadania via independencia financeira e
retomada das relacoes com seu povo e suas origens; com a segunda, ela
reforca sua condicao de mulher-sujeito, desde o principio demonstrada em
meio a suas escolhas e dores.
Ao retratar experiencias exilicas de mulheres em contextos tao
disforicos e/ou representa-las em situacoes de deslocamentos diversos,
esses romances fazem avultar, cada um a seu modo, figuras femininas
empenhadas em processos de reterritorializacao e na (re)construcao de
suas identidades, num longo, lento e arduo processo de subjetivacao que
pressupoe agencia e empoderamento.
Ja em romances como Voltar a Palermo (2002), de Luzila Goncalves
Ferreira, e Mar azul (2012), de Paloma Vidal, as experiencias exilicas,
relacionadas com a Ditadura Militar na Argentina, sejam elas vivenciadas
pela propria narradora, caso do romance de Vidal, seja por personagens
secundarias como ocorre no romance de Goncalves Ferreira, sao
propagadas, no presente das narrativas, na trajetoria de ambas as
narradoras-protagonistas, afetadas cada uma a seu modo por seus
desdobramentos. No primeiro caso, tendo morado por dois anos na
Argentina, ocasiao em que experimenta uma intensa historia de amor com
Nino, um professor de bandoneon (2), militante de esquerda levado, anos
depois, pelos militares e mantido prisioneiro politico por mais de dez
anos, Maria, uma professora universitaria brasileira, ao encontrar,
vinte anos mais tarde um bilhete dele nas paginas de um livro, decide
voltar a Buenos Aires na expectativa da retomada daquela historia que,
no entanto, nao se realizaria. Nao so porque, apos a sua volta para o
Brasil, Nino se reintegrara a vida de casado, antes suspensa, face a
insanidade mental da esposa, a qual ele se empenha veementemente em
reverter; mas tambem porque ele volta do 'cativeiro'
completamente alheio a tudo, imerso em um estado de coisas em que ela,
certamente, nao caberia. O percurso da narradora-protagonista, todavia,
nessa viagem que, a principio, se fundava em um possivel reencontro de
um amor do passado, acaba por se converter em uma grande reflexao acerca
de toda sorte de condicoes exilicas que emanam daquele contexto de
repressao que se seguiram aos anos em que viveu na Argentina. Ao mesmo
tempo em que rememora o passado, ela o coteja com os relatos da ditadura
que se lhe vao apresentando. Ai avultavam os conflitos familiares
gerados por posicionamentos diferentes frente ao Regime, as sombras de
desconfianca que colocava todos sob suspeita, os relatos de atos
publicos que acabavam em morte, o sumico de lideres religiosos e
intelectuais, criticos do sistema, com quem ela travara contato no
passado, o desaparecimento de jovens idealistas, e, em meio a tudo, o
empoderamento de mulheres na defesa de filhos e maridos perseguidos.
Trata-se, enfim, de uma trajetoria de uma mulher que, preparada para
resgatar uma historia de amor do passado, se ve no amago dos destrocos
de um regime politico totalitarista, responsavel por aniquilamentos de
toda ordem, desenraizamentos forcados, projetos de vida
desestabilizados, historias de amor interrompidas, familias
desestruturadas ou esfaceladas... tudo somado, o resultado aponta para a
"[...] metamorfose profunda [...]" (Ferreira, 2002, p. 72)
que, segundo a personagem, se opera nela: "Eu voltava sozinha. Mas
voltava mais rica, com a alma e o coracao carregado de imagens
fortes" (Ferreira, 2002, p. 215). Talvez, mais sensivel aos grandes
dilemas de ordem politica, eivados de perdas irreparaveis, de batalhas
de jovens idealistas que se alegravam em "[...] lutar por algo que
os ultrapassava" (Ferreira, 2002, p. 46). Ela que se "[...]
julgava inteligente e esclarecida, progressista e lucida [...]"
