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文章基本信息

  • 标题:Subjectification strategies in contemporary fiction by women: exile, migration, wanderings and other types of displacement/Estrategias de subjetificacao na ficcao contemporanea de mulheres: exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.
  • 作者:Zolin, Lucia Osana
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2018
  • 期号:July
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Introducao

    A pesquisa 'Literatura brasileira contemporanea de autoria feminina: escolhas inclusivas?' que vimos coordenando na Universidade Estadual de Maringa nos ultimos tres anos revela que cerca de 25% dos romances publicados por mulheres pelas editoras Rocco, Record e Companhia das Letras, entre os anos de 2000 e 2015 tematizam questoes e trajetorias de personagens relacionadas a exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.

    Isso, certamente, nao nos causa estranhamento, ja que vivenciamos um momento marcado pela valorizacao da mobilidade e do encurtamento de distancias, seja em termos virtuais, seja em decorrencia das facilidades contemporaneas de que dispoe o individuo que deseja transpor fronteiras, adentrar outros territorios, conhecer/confrontar culturas 'outras'; ou, por outro lado, anseia encontrar-se consigo proprio, (re)construir identidades e/ou questionar herancas identitarias essencializadas, genealogias nacionais ou familiares. Em igual medida, o mundo contemporaneo presencia, atonito, a crise de refugiados mulcumanos que chegam a Europa, atingidos pelo terrorismo, por guerras civis e pela miseria, entre outras violencias, em busca de abrigo e de melhores condicoes de vida. Todos em alguma medida, e guardadas as devidas proporcoes, obviamente, experimentam certa 'condicao exilica', a sensacao de estar fora de lugar, pisando com receio, muitas vezes, com assombro, o territorio do 'Outro', condicao essa que as terminologias utilizadas para lhes especificar as experiencias nao lhes abarcam as especificidades.

Subjectification strategies in contemporary fiction by women: exile, migration, wanderings and other types of displacement/Estrategias de subjetificacao na ficcao contemporanea de mulheres: exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.


Zolin, Lucia Osana


Subjectification strategies in contemporary fiction by women: exile, migration, wanderings and other types of displacement/Estrategias de subjetificacao na ficcao contemporanea de mulheres: exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.

Introducao

A pesquisa 'Literatura brasileira contemporanea de autoria feminina: escolhas inclusivas?' que vimos coordenando na Universidade Estadual de Maringa nos ultimos tres anos revela que cerca de 25% dos romances publicados por mulheres pelas editoras Rocco, Record e Companhia das Letras, entre os anos de 2000 e 2015 tematizam questoes e trajetorias de personagens relacionadas a exilio, migracao, errancia e outros deslocamentos.

Isso, certamente, nao nos causa estranhamento, ja que vivenciamos um momento marcado pela valorizacao da mobilidade e do encurtamento de distancias, seja em termos virtuais, seja em decorrencia das facilidades contemporaneas de que dispoe o individuo que deseja transpor fronteiras, adentrar outros territorios, conhecer/confrontar culturas 'outras'; ou, por outro lado, anseia encontrar-se consigo proprio, (re)construir identidades e/ou questionar herancas identitarias essencializadas, genealogias nacionais ou familiares. Em igual medida, o mundo contemporaneo presencia, atonito, a crise de refugiados mulcumanos que chegam a Europa, atingidos pelo terrorismo, por guerras civis e pela miseria, entre outras violencias, em busca de abrigo e de melhores condicoes de vida. Todos em alguma medida, e guardadas as devidas proporcoes, obviamente, experimentam certa 'condicao exilica', a sensacao de estar fora de lugar, pisando com receio, muitas vezes, com assombro, o territorio do 'Outro', condicao essa que as terminologias utilizadas para lhes especificar as experiencias nao lhes abarcam as especificidades.

Para alem de classificacoes/limitacoes sociopoliticas como a de sujeito exilado, (i/e)migrante, expatriado ou, simplesmente, deslocado que levam em conta, sobretudo, as polaridades de lugares de partida e de chegada ou condicoes juridicas, o pesquisador frances Alexis Nouss (2016) toma a figura do/a exilado/a e/ou do/a migrante em sentido ontologico ('ser exilado'), historico e politico do termo, declinado em diferentes circunstancias temporais e espaciais. Nessa ordem de ideias, cria o neologismo 'exiliencia':

Nucleo existencial comum a todas as experiencias de sujeitos migrantes, quaisquer que sejam as epocas, as culturas e as circunstancias que as acolhem ou que as provocam, a exiliencia declina-se em condicao e consciencia, podendo inclusive acontecer que as duas, em graus distintos, nao coincidam: pode alguem sentir-se em exilio sem ser concretamente um exilado (consciencia sem condicao), como pode alguem ser um exilado em concreto, sem contudo sentir-se em exilio (condicao sem consciencia) (Nouss, 2016, p. 53).

De acordo com o teorico, o sintagma bipolarizado 'condicao e consciencia' traduz as ligacoes entre interioridade e exterioridade, sensacoes e sentimentos, o quadro real e o psiquico, os dados empiricos e o modo como tais dados sao apreendidos. Sendo assim, ha que se adentrar o territorio da etica para abordar a questao, ja que se trata de pensar reacoes possiveis da consciencia face a condicao exilica.

Desenvolvimento

Do ponto de vista da literatura brasileira de autoria feminina, pensar a 'exiliencia' de mulheres das ultimas decadas do seculo XX a esse inicio, ja bem adiantado, do XXI implica percorrer um caminho que avanca paralelamente aos desdobramentos do feminismo e suas conquistas rumo a superacao da famigerada 'condicao feminina', condicao de oprimida, de subjugada, de silenciada, enfim.

