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文章基本信息

  • 标题:Discaourses of self-help books and subjectivities prets-a-porter/Discursos de livros de autoajuda e subjetividades prets-a-porter.
  • 作者:Chiaretti, Paula ; Tfouni, Leda Verdiani
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2016
  • 期号:October
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Introducao

    Uma das consequencias que podemos tirar do aforismo lacaniano 'o inconsciente e articulado como uma linguagem' e a solidariedade entre as dimensoes singular e social. Isto porque, segundo Sauret (2009), para que os sujeitos se facam entender minimamente, torna-se necessario que emprestem significantes de um mesmo Outro simbolico. Enquanto a singularidade e entendida como aquilo que prove uma unicidade ao sujeito, ao mesmo tempo em que o faz irredutivel a qualquer outro, o social e entendido como "[...] aquilo que mantem os sujeitos [...] juntos" (Sauret, 2009, p. 31, traducao nossa) (1).

    Apoiado nessa determinacao (ao menos parcial) do sujeito por esse Outro simbolico em certa medida compartilhado, este trabalho busca compreender as implicacoes que as transformacoes no laco social teriam nas producoes discursivas. De acordo com Sauret (2009, p. 13, traducao nossa), essas modificacoes do laco social estao relacionadas

    [...] tanto a sua estrutura (mercado e sociedade de consumo), quanto ao tipo de saber valorizado (a tecnociencia) ou desqualificado (ontologias) e as ideologias que resultam disso (cientificismo) (2).

    A fim de compreender alguns aspectos das modificacoes do laco social, sera retomada a obra freudiana de 1930, O mal-estar na civilizacao (Freud, [1930] 2011), para que, em seguida, observemos alguns titulos de livros de autoajuda, considerados aqui materiais discursivos privilegiados de analise dessas modificacoes e suas implicacoes na promocao de uma certa subjetividade na atualidade, ja que propoem, de maneira incisiva, modos de ser e estar no mundo, conforme sera observado nas analises.

Discaourses of self-help books and subjectivities prets-a-porter/Discursos de livros de autoajuda e subjetividades prets-a-porter.


Chiaretti, Paula ; Tfouni, Leda Verdiani


Discaourses of self-help books and subjectivities prets-a-porter/Discursos de livros de autoajuda e subjetividades prets-a-porter.

Introducao

Uma das consequencias que podemos tirar do aforismo lacaniano 'o inconsciente e articulado como uma linguagem' e a solidariedade entre as dimensoes singular e social. Isto porque, segundo Sauret (2009), para que os sujeitos se facam entender minimamente, torna-se necessario que emprestem significantes de um mesmo Outro simbolico. Enquanto a singularidade e entendida como aquilo que prove uma unicidade ao sujeito, ao mesmo tempo em que o faz irredutivel a qualquer outro, o social e entendido como "[...] aquilo que mantem os sujeitos [...] juntos" (Sauret, 2009, p. 31, traducao nossa) (1).

Apoiado nessa determinacao (ao menos parcial) do sujeito por esse Outro simbolico em certa medida compartilhado, este trabalho busca compreender as implicacoes que as transformacoes no laco social teriam nas producoes discursivas. De acordo com Sauret (2009, p. 13, traducao nossa), essas modificacoes do laco social estao relacionadas

[...] tanto a sua estrutura (mercado e sociedade de consumo), quanto ao tipo de saber valorizado (a tecnociencia) ou desqualificado (ontologias) e as ideologias que resultam disso (cientificismo) (2).

A fim de compreender alguns aspectos das modificacoes do laco social, sera retomada a obra freudiana de 1930, O mal-estar na civilizacao (Freud, [1930] 2011), para que, em seguida, observemos alguns titulos de livros de autoajuda, considerados aqui materiais discursivos privilegiados de analise dessas modificacoes e suas implicacoes na promocao de uma certa subjetividade na atualidade, ja que propoem, de maneira incisiva, modos de ser e estar no mundo, conforme sera observado nas analises.

Freud, em 1930, coloca o mal-estar como um dos efeitos da entrada do individuo na sociedade e a busca pela felicidade como finalidade e intencao reveladas pela forma como os homens conduzem suas vidas. Para Freud, os homens pedem isto da vida: "[...] eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes" (Freud, [1930] 2011, p. 19). No entanto, muitos obstaculos se interpunham a esse fim.

Nesse momento, essa busca se caracteriza por duas metas: uma positiva, relacionada a busca pelo prazer, e uma negativa, que se relaciona a evitacao do desprazer.

Ao contrario do que Freud supunha nesse momento da sua obra, liberar o sujeito da forte repressao sexual ('liberdade' que pode ser observada a partir da decada de 60) nao o livrou de todo tipo de mal-estar. Na realidade, observa-se, nos dias de hoje, a mais alta incidencia diagnostica de depressao, um quadro diagnostico que tem se delineado nos ultimos anos e que se diferencia daqueles quadros que apontavam para o mal-estar na epoca em que Freud elabora sua teoria psicanalitica: a histeria, por exemplo. Podemos considerar, no entanto, que alguns fatores contribuem para o aumento de indice: os atuais dispositivos diagnosticos da Psiquiatria que, ao ampliar os criterios diagnosticos de depressao, incluindo, por exemplo, o luto, aumentam os quadros clinicos que sao nomeados (diagnosticados) como depressivos; o aumento da oferta de e da procura por servicos ligados a saude mental, decorrente da propria formacao de campos profissionais e do desenvolvimento de disciplinas especificas, como a Psicologia; dentre outros.