(Ferreira, 2002, p. 71), quando o assunto eram os desmandos de
estruturas politicas de extremadireita, ate entao, apenas se comovia ou
"[...] votava em favor dos que apregoavam mais justica, mais
igualdade, mais democracia" (Ferreira, 2002, p.71).
Em Mar azul (Vidal, 2012), a viagem se da em sentido contrario:
embora nao haja referencias explicitas aos locais em que a historia
transcorre, fica sugerido que a cidade natal de onde provem a
narradora-protagonista e Buenos Aires, sendo o Rio de Janeiro a cidade
estrangeira na qual ela se encontra no presente da narrativa, ja na
maturidade rumo a velhice, e que lhe serve de cenario para suas
rememoracoes de cenas e de acontecimentos do passado. Como em Algum
lugar (Vidal, 2009), o primeiro romance da escritora, tambem aqui sao
recorrentes imagens de imigrantes, exilados e viajantes, em movimentos
que fazem emergir as relacoes estabelecidas com os lugares de destino,
com enfase no desconforto suscitado pelos 'desencontros' entre
a lingua materna e aquela falada nesses novos espacos. E nesse contexto
que, entre o desempenho de atividades domesticas cotidianas, as visitas
a medicos de especialidades diversas e os passeios nos arredores que
incluem pequenas compras e a natacao, essencial a saude, vai, aos
poucos, fruindo a leitura dos diarios do pai e, ao mesmo tempo,
escrevendo suas proprias reminiscencias no verso das suas paginas.
Trata-se de uma rotina que, se a principio nao gera expectativas, tao
corriqueira parece, vai aos poucos descortinando em meio a solidao
exilica peculiar aos expatriados, a rememoracoes, insinuacoes e
sugestoes, uma especie de projeto seu de inquirir o passado a procura de
pistas da sua presenca na trajetoria do pai, bem como da presenca dele
na sua. Ambas afetadas de forma incontornavel pela Ditadura Militar
Argentina; no caso da dela, duplamente afetada: por meio da perda da sua
melhor amiga, adolescente desaparecida, vitima dos desmandos e das
atrocidades da ditadura; assim como pela constante ausencia do pai,
sempre de partida, em funcao de seus envolvimentos com aparelhos de
esquerda, ate exilar-se definitivamente no Brasil. Do ponto de vista
dessas nossas reflexoes, importa salientar que, mais uma vez, o
deslocamento espacial da protagonista para o Rio de Janeiro parece
relacionado ao processo de subjetificacao pelo qual ela passa. Trata-se,
a nosso ver, de parte de uma estrategia sua de enfrentamento do passado,
em busca de respostas para suas inquietacoes identitarias. E se, a
principio, ela resiste, numa tentativa de autoconvencer-se de que deseja
esquece-lo, vai avancando por entre lembrancas e escritos, insinuando
ao/a leitor/a, por meio do longo dialogo com a amiga da adolescencia que
abre a narrativa, ter conseguido seu intento - contar pra todo mundo os
desdobramentos das experiencias forjadas a ferro e a fogo pelas maos da
Ditadura Argentina.
Ja os romances A chave de casa (2010), de Tatiana Salem Levy, e
Rakushisha (2007), de Adriana Lisboa, tem suas protagonistas inseridas
em contextos de viagem, vivenciados no mundo contemporaneo e, portanto,
regidos por parametros feministas, fazendo emergir representacoes de
mulheres cujas trajetorias, se nao remetem a exiliencia, conforme a
conceitua Nouss (2016), por nao se classificarem, propriamente, como
migrantes, sao, em grande medida, marcadas e afetadas pela
desterritorializacao. Sao personagens flagradas em situacoes de
deslocamento que, ao experimentarem a sensacao de dispersao e de
vulnerabilidade das metropoles, cujos rostos, lingua, cultura e valores
sao tao diferentes dos seus, acabam imersas em questionamentos acerca de
si, de seus lugares e papeis em um mundo, tragica e finalmente,
percebido como dessemelhante, plural e instavel. Deslocam-se no espaco
e, em meio a sensacoes que as colocam em uma especie de condicao
exilica, ainda que sabidamente provisoria, operam viagens interiores,
circulam por "[...] memorias individuais e coletivas, 'espacos
de linguagem', para onde convergem a infancia, a busca das origens,
e do espaco identitario" (Cury, 2012, p. 20-21).