Clarice Lispector, em A hora da estrela (1977), constroi uma Macabea deslocada, marcada pelo 'nao ser' e pelo 'nao te'; nao ter, sobretudo, um lugar alem das paginas do livro cuja escritura esta sendo encenada. Migrante nordestina, ela experimenta a exiliencia de que fala Nouss (2016) declinada apenas em condicao, ja que nao tem consciencia do quanto e estrangeira na cidade que, nas palavras do narrador, lhe e 'inconquistavel'. Embora leitor/a e narrador percebam a condicao exilica que alicerca toda a trajetoria da personagem, ela propria parece so se dar conta disso na sua 'hora de estrela', momento fugaz em que experimenta uma especie de epifania na qual fica sugerido, no seu campo de consciencia, o descortino da sua exiliencia.

Na decada seguinte, A republica dos sonhos (1984), de Nelida Pinon faz emergir importantes reflexoes acerca da condicao exilica e da exiliencia de mulheres a partir da perspectiva da mulher, ecoando certo movimento observado na ficcao brasileira dos anos 80 "[...] de interrogar a inscricao do sujeito no conjunto do patrimonio cultural e no devir transcultural da Nacao" (Tonus, 2012b, p. 87). Nesse sentido, avultam os estudos do imigrante como figura literaria. Segundo Leonardo Tonus (2012a, p. 63),
   [...] o imigrante e sua descendencia passam a ocupar
   um lugar central em autoficcoes (Salim Miguel, Nur
   na escuridao, e As aves de Cassandra, de Per Johns) e
   nos chamados romances familiares (Raduan Nassar,
   Lavoura arcaica, Lya Luft, A asa esquerda do anjo,
   Milton Hatoum, Relato de um certo oriente e Dois
   irmaos, e Nelida Pinon, A republica dos sonhos). Do
   mesmo modo, aos conflitos geracionais, associam-se
   agora os conflitos decorrentes de uma pretensa
   desterritorializacao que a presenca de vozes
   descentradas, hibridas e bastardas, expurgadas de
   suas escorias, vem corroborar.


De fato, o romance de Pinon explora, com maestria, a saga familiar de Madruga no Brasil, para onde veio ainda menino 'fazer a America', explorando-lhe os sonhos e, principalmente, as agonias peculiares a sua condicao de imigrante. No entanto, para alem das pelejas do patriarca pela plena cidadania, vislumbrada na perda jamais consumada do rotulo de estrangeiro que, a despeito do sucesso empresarial, o marginalizaria ate o fim, a trajetoria de Eulalia remete a condicao exilica em uma dimensao que transcende a experiencia transcultural: ela nao so esta em um pais que nao e o seu, mas tambem presa a um destino de mulher que alem de nao lhe conferir plenitude existencial, ela intui nao ser o unico possivel. Tanto o pai, quanto o marido lhe haviam explicado "[...] a vida pela metade [...]" (Pinon, 1984, p. 14). Dito de outro modo, permitiram-lhe saber apenas o que rezava a cartilha do patriarcado: Dom Miguel, 'excessivamente zeloso com a filha', 'a mantinha quase num carcere encantado', conservando-a "[...] dentro da casa, para que se esquecesse da paisagem de Sobreira, por meio de historias e frutas sumarentas colhidas da horta [...]" (Pinon, 1984, p. 441); Madruga, por seu turno, "[...] manteve a vida, rigorosamente secreta, fora das grades da casa [...]", nao "[...] permitiria que Eulalia sofresse [...]", bastava-lhe "[...] a saude fragil, e ainda a inclinacao para o devaneio [...]" (Pinon, 1984, p. 126). A 'exiliencia' da personagem, portanto, tomada no seu sentido mais amplo, ou seja, na cisao com a terra natal, com o mundo vislumbrado para alem dos muros da casa, e, sobretudo, com certa parte de si, espoliada antes que ela pudesse apreende-la, parece declinada em condicao e em consciencia. Em alguma medida, a personagem sabese apartada do que foi e viveu na terra natal, mas tambem da plenitude existencial que poderia experimentar, nao fossem as amarras de genero.

Tambem Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, poe em cena a protagonista Lena experimentando a 'exiliencia', conceituada por Nouss (2016), declinada em condicao e em consciencia: de um lado, ela se ve forcada a deixar o pais, fugindo dos horrores da Ditadura Militar, e a vivenciar os terrores e os temores do exilio e da clandestinidade; de outro, vivencia a subjetivacao da experiencia exilica, mesmo estando ja de volta ao Brasil, quando, na casa da mae, tenta se convalescer, equacionando os traumas da ditadura que, propagando-se em diversas direcoes e provocando toda sorte de cisoes, a impediam de exercer o jornalismo e de tocar a vida adiante.

Ao que nos parece, esses romances, a exemplo de outros publicados por mulheres na mesma decada de 1980, como tambem e o caso de A asa esquerda do anjo (1981) de Lya Luft, retratam a exiliencia de mulheres, declinada, nos termos referidos por Nouss (2016), em condicao e, sobretudo, em consciencia, por meio de um discurso alicercado na critica da dominacao masculina e nos seus ecos disseminados em praticas de poder. Tais protagonistas, ao colocarem em perspectiva a condicao exilica a que sao submetidas, para alem dos desdobramentos da propria desterritorializacao, na esfera das relacoes hierarquizadas de genero, fomentam o debate feminista e a revisao de valores tao cara ao contexto em que emergem.