Assim, podemos considerar que se, por um lado, a ciencia se produz no sentido de minimizar um dado mal-estar, por outro lado, e paradoxalmente, novos sintomas sao produzidos na medida em que o conhecimento cientifico se formula em texto propondo praticas de conduta especificas, como a medicalizacao ou as tecnicas terapeuticas, por exemplo.

Em certo sentido, o que se observa na producao discursiva de livros de autoajuda indica a incidencia da resolucao ao mal-estar proposta pela ciencia (e, como veremos mais adiante, pelo mercado): ao homem, teria se tornado possivel obter a satisfacao que lhe foi anteriormente negada ja que atualmente existiriam os recursos necessarios para tanto.

Justamente por conta da 'novidade' dessa suposta satisfacao que se encontraria ao alcance de todos (sendo aqui o 'ao alcance de todos' um efeito de sentido reforcado, por sua vez, pela configuracao de uma sociedade supostamente 'plenamente democratica e meritocrata'), podemos considerar que, se, num primeiro momento (aquele descrito na obra freudiana citada), a sociedade se organizava inscrevendo os sujeitos em uma logica organizada a partir de uma economia do recalque; o que se observa, na atualidade, seria uma organizacao que incita ao gozo que escapa a metaforizacao e que, a partir dessa 'nova economia subjetiva', novos e diferentes sintomas se produziriam. Compreendendo esse modo de subjetivacao como lugares previstos para inscricao de sujeito e sentido, passamos aos titulos dos livros de autoajuda que tomamos neste trabalho como indices de certo funcionamento discursivo que aponta para esse lugar de completude e de plena satisfacao possiveis.

Desejo, logo realizo (3)

A partir do titulo do livro de autoajuda acima, podemos retomar as modificacoes no laco social que implicam nao mais um mandamento de renuncia a satisfacao, como observa Freud em 1930, mas justamente o seu contrario: os avancos cientificos aliados as novas praticas de consumo (que propoem novas maneiras de inscrever socialmente o sujeito) assegurariam a completude a todos, nos moldes mercadologicos da 'satisfacao garantida ou o seu dinheiro de volta'. Por substituir uma 'moral' anterior na qual eram esperados, do sujeito, sacrificios em prol de um bem maior ou coletivo, Melman (2003, p. 60) trata essa configuracao social e subjetiva como 'nova moral', "[...] na qual cada um tem o direito de satisfazer o seu gozo, sejam quais forem suas modalidades".

E nesse contexto que podemos observar, hoje, uma volumosa producao discursiva que nao somente preve a possibilidade de que a finalidade (de ser e permanecer feliz) se realize, como a impoe como necessaria. E o que observamos em livros de autoajuda que, por meio de um discurso prescritivo, elaboram um projeto de felicidade para um 'voce': 'E simples: 'voce' pode recriar a sua vida', 'Viva como 'voce' quer viver'. O 'voce' aqui aponta para um lugar vago facilmente ocupado por qualquer um ou todos, indiciando um funcionamento discursivo que provoca uma passagem do um ao todos e uma permutacao entre o 'particular' e o 'universal'.

Assim, podemos observar como esse discurso forja um sujeito universal, ou uma dada subjetividade, que aponta simultaneamente para a negacao do abandono do principio do prazer, proposto por Freud ([1911] 2010) como um dos moduladores da constituicao do individuo e para uma demanda atual e social de gozo.

'Desejo, logo realizo', ao retomar e reformular a citacao cartesiana (Cogito ergo sum, 'penso, logo sou') que indica as coordenadas de uma certa subjetividade, atualiza os sentidos, desfazendo a referencia ao pensamento e ao ser e propondo uma nova referencia: ao 'desejo' e a 'realizacao'. Assim, essa substituicao significante no recorte discursivo nos fornece as pistas sobre essa configuracao social e subjetiva que privilegia as demandas (de gozo) como as coordenadas simbolicas a partir das quais sujeito e sentido se constituem.

A partir da retomada de certas condicoes de producao desse enunciado ligadas ao consumo, como nos referimos antes, podemos considerar o 'desejo' ai nao do ponto de vista da psicanalise, como falta, mas, sim, a partir da propria logica de consumo, como 'mais-de-gozar', maneiras de suplantar o desejo por meio da completude que em nada diz respeito do sujeito (para a psicanalise, sempre desejante).

Tambem a 'realizacao' se encontra entre os significantes privilegiados pela logica presente nos atuais moldes do capitalismo, na medida em que convoca o sujeito a ocupar uma funcao (pro)ativa que fusiona os sentidos do que seriam os objetivos e as metas particulares e sociais. De modo algum, essa realizacao estaria relacionada ao principio do prazer sobre o qual Freud ([1930] 2011, p. 28) escreve:
   O programa de ser feliz, que nos e imposto pelo
   principio do prazer, e irrealizavel, mas nao nos e
   permitido--ou melhor, nao somos capazes de--abandonar
   os esforcos para de alguma maneira
   tornar menos distante a sua realizacao.


Podemos entender o programa de felicidade e realizacao propagandeado pelo discurso de livros de autoajuda nao como um programa similar ao do principio do prazer, que nao tem como finalidade a manutencao de um estado social mais ou menos coeso, mas como um programa de felicidade que, pautado mais pela 'seguranca' e 'harmonia social', serve a fins de administracao politico-social.

Podemos considerar, entao, essa producao discursiva um sintoma contemporaneo (Chiaretti, 2013), na medida em que se apresenta como uma 'solucao de compromisso' entre a injuncao ao gozo (