Ambas as personagens empreendem descobertas acerca de si e do
outro. Celina, a protagonista de Rakushisha (ao lado de Haruki) consegue
sintetizar o enfrentamento da morte da filha, especie de no em sua
trajetoria que ha anos a mantinha imersa em um mundo de sombras,
fracassadas que eram as tentativas de esquecimento. A solidao que
experimenta em Kyoto, enquanto se da conta de "[...] que nao
pertence, que nao entende, que nao fala [...]" (Lisboa, 2007, p.
134), deflagra, em meio as cenas corriqueiras do cotidiano, fragmentos
de memoria num movimento continuo e natural que, ao final, acaba por
possibilitar a personagem a reorganizacao do trauma, num movimento que
inclui o perdao do outro e a reconstrucao de si: "[...] estive
reaprendendo a andar [...] depois da tempestade, da era glacial, da
grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguem vai se
importar muito, afinal quem somos nos se nao menos do que anonimos
aqui" (Lisboa, 2007, p. 12).
De maneira similar, a narradora de A chave de casa (Levy, 2010),
tendo recebido do avo a chave da casa da familia na Turquia, bem como a
missao de ir ao seu encontro, parte, nao sem resistencia, em busca das
origens familiares, cujos ecos habitam a memoria de seus antepassados e
a sua, assombrando-lhes com ancestrais codigos morais e praticas
culturais, propagadas, sob o manto do afeto, quase sempre em forma de
opressao e de repressao. A viagem, nesse sentido, configura-se como
metafora de enfrentamento. A busca da casa ganha foros de busca pelas
tradicoes culturais e genealogicas da familia, visando, num certo
sentido, a superacao de influencias restritivas sobre sua trajetoria e,
de outro lado, o redimensionamento de suas identidades: apesar de nao se
reconhecer, inicialmente, como turca, passar a questionar a sua
brasilidade, ponderar a sua acidental natalidade portuguesa, ela acaba
por resgatar-se a si propria, compreendendo e assimilando seu hibridismo
identitario, revendo, enfim, suas herancas e as equacionando em novas
bases. No dizer de Brandao (2015, p. 150, grifo do autor),
O 'sair de casa' dessa protagonista implica nao apenas
sair de si mesma, mas ir de encontro - e confrontar aos
seus proprios fantasmas (da mae, do avo, do
amante, da escrita) para poder reconstruir-se
afetivamente, que e o que ocorre quando ela retorna a
Portugal, tendo ja descoberto que a 'chave de casa' era
ela mesma (ou estava dentro dela mesma).
Ao vivenciarem o choque oriundo do embate involuntario entre o
'silencio' entendido, nos termos de Orlandi (1997), como a
solidao do sujeito em face dos sentidos, e o 'estranhamento',
que Lopes (2002) define como decorrencia do "[...] jogo entre o
distante e o proximo, o igual e o diferente, o arcaico e o moderno
[...]" (Lopes, 2002, p. 176), ambas as personagens experienciam a
'exiliencia' declinada na consciencia do nao pertencimento.
Todavia, passam da dor que tal condicao pressupoe para a esperanca de
plenitude vislumbrada no conhecimento de si e das questoes que lhes
permeiam as trajetorias.