Na literatura brasileira recente escrita por mulheres, as chamadas narrativas 'de' ou 'sobre' a imigracao, tao comuns nos anos 80, como salienta Tonus (2012a), se propagam de maneira bastante intensa, embora revestidas com nova roupagem, segundo as influencias do contexto sociocultural em que emergem. A pesquisa 'Literatura brasileira contemporanea de autoria feminina: escolhas inclusivas?', a que nos referimos no inicio dessas reflexoes, analisou, a partir de uma perspectiva epistemologica feminista, 88 romances publicados por mulheres na ultima decada e meia, com atencao especial no modo de construcao de cada uma das 369 personagens consideradas fundamentais para o desenrolar dos acontecimentos. O objetivo central foi perscrutar se as escolhas dessas escritoras quando do desempenho da tarefa de representar o outro sao inclusivas, no sentido de trazerem para a cena literaria praticas e discursos vedados a seguimentos sociais marginalizados e/ou de minorias; saliente-se ai nosso olhar interessado em reconhecer (ou nao) apadroes de comportamento, tradicionalmente, interditados a mulher, como e o caso da livre transposicao de fronteiras. Nesse recorte, 102 personagens (27,6%), integrantes de 21 romances (1) (25%), vivenciam intensas experiencias de deslocamentos. A pulsao de errancia, aqui tomada nos termos de Michel Maffesoli (2001), e representada, com maior recorrencia, como parte de um esforco de (re)construcao identitaria de suas protagonistas, flagradas em momentos de crise em que problematizam os valores estabelecidos, de ordem genealogica e/ou nacional, recebidos como especies de herancas compulsorias que, embora de uma maneira ou de outra lhes pesassem como fardos as costas, nunca puderam renegar. Esse esforco, nao raro, acaba por redundar no repudio a tais herancas, as quais sao substituidas por afiliacoes a comunidades afetivas e a territorios descentrados. De outro lado, a referida pulsao de errancia funciona como estrategia de afirmacao de si como sujeitos de suas historias, de modo que o deslocar-se nos parece sinalizar autonomia, agencia, bem como capacidade de repudiar os confinamentos compulsorios de certos sistemas politicos, ideologicos e/ou familiares que aprisionam em nome de seus valores e de seus afetos. Seja como for, a pulsao de errancia, como sugere o sociologo frances acima citado, tao recorrentemente representada nessas narrativas, parece implicar uma especie insurgencia contra o compromisso de residencia que prevaleceu durante toda a modernidade, em que as massas foram domesticadas, assentadas no trabalho e fixadas no seu devido lugar, de onde poderiam ser mais facilmente dominadas.

O ir e vir que permeia a trajetoria das/os protagonistas dessas narrativas, nesse sentido, e impulsionado por uma multiplicidade de situacoes derivadas, grosso modo, do desejo ou da necessidade de (re)construcao identitaria e de processos de subjetivacao que, como tal, pressupoe agencia. No caso de Uma ponte para Terebin (2006), de Leticia Wierzchowski, romance inspirado na trajetoria do avo da escritora, Jan Wierzchowski (2006), as viagens do protagonista entre a Polonia e o Brasil tem motivacao politica. Trata-se da historia de um imigrante polones que veio para o Brasil anos antes de a Polonia ser invadida pela Alemanha, durante a 2 Guerra mundial, no entanto, acaba por voltar para la, como voluntario da guerra, por nao suportar acompanhar so pelos jornais noticias permeadas de palavras como 'centenas', 'milhares', 'bombardeios', 'refugiados', 'avanco', 'invasao', sabendo estarem la, em meio a tudo isso, rostos e nomes de familiares e amigos que lhe eram tao caros. Enquanto isso, a esposa Anna fica sozinha no Brasil, vivenciando uma dolorosa e corajosa espera, que inclui cuidar de um filho doente e saber que, agora, entre os destrocos da guerra, perambula um rosto seu. Embora seja ele o exilado, num certo sentido, ela tambem experimenta uma especie de condicao exilica, peculiar por ser vivenciada na terra natal, fazendo saltar aos olhos do/a leitor/a que a sua imobilidade nao era, certamente, um desejo seu, mas uma imposicao daquele contexto de guerras e de condicoes pouco favoraveis as mulheres.

Ja em Judite no pais do futuro (2008), de Adriana Armony, a protagonista, depois de uma infancia de privacoes, vem da Palestina para o Brasil ainda adolescente, fugida da guerra, da fome, da pobreza, onde formou familia. No presente da narrativa, ja idosa, rememora sua trajetoria permeada das agruras da condicao exilica, declinada em condicao e em consciencia. Mas e em Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Goncalves, que se ve representada no romance contemporaneo de autoria feminina a sumula da exiliencia feminina, declinada em condicao e em consciencia, conforme pondera Nouss (2016). A condicao exilica de Kehinde se desdobra, no contexto da diaspora africana, motivada por interesses economicos e de poder, em um doloroso processo que tem inicio, ainda na infancia, com a sua captura e trafico para o Brasil, junto a outros/as negros/as que seriam igualmente escravizados/as. A problematizacao da exiliencia da protagonista esta, nesse sentido, associada a perda da identidade africana, materializada na cisao com a terra natal, com a familia, com suas crencas, com sua lingua e ate com seu proprio nome, conforme se pode constatar no fragmento que segue:

Nao sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo. Mas o pior de todas as sensacoes mesmo nao sabendo direito o que significava, era a de ser um navio perdido no mar, e nao a de estar dentro de um. Nao estava mais na minha terra, nao tinha mais a minha familia, estava indo para um lugar que nao conhecia, sem saber se ainda era para presente ou, ja que nao tinha mais a Taiwo, para virar carneiro de branco (Goncalves, 2011, p. 61).

A despeito de toda ordem de imobilidades que sua condicao de mulher negra e escrava lhe impunha, sua longa trajetoria e permeada de idas e vindas, por meio das quais ela vai (re)conquistando e (re)construindo a identidade e a cidadania espoliadas pela escravidao e pelos preconceitos, literalmente, sentidos na pele. Ha que se salientar, nesse sentido, que tanto a viagem de volta a Africa, apos conseguir comprar sua liberdade e a do primeiro filho, quanto a de retorno ao Brasil, ja idosa, em uma ultima e definitiva tentativa de reencontrar o outro filho, vendido pelo pai branco para pagar dividas de jogo, remetem a agencia que marca profundamente a trajetoria da personagem. Por meio da primeira, ela (re)conquista sua cidadania via independencia financeira e retomada das relacoes com seu povo e suas origens; com a segunda, ela reforca sua condicao de mulher-sujeito, desde o principio demonstrada em meio a suas escolhas e dores.

Ao retratar experiencias exilicas de mulheres em contextos tao disforicos e/ou representa-las em situacoes de deslocamentos diversos, esses romances fazem avultar, cada um a seu modo, figuras femininas empenhadas em processos de reterritorializacao e na (re)construcao de suas identidades, num longo, lento e arduo processo de subjetivacao que pressupoe agencia e empoderamento.

Ja em romances como Voltar a Palermo (2002), de Luzila Goncalves Ferreira, e Mar azul (2012), de Paloma Vidal, as experiencias exilicas, relacionadas com a Ditadura Militar na Argentina, sejam elas vivenciadas pela propria narradora, caso do romance de Vidal, seja por personagens secundarias como ocorre no romance de Goncalves Ferreira, sao propagadas, no presente das narrativas, na trajetoria de ambas as narradoras-protagonistas, afetadas cada uma a seu modo por seus desdobramentos. No primeiro caso, tendo morado por dois anos na Argentina, ocasiao em que experimenta uma intensa historia de amor com Nino, um professor de bandoneon (2), militante de esquerda levado, anos depois, pelos militares e mantido prisioneiro politico por mais de dez anos, Maria, uma professora universitaria brasileira, ao encontrar, vinte anos mais tarde um bilhete dele nas paginas de um livro, decide voltar a Buenos Aires na expectativa da retomada daquela historia que, no entanto, nao se realizaria. Nao so porque, apos a sua volta para o Brasil, Nino se reintegrara a vida de casado, antes suspensa, face a insanidade mental da esposa, a qual ele se empenha veementemente em reverter; mas tambem porque ele volta do 'cativeiro' completamente alheio a tudo, imerso em um estado de coisas em que ela, certamente, nao caberia. O percurso da narradora-protagonista, todavia, nessa viagem que, a principio, se fundava em um possivel reencontro de um amor do passado, acaba por se converter em uma grande reflexao acerca de toda sorte de condicoes exilicas que emanam daquele contexto de repressao que se seguiram aos anos em que viveu na Argentina. Ao mesmo tempo em que rememora o passado, ela o coteja com os relatos da ditadura que se lhe vao apresentando. Ai avultavam os conflitos familiares gerados por posicionamentos diferentes frente ao Regime, as sombras de desconfianca que colocava todos sob suspeita, os relatos de atos publicos que acabavam em morte, o sumico de lideres religiosos e intelectuais, criticos do sistema, com quem ela travara contato no passado, o desaparecimento de jovens idealistas, e, em meio a tudo, o empoderamento de mulheres na defesa de filhos e maridos perseguidos. Trata-se, enfim, de uma trajetoria de uma mulher que, preparada para resgatar uma historia de amor do passado, se ve no amago dos destrocos de um regime politico totalitarista, responsavel por aniquilamentos de toda ordem, desenraizamentos forcados, projetos de vida desestabilizados, historias de amor interrompidas, familias desestruturadas ou esfaceladas... tudo somado, o resultado aponta para a "[...] metamorfose profunda [...]" (Ferreira, 2002, p. 72) que, segundo a personagem, se opera nela: "Eu voltava sozinha. Mas voltava mais rica, com a alma e o coracao carregado de imagens fortes" (Ferreira, 2002, p. 215). Talvez, mais sensivel aos grandes dilemas de ordem politica, eivados de perdas irreparaveis, de batalhas de jovens idealistas que se alegravam em "[...] lutar por algo que os ultrapassava" (Ferreira, 2002, p. 46). Ela que se "[...] julgava inteligente e esclarecida, progressista e lucida [...]" (Ferreira, 2002, p. 71), quando o assunto eram os desmandos de estruturas politicas de extremadireita, ate entao, apenas se comovia ou "[...] votava em favor dos que apregoavam mais justica, mais igualdade, mais democracia" (Ferreira, 2002, p.71).