As tramas ou historias que constituem o romance Com que se pode
jogar (2011), de Luci Collin, tambem sao construidas de modo a enfatizar
os processos migratorios empreendidos pelas tres personagens centrais da
narrativa. Sao personagens que, ambientadas em espacos socioculturais
diferentes, vivenciando conflitos igualmente distintos, casualmente
costurados pela atuacao de uma quarta personagem que lhes marca
definitivamente as trajetorias, empreendem, cada uma a seu modo,
deslocamentos espaciais configurados como lutas pela sobrevivencia.
Trata-se de uma especie de jogo, como sugere o titulo do romance e as
'convocatorias' que antecedem cada uma das historias,
constituido de debates e batalhas no entorno de questoes de ordem
socioeconomica, identitaria e existencial. Ana Elisa Strobel de Medeiros
e a primeira das personagens-protagonistas cujas historias,
drasticamente afetadas pela atuacao de Rhuam, o elo entre elas,
constituem a totalidade do romance. A advogada de sucesso, no presente
da narrativa, autoexila-se em uma remota propriedade rural, junto aos
tres filhos pequenos, apos ver o marido, um promotor de justica
renomado, ser assassinado gratuitamente, ja que ela nao suspeita que se
trata de uma represalia a determinada conduta profissional dele. Sendo
assim, ela vislumbra na experiencia exilica uma possibilidade de se
reinventar face ao trauma da violencia sem sentido da cidade grande. Ja
Melanta faz o percurso inverso: apos ter sido sexualmente molestada pelo
irmao mais velho e assistir o mais jovem ser acusado e punido pelo
delito, deixa pai e mae idosos e doentes em um lugarejo distante e parte
para a cidade grande em busca de meios para sustenta-los. O romance se
completa com a trajetoria de Lena, adotada ainda bebe por um casal
abastado, estudou nas melhores escolas e usufruiu de tudo o que o
dinheiro pode comprar ate que, na adolescencia, descobre detalhes de seu
processo de adocao. A rebeldia vem, sobretudo, na direcao da mae que
teria escolhido "[...] um bebezinho bem subnutrido, o pior de
todos, o mais fudido [...] " (Collin, 2011, p. 99), pago por ele
com um "[...] cheque cheio de zeros [...] " (Collin, 2011, p.
99) e o levado consigo para ser cuidado por uma de suas empregadas. Nao
fora, como lhe haviam contado, adotada com quatro dias de vida, mas
comprada, em nome da filantropia, com dois meses, parecendo "[...]
um bicho: o corpo cheio de feridas, sarna e piolhos" (Collin, 2011,
p. 131). Dai a vida desregrada, o desprezo pelo dinheiro e pelo status
da familia, a gravidez, as drogas, a prisao e o aborto espontaneo, antes
da errancia pela Europa, da paixao por outro expatriado, de voltar ao
Brasil e de se vingar, com a ajuda dele, do promotor de justica, a quem
atribui a culpa pela perda do filho, decorrente das agruras sofridas
enquanto prisioneira, bem como da mae, roubandolhe bens. Todas as tres,
ao se perceberem em situacao-limite, reagem por meio de saidas
estrategicas do lugar de opressao. O deslocar-se dessas personagens,
impulsionado seja pelo 'desejo de outro lugar', nos termos de
Maffesoli (2001), seja pela crua impossibilidade de permanencia, implica
agencia, no sentido de conquistar para si um lugar em que possam pousar
os pes e se sentirem donas de seus destinos. Dai o lancar-se em mundos
desconhecidos em busca de sobrevivencia, perambular por centros e
periferias de grandes cidades a procura de respostas, ou, por fim,
isolar-se no campo num ato de preservacao de si e daqueles que ama.