Em Mar azul (Vidal, 2012), a viagem se da em sentido contrario: embora nao haja referencias explicitas aos locais em que a historia transcorre, fica sugerido que a cidade natal de onde provem a narradora-protagonista e Buenos Aires, sendo o Rio de Janeiro a cidade estrangeira na qual ela se encontra no presente da narrativa, ja na maturidade rumo a velhice, e que lhe serve de cenario para suas rememoracoes de cenas e de acontecimentos do passado. Como em Algum lugar (Vidal, 2009), o primeiro romance da escritora, tambem aqui sao recorrentes imagens de imigrantes, exilados e viajantes, em movimentos que fazem emergir as relacoes estabelecidas com os lugares de destino, com enfase no desconforto suscitado pelos 'desencontros' entre a lingua materna e aquela falada nesses novos espacos. E nesse contexto que, entre o desempenho de atividades domesticas cotidianas, as visitas a medicos de especialidades diversas e os passeios nos arredores que incluem pequenas compras e a natacao, essencial a saude, vai, aos poucos, fruindo a leitura dos diarios do pai e, ao mesmo tempo, escrevendo suas proprias reminiscencias no verso das suas paginas. Trata-se de uma rotina que, se a principio nao gera expectativas, tao corriqueira parece, vai aos poucos descortinando em meio a solidao exilica peculiar aos expatriados, a rememoracoes, insinuacoes e sugestoes, uma especie de projeto seu de inquirir o passado a procura de pistas da sua presenca na trajetoria do pai, bem como da presenca dele na sua. Ambas afetadas de forma incontornavel pela Ditadura Militar Argentina; no caso da dela, duplamente afetada: por meio da perda da sua melhor amiga, adolescente desaparecida, vitima dos desmandos e das atrocidades da ditadura; assim como pela constante ausencia do pai, sempre de partida, em funcao de seus envolvimentos com aparelhos de esquerda, ate exilar-se definitivamente no Brasil. Do ponto de vista dessas nossas reflexoes, importa salientar que, mais uma vez, o deslocamento espacial da protagonista para o Rio de Janeiro parece relacionado ao processo de subjetificacao pelo qual ela passa. Trata-se, a nosso ver, de parte de uma estrategia sua de enfrentamento do passado, em busca de respostas para suas inquietacoes identitarias. E se, a principio, ela resiste, numa tentativa de autoconvencer-se de que deseja esquece-lo, vai avancando por entre lembrancas e escritos, insinuando ao/a leitor/a, por meio do longo dialogo com a amiga da adolescencia que abre a narrativa, ter conseguido seu intento - contar pra todo mundo os desdobramentos das experiencias forjadas a ferro e a fogo pelas maos da Ditadura Argentina.

Ja os romances A chave de casa (2010), de Tatiana Salem Levy, e Rakushisha (2007), de Adriana Lisboa, tem suas protagonistas inseridas em contextos de viagem, vivenciados no mundo contemporaneo e, portanto, regidos por parametros feministas, fazendo emergir representacoes de mulheres cujas trajetorias, se nao remetem a exiliencia, conforme a conceitua Nouss (2016), por nao se classificarem, propriamente, como migrantes, sao, em grande medida, marcadas e afetadas pela desterritorializacao. Sao personagens flagradas em situacoes de deslocamento que, ao experimentarem a sensacao de dispersao e de vulnerabilidade das metropoles, cujos rostos, lingua, cultura e valores sao tao diferentes dos seus, acabam imersas em questionamentos acerca de si, de seus lugares e papeis em um mundo, tragica e finalmente, percebido como dessemelhante, plural e instavel. Deslocam-se no espaco e, em meio a sensacoes que as colocam em uma especie de condicao exilica, ainda que sabidamente provisoria, operam viagens interiores, circulam por "[...] memorias individuais e coletivas, 'espacos de linguagem', para onde convergem a infancia, a busca das origens, e do espaco identitario" (Cury, 2012, p. 20-21).

Ambas as personagens empreendem descobertas acerca de si e do outro. Celina, a protagonista de Rakushisha (ao lado de Haruki) consegue sintetizar o enfrentamento da morte da filha, especie de no em sua trajetoria que ha anos a mantinha imersa em um mundo de sombras, fracassadas que eram as tentativas de esquecimento. A solidao que experimenta em Kyoto, enquanto se da conta de "[...] que nao pertence, que nao entende, que nao fala [...]" (Lisboa, 2007, p. 134), deflagra, em meio as cenas corriqueiras do cotidiano, fragmentos de memoria num movimento continuo e natural que, ao final, acaba por possibilitar a personagem a reorganizacao do trauma, num movimento que inclui o perdao do outro e a reconstrucao de si: "[...] estive reaprendendo a andar [...] depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguem vai se importar muito, afinal quem somos nos se nao menos do que anonimos aqui" (Lisboa, 2007, p. 12).

De maneira similar, a narradora de A chave de casa (Levy, 2010), tendo recebido do avo a chave da casa da familia na Turquia, bem como a missao de ir ao seu encontro, parte, nao sem resistencia, em busca das origens familiares, cujos ecos habitam a memoria de seus antepassados e a sua, assombrando-lhes com ancestrais codigos morais e praticas culturais, propagadas, sob o manto do afeto, quase sempre em forma de opressao e de repressao. A viagem, nesse sentido, configura-se como metafora de enfrentamento. A busca da casa ganha foros de busca pelas tradicoes culturais e genealogicas da familia, visando, num certo sentido, a superacao de influencias restritivas sobre sua trajetoria e, de outro lado, o redimensionamento de suas identidades: apesar de nao se reconhecer, inicialmente, como turca, passar a questionar a sua brasilidade, ponderar a sua acidental natalidade portuguesa, ela acaba por resgatar-se a si propria, compreendendo e assimilando seu hibridismo identitario, revendo, enfim, suas herancas e as equacionando em novas bases. No dizer de Brandao (2015, p. 150, grifo do autor),
   O 'sair de casa' dessa protagonista implica nao apenas
   sair de si mesma, mas ir de encontro - e confrontar aos
   seus proprios fantasmas (da mae, do avo, do
   amante, da escrita) para poder reconstruir-se
   afetivamente, que e o que ocorre quando ela retorna a
   Portugal, tendo ja descoberto que a 'chave de casa' era
   ela mesma (ou estava dentro dela mesma).


Ao vivenciarem o choque oriundo do embate involuntario entre o 'silencio' entendido, nos termos de Orlandi (1997), como a solidao do sujeito em face dos sentidos, e o 'estranhamento', que Lopes (2002) define como decorrencia do "[...] jogo entre o distante e o proximo, o igual e o diferente, o arcaico e o moderno [...]" (Lopes, 2002, p. 176), ambas as personagens experienciam a 'exiliencia' declinada na consciencia do nao pertencimento. Todavia, passam da dor que tal condicao pressupoe para a esperanca de plenitude vislumbrada no conhecimento de si e das questoes que lhes permeiam as trajetorias.

As tramas ou historias que constituem o romance Com que se pode jogar (2011), de Luci Collin, tambem sao construidas de modo a enfatizar os processos migratorios empreendidos pelas tres personagens centrais da narrativa. Sao personagens que, ambientadas em espacos socioculturais diferentes, vivenciando conflitos igualmente distintos, casualmente costurados pela atuacao de uma quarta personagem que lhes marca definitivamente as trajetorias, empreendem, cada uma a seu modo, deslocamentos espaciais configurados como lutas pela sobrevivencia. Trata-se de uma especie de jogo, como sugere o titulo do romance e as 'convocatorias' que antecedem cada uma das historias, constituido de debates e batalhas no entorno de questoes de ordem socioeconomica, identitaria e existencial. Ana Elisa Strobel de Medeiros e a primeira das personagens-protagonistas cujas historias, drasticamente afetadas pela atuacao de Rhuam, o elo entre elas, constituem a totalidade do romance. A advogada de sucesso, no presente da narrativa, autoexila-se em uma remota propriedade rural, junto aos tres filhos pequenos, apos ver o marido, um promotor de justica renomado, ser assassinado gratuitamente, ja que ela nao suspeita que se trata de uma represalia a determinada conduta profissional dele. Sendo assim, ela vislumbra na experiencia exilica uma possibilidade de se reinventar face ao trauma da violencia sem sentido da cidade grande. Ja Melanta faz o percurso inverso: apos ter sido sexualmente molestada pelo irmao mais velho e assistir o mais jovem ser acusado e punido pelo delito, deixa pai e mae idosos e doentes em um lugarejo distante e parte para a cidade grande em busca de meios para sustenta-los. O romance se completa com a trajetoria de Lena, adotada ainda bebe por um casal abastado, estudou nas melhores escolas e usufruiu de tudo o que o dinheiro pode comprar ate que, na adolescencia, descobre detalhes de seu processo de adocao. A rebeldia vem, sobretudo, na direcao da mae que teria escolhido "[...] um bebezinho bem subnutrido, o pior de todos, o mais fudido [...] " (Collin, 2011, p. 99), pago por ele com um "[...] cheque cheio de zeros [...] " (Collin, 2011, p. 99) e o levado consigo para ser cuidado por uma de suas empregadas. Nao fora, como lhe haviam contado, adotada com quatro dias de vida, mas comprada, em nome da filantropia, com dois meses, parecendo "[...] um bicho: o corpo cheio de feridas, sarna e piolhos" (Collin, 2011, p. 131). Dai a vida desregrada, o desprezo pelo dinheiro e pelo status da familia, a gravidez, as drogas, a prisao e o aborto espontaneo, antes da errancia pela Europa, da paixao por outro expatriado, de voltar ao Brasil e de se vingar, com a ajuda dele, do promotor de justica, a quem atribui a culpa pela perda do filho, decorrente das agruras sofridas enquanto prisioneira, bem como da mae, roubandolhe bens. Todas as tres, ao se perceberem em situacao-limite, reagem por meio de saidas estrategicas do lugar de opressao. O deslocar-se dessas personagens, impulsionado seja pelo 'desejo de outro lugar', nos termos de Maffesoli (2001), seja pela crua impossibilidade de permanencia, implica agencia, no sentido de conquistar para si um lugar em que possam pousar os pes e se sentirem donas de seus destinos. Dai o lancar-se em mundos desconhecidos em busca de sobrevivencia, perambular por centros e periferias de grandes cidades a procura de respostas, ou, por fim, isolar-se no campo num ato de preservacao de si e daqueles que ama.