Fazendo caminhos inversos aos das protagonistas de Rakushisha
(Lisboa, 2007) ede A chave de casa (Levy, 2010), que se lancam no mundo
despersonalizado das metropoles das multidoes, da fragmentacao e da
descontinuidade, tal como a Ana da narrativa de Collin (2011) acima
referida, as protagonistas de Paisagem com dromedario (2010), de Carola
Saavedra, e de Paraiso (2014), de Tatiana Salem Levy, tem suas
trajetorias marcadas por 'escapadas' para refugios isolados,
experimentando uma configuracao exilica delineada com tracos e contornos
mais esgarcados: no primeiro, Erika, uma artista plastica se exila
voluntariamente em uma remota ilha vulcanica, onde grava mensagens
destinadas a Alex, artista como ela, com quem viveu uma intensa historia
de amor a qual, mais tarde, se junta a amiga Karen, transformando-a em
um triangulo amoroso, ate que esta morre acometida por um cancer
agressivo. Numa especie de roteiro cinematografico, constituido das
mensagens gravadas e de informacoes que as permeiam, situando-as no
tempo, no espaco e no ambiente, a trajetoria da personagem vai se
desdobrando e fazendo emergir uma especie de crise identitaria,
configurada, de um lado, no desejo de compreender as razoes de ter
abandonado Karen no momento em que ela mais precisava dela:
A mae de Karen queria me pedir um favor. [...] Queria que eu
visitasse a filha, ou ao menos que ligasse pra ela. Para dizer o que, eu
perguntei. [...] Desculpa? Sinto muito? O que a gente diz para alguem
que vai morrer?(Saavedra, 2010, p. 40).
De outro, na inquietude instaurada pela duvida de nao saber ate que
ponto ela espelha em si a personalidade de Alex, como insinuam alguns,
face as obras assinadas em conjunto:
Antes de Karen costumavamos trabalhar juntos, agora me lembro.
Assinavamos Alex e Erika Z. Lembra? E nossos nomes formavam uma unica
marca, um unico som. Alex e Erika Z. Muitos diziam que voce me carregava
nas costas, voce o grande artista, e eu apenas aquela que te
acompanhava. Aquela que nunca seria tao talentosa, tao importante,
aquela que nunca teria nada novo a dizer. Sempre. Poucos viam, naquilo
nosso, algo que pudesse ser meu. Mas era, voce sabia. Muito ali era meu
(Saavedra, 2010, p. 66).
Embora as gravacoes sejam enderecadas a Alex, a
narradora-protagonista o faz sem pretensoes de que ele as ouca. Ao inves
disso, parece-nos tratar-se do simulacro de confissoes, comentarios ou
depoimentos que, na verdade, consistem em estrategias de
autoconhecimento, especie de exercicio retrospectivo, cuja finalidade e
por luz sobre as significacoes de suas escolhas, bem como do modo como
se relaciona com 'o outro' e, sobretudo, reconhecer a direcao
que deseja imprimir a sua historia. A sugestao que fica e que se, ao
final da experiencia, ela, num certo sentido, repete as mesmas praticas,
dando um simples 'adeus' ao homem com quem viveu, na ilha, uma
historia que avancava rumo ao casamento, e que depositava na relacao uma
esperanca de ser feliz, e porque se reconheceu assim, incapaz de se
doar, uma especie de monstro, nao no sentido de "[...] ser
contrario a natureza [...]" (Saavedra, 2010, p. 45), mas, conforme
aponta a etimologia da palavra, "[...] ser que vinha anunciar a
vontade dos deuses", especie de arauto sem poderes para "mudar
a vontade dos deuses" (Saavedra, 2010, p. 45-46). E, sendo assim,
nao esta em jogo na narrativa problematizar o comportamento da
personagem como mais nobre ou menos nobre, tampouco tecer juizos de
valor sobre etica ou afetos, parece antes lancar um olhar pessimista em
direcao ao sujeito contemporaneo, cuja existencia carece de sentido. Eis
a direcao em que avanca a sua trajetoria apos a experiencia exilica na
ilha. De igual maneira, da-se nesses termos a conquista da
subjetificacao desencadeada por tal experiencia.
Tambem em Paraiso (Levy, 2014), a escritora Ana, apos ter recebido
a noticia que poderia ter contraido Aids num relacionamento casual, se
refugia no sitio de uma amiga, enquanto espera, angustiada, o resultado
do exame, para escrever. Soma-se a isso o fato de estar atemorizada pela
maldicao lancada sobre as mulheres da familia, por uma sacerdotisa
escravizada por seus antepassados, no seculo XIX, antes de ser enterrada
viva, ao ser descoberta gravida de seu senhor pela esposa dele. A
solidao e a escrita, nesse sentido, funcionariam como coadjuvantes na
decisao de exorcizar esses fantasmas, talvez imaginarios, por meio do
enfrentamento que a pesquisa e a redacao do romance exigiriam.
Mais uma vez, o exilio voluntario, permeado de medo e solidao, e
retratado na ficcao contemporanea de mulheres como uma pratica que
remete a agencia. A despeito de problemas de linguagem que o romance
possa ter, face ao argumento historico, como assinalam alguns criticos;
ou relacionados ao fato de a escritora, sob certos olhares, retomar
lugares-comuns, como o do idilio amoroso entre artistas no recanto
paradisiaco, o tema da subjetivacao da mulher e orquestrado em meio as
memorias da personagem-escritora, afloradas em decorrencia de sua
condicao exilica, escolhida como estrategia para dirimir os fantasmas
que ha cinco geracoes assombram as mulheres de sua familia.
De modo especial, em um contexto que apesar, dos avancos
feministas, a violencia contra a mulher e registrada diariamente, em
numeros cada vez mais alarmantes, o fato de Ana ir alinhavando, por
entre as teias da trama, historias de mulheres vitimadas por agressoes
de ordem diversa, ao que nos parece, legitima o argumento da narrativa
relacionado a 'maldicao' e lhe confere nova roupagem. Isso
implica dizer que o tal sortilegio acaba por ser desmistificado de modo
que o que lhe poderia ser atribuido, como o estupro sofrido por sua mae,
o assedio sexual que o padrasto lhe impunha, a violencia simbolica
vislumbrada na predisposicao do parceiro ocasional em infecta-la com o
HIV, aos quais se somam, no presente da narrativa, os constantes
espancamentos sofridos pela caseira, seguidos do esfaqueamento, ao que
tudo indica, tambem, executado pelo ex-marido, tem sua verdadeira razao
de ser na violencia contra as mulheres, aprendida culturalmente e
passada de geracao a geracao ate ecoar no mundo contemporaneo. Nessa
ordem ideias, a exiliencia experimentada pela protagonista redunda na
rememoracao/escritura de trajetorias femininas que fazem aflorar, entre
outras questoes, a da violencia contra a mulher e a necessidade da
agencia feminina, de sua resistencia e empoderamento, sendo ja um
exemplo disso a lucidez com que a protagonista olha para e registra a
problematica.
Consideracoes finais
Nao seria absurdo afirmar, tendo em vista as reflexoes tecidas nas
paginas anteriores, que, na literatura de autoria feminina publicada nos
ultimos quinze anos, a exiliencia feminina, declinada em condicao e/ou
em consciencia, conforme nos ensina Nouss (2016), e representada como
estrategia de subjetificacao de mulheres. Nao aos moldes da tradicao
literaria de mulheres dos anos 1980 e arredores, em que, nao raro,
personagens femininas sao representadas como mulheres empoderadas,
lutando com todas as forcas e armas disponiveis contra a dominacao
masculina e a consequente opressao da mulher. Exilios voluntarios,
viagens e outros deslocamentos remetem, como acreditamos ter
demonstrado, a partir do recorte analisado, a outras situacoes,
avultadas em tempos mais favoraveis as mulheres, empenhadas em
problematizar nao as relacoes de genero moldadas no seio do patriarcado,
mas esforcos de (re)construcoes de identidades femininas em si mesmas
problematizadas, ou, simplesmente, de (re)conhecimento de si e de seu
lugar no mundo.