Fazendo caminhos inversos aos das protagonistas de Rakushisha (Lisboa, 2007) ede A chave de casa (Levy, 2010), que se lancam no mundo despersonalizado das metropoles das multidoes, da fragmentacao e da descontinuidade, tal como a Ana da narrativa de Collin (2011) acima referida, as protagonistas de Paisagem com dromedario (2010), de Carola Saavedra, e de Paraiso (2014), de Tatiana Salem Levy, tem suas trajetorias marcadas por 'escapadas' para refugios isolados, experimentando uma configuracao exilica delineada com tracos e contornos mais esgarcados: no primeiro, Erika, uma artista plastica se exila voluntariamente em uma remota ilha vulcanica, onde grava mensagens destinadas a Alex, artista como ela, com quem viveu uma intensa historia de amor a qual, mais tarde, se junta a amiga Karen, transformando-a em um triangulo amoroso, ate que esta morre acometida por um cancer agressivo. Numa especie de roteiro cinematografico, constituido das mensagens gravadas e de informacoes que as permeiam, situando-as no tempo, no espaco e no ambiente, a trajetoria da personagem vai se desdobrando e fazendo emergir uma especie de crise identitaria, configurada, de um lado, no desejo de compreender as razoes de ter abandonado Karen no momento em que ela mais precisava dela:

A mae de Karen queria me pedir um favor. [...] Queria que eu visitasse a filha, ou ao menos que ligasse pra ela. Para dizer o que, eu perguntei. [...] Desculpa? Sinto muito? O que a gente diz para alguem que vai morrer?(Saavedra, 2010, p. 40).

De outro, na inquietude instaurada pela duvida de nao saber ate que ponto ela espelha em si a personalidade de Alex, como insinuam alguns, face as obras assinadas em conjunto:

Antes de Karen costumavamos trabalhar juntos, agora me lembro. Assinavamos Alex e Erika Z. Lembra? E nossos nomes formavam uma unica marca, um unico som. Alex e Erika Z. Muitos diziam que voce me carregava nas costas, voce o grande artista, e eu apenas aquela que te acompanhava. Aquela que nunca seria tao talentosa, tao importante, aquela que nunca teria nada novo a dizer. Sempre. Poucos viam, naquilo nosso, algo que pudesse ser meu. Mas era, voce sabia. Muito ali era meu (Saavedra, 2010, p. 66).

Embora as gravacoes sejam enderecadas a Alex, a narradora-protagonista o faz sem pretensoes de que ele as ouca. Ao inves disso, parece-nos tratar-se do simulacro de confissoes, comentarios ou depoimentos que, na verdade, consistem em estrategias de autoconhecimento, especie de exercicio retrospectivo, cuja finalidade e por luz sobre as significacoes de suas escolhas, bem como do modo como se relaciona com 'o outro' e, sobretudo, reconhecer a direcao que deseja imprimir a sua historia. A sugestao que fica e que se, ao final da experiencia, ela, num certo sentido, repete as mesmas praticas, dando um simples 'adeus' ao homem com quem viveu, na ilha, uma historia que avancava rumo ao casamento, e que depositava na relacao uma esperanca de ser feliz, e porque se reconheceu assim, incapaz de se doar, uma especie de monstro, nao no sentido de "[...] ser contrario a natureza [...]" (Saavedra, 2010, p. 45), mas, conforme aponta a etimologia da palavra, "[...] ser que vinha anunciar a vontade dos deuses", especie de arauto sem poderes para "mudar a vontade dos deuses" (Saavedra, 2010, p. 45-46). E, sendo assim, nao esta em jogo na narrativa problematizar o comportamento da personagem como mais nobre ou menos nobre, tampouco tecer juizos de valor sobre etica ou afetos, parece antes lancar um olhar pessimista em direcao ao sujeito contemporaneo, cuja existencia carece de sentido. Eis a direcao em que avanca a sua trajetoria apos a experiencia exilica na ilha. De igual maneira, da-se nesses termos a conquista da subjetificacao desencadeada por tal experiencia.

Tambem em Paraiso (Levy, 2014), a escritora Ana, apos ter recebido a noticia que poderia ter contraido Aids num relacionamento casual, se refugia no sitio de uma amiga, enquanto espera, angustiada, o resultado do exame, para escrever. Soma-se a isso o fato de estar atemorizada pela maldicao lancada sobre as mulheres da familia, por uma sacerdotisa escravizada por seus antepassados, no seculo XIX, antes de ser enterrada viva, ao ser descoberta gravida de seu senhor pela esposa dele. A solidao e a escrita, nesse sentido, funcionariam como coadjuvantes na decisao de exorcizar esses fantasmas, talvez imaginarios, por meio do enfrentamento que a pesquisa e a redacao do romance exigiriam.

Mais uma vez, o exilio voluntario, permeado de medo e solidao, e retratado na ficcao contemporanea de mulheres como uma pratica que remete a agencia. A despeito de problemas de linguagem que o romance possa ter, face ao argumento historico, como assinalam alguns criticos; ou relacionados ao fato de a escritora, sob certos olhares, retomar lugares-comuns, como o do idilio amoroso entre artistas no recanto paradisiaco, o tema da subjetivacao da mulher e orquestrado em meio as memorias da personagem-escritora, afloradas em decorrencia de sua condicao exilica, escolhida como estrategia para dirimir os fantasmas que ha cinco geracoes assombram as mulheres de sua familia.

De modo especial, em um contexto que apesar, dos avancos feministas, a violencia contra a mulher e registrada diariamente, em numeros cada vez mais alarmantes, o fato de Ana ir alinhavando, por entre as teias da trama, historias de mulheres vitimadas por agressoes de ordem diversa, ao que nos parece, legitima o argumento da narrativa relacionado a 'maldicao' e lhe confere nova roupagem. Isso implica dizer que o tal sortilegio acaba por ser desmistificado de modo que o que lhe poderia ser atribuido, como o estupro sofrido por sua mae, o assedio sexual que o padrasto lhe impunha, a violencia simbolica vislumbrada na predisposicao do parceiro ocasional em infecta-la com o HIV, aos quais se somam, no presente da narrativa, os constantes espancamentos sofridos pela caseira, seguidos do esfaqueamento, ao que tudo indica, tambem, executado pelo ex-marido, tem sua verdadeira razao de ser na violencia contra as mulheres, aprendida culturalmente e passada de geracao a geracao ate ecoar no mundo contemporaneo. Nessa ordem ideias, a exiliencia experimentada pela protagonista redunda na rememoracao/escritura de trajetorias femininas que fazem aflorar, entre outras questoes, a da violencia contra a mulher e a necessidade da agencia feminina, de sua resistencia e empoderamento, sendo ja um exemplo disso a lucidez com que a protagonista olha para e registra a problematica.