Sendo assim, se no caso de Eulalia, de A republica dos sonhos
(1984), de Nelida Pinon, tal esforco e consubstanciado no arduo processo
de reconhecimento dos cerceamentos sofridos pela ideologia a que se liga
sua casta familiar; e se, no de Lena, de Tropical sol da liberdade
(1988), de Ana Maria Machado, na reconstrucao de uma vida estilhacada
pelas reverberacoes dos desmandos da Ditadura Militar, assentada na
ordem patriarcal, nas obras publicadas apos os anos 2000, as questoes
representadas tendem a ser da ordem do existencial, embora sempre
questoes coletivas as emoldurem.
No caso de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Goncalves,
questoes de genero e de etnia impulsionam o processo de empoderamento de
Kehinde, a despeito de todo um sistema atuar contra; todavia, nao
poderia ser diferente, ja que o romance e ambientado em tempos de
escravidao e de subserviencia feminina.
Situacao bem diferente e a de Maria, personagem desenhada pela pena
de Luzila Goncalves Ferreira, em Voltar a Palermo (2002), em que o
esforco implicado na viagem a Buenos Aires e despendido na direcao do
alargamento dos seus horizontes politicos e pessoais; assim como o e, no
caso de Mar azul (2012), de Paloma Vidal, no resgate da ascendencia da
narradora estilhacada por entre os escombros deixados pela Ditadura
Argentina; no redimensionamento das herancas genealogicas e nacionais da
protagonista de A chave de casa (2010), de Tatiana Salem Levy; em
Rakushisha (2007), de Adriana Lisboa, no enfrentamento da morte da filha
empreendido por Celina; em Paisagem com dromedario (2010), de Carola
Saavedra, no reconhecimento identitario da protagonista; e, por fim, em
Paraiso (2014), de Tatiana Salem Levy, na superacao de temores advindos
de herancas genealogicas e na problematizacao das novas questoes que, a
despeito libertacao ha muito galgada via feminismo, incidem sobre e
ainda perturbam a mulher contemporanea.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v40i2.41656
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Received on February 9, 2018.
Accepted on July 10, 2018.
Lucia Osana Zolin
Programa de Pos-Graduacao em Letras, Departamento de Teorias
Linguisticas e Literarias, Universidade Estadual de Maringa, Avenida
Colombo, 5790, 87020-900, Maringa, Parana, Brasil. E-mail:
lozolin@uem.br
(1) A chave de casa, de Tatiana Salem Levy (2010); A vendedora de
fosforos, de Adriana Lunardi (2011); Azul corvo, de Adriana Lisboa
(2009); Coisas que os homens nao entendem, de Elvira Vigna (2002);
Consolacao, de Betty Milan (2009); Corpo estranho, de Adriana Lunardi
(2011); Deixei ele la e vim, de Elvira Vigna (2006); Dois rios, de
Tatiana Salem Levy (2011); Enquanto Deus nao esta olhando, de Debora
Ferraz (2014); Judite no pais do futuro, de Adriana Armony (2008); Mar
azul, de Paloma Vidal (2012); Mil e uma noites de silencio, de Mayra
Dias Gomes (2009); O outro lado da sombra, de Mariana Portella (2014); O
segredo do oratorio, de Luize Valente (2012); Paisagem com dromedario,
de Carola Saavedra (2010); Paraiso, de Tatiana Salem Levy (2014); Por
escrito, de Elvira Vigna (2014) ; Rakushisha, de Adriana Lisboa (2007);
Um defeito de cor, de Ana Maria Goncalves (2006); Uma ponte para
Terebin, de Leticia Wierzchowski (2006); Voltar a Palermo, de Luzila
Goncalves Ferreira (2002).
(2) Especie de acordeom, instrumento folclorico de origem alema que
chegou a Argentina na primeira decada do seculo XX, e conquistou o lugar
de simbolo da musica de tango por melhor expressar a melancolia, a
paixao e a profundidade do Tango Argentino.
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