Consideracoes finais

Nao seria absurdo afirmar, tendo em vista as reflexoes tecidas nas paginas anteriores, que, na literatura de autoria feminina publicada nos ultimos quinze anos, a exiliencia feminina, declinada em condicao e/ou em consciencia, conforme nos ensina Nouss (2016), e representada como estrategia de subjetificacao de mulheres. Nao aos moldes da tradicao literaria de mulheres dos anos 1980 e arredores, em que, nao raro, personagens femininas sao representadas como mulheres empoderadas, lutando com todas as forcas e armas disponiveis contra a dominacao masculina e a consequente opressao da mulher. Exilios voluntarios, viagens e outros deslocamentos remetem, como acreditamos ter demonstrado, a partir do recorte analisado, a outras situacoes, avultadas em tempos mais favoraveis as mulheres, empenhadas em problematizar nao as relacoes de genero moldadas no seio do patriarcado, mas esforcos de (re)construcoes de identidades femininas em si mesmas problematizadas, ou, simplesmente, de (re)conhecimento de si e de seu lugar no mundo.

Sendo assim, se no caso de Eulalia, de A republica dos sonhos (1984), de Nelida Pinon, tal esforco e consubstanciado no arduo processo de reconhecimento dos cerceamentos sofridos pela ideologia a que se liga sua casta familiar; e se, no de Lena, de Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, na reconstrucao de uma vida estilhacada pelas reverberacoes dos desmandos da Ditadura Militar, assentada na ordem patriarcal, nas obras publicadas apos os anos 2000, as questoes representadas tendem a ser da ordem do existencial, embora sempre questoes coletivas as emoldurem.

No caso de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Goncalves, questoes de genero e de etnia impulsionam o processo de empoderamento de Kehinde, a despeito de todo um sistema atuar contra; todavia, nao poderia ser diferente, ja que o romance e ambientado em tempos de escravidao e de subserviencia feminina.

Situacao bem diferente e a de Maria, personagem desenhada pela pena de Luzila Goncalves Ferreira, em Voltar a Palermo (2002), em que o esforco implicado na viagem a Buenos Aires e despendido na direcao do alargamento dos seus horizontes politicos e pessoais; assim como o e, no caso de Mar azul (2012), de Paloma Vidal, no resgate da ascendencia da narradora estilhacada por entre os escombros deixados pela Ditadura Argentina; no redimensionamento das herancas genealogicas e nacionais da protagonista de A chave de casa (2010), de Tatiana Salem Levy; em Rakushisha (2007), de Adriana Lisboa, no enfrentamento da morte da filha empreendido por Celina; em Paisagem com dromedario (2010), de Carola Saavedra, no reconhecimento identitario da protagonista; e, por fim, em Paraiso (2014), de Tatiana Salem Levy, na superacao de temores advindos de herancas genealogicas e na problematizacao das novas questoes que, a despeito libertacao ha muito galgada via feminismo, incidem sobre e ainda perturbam a mulher contemporanea.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v40i2.41656

Referencias

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Received on February 9, 2018.

Accepted on July 10, 2018.

Lucia Osana Zolin

Programa de Pos-Graduacao em Letras, Departamento de Teorias Linguisticas e Literarias, Universidade Estadual de Maringa, Avenida Colombo, 5790, 87020-900, Maringa, Parana, Brasil. E-mail: lozolin@uem.br

(1) A chave de casa, de Tatiana Salem Levy (2010); A vendedora de fosforos, de Adriana Lunardi (2011); Azul corvo, de Adriana Lisboa (2009); Coisas que os homens nao entendem, de Elvira Vigna (2002); Consolacao, de Betty Milan (2009); Corpo estranho, de Adriana Lunardi (2011); Deixei ele la e vim, de Elvira Vigna (2006); Dois rios, de Tatiana Salem Levy (2011); Enquanto Deus nao esta olhando, de Debora Ferraz (2014); Judite no pais do futuro, de Adriana Armony (2008); Mar azul, de Paloma Vidal (2012); Mil e uma noites de silencio, de Mayra Dias Gomes (2009); O outro lado da sombra, de Mariana Portella (2014); O segredo do oratorio, de Luize Valente (2012); Paisagem com dromedario, de Carola Saavedra (2010); Paraiso, de Tatiana Salem Levy (2014); Por escrito, de Elvira Vigna (2014) ; Rakushisha, de Adriana Lisboa (2007); Um defeito de cor, de Ana Maria Goncalves (2006); Uma ponte para Terebin, de Leticia Wierzchowski (2006); Voltar a Palermo, de Luzila Goncalves Ferreira (2002).

(2) Especie de acordeom, instrumento folclorico de origem alema que chegou a Argentina na primeira decada do seculo XX, e conquistou o lugar de simbolo da musica de tango por melhor expressar a melancolia, a paixao e a profundidade do Tango Argentino.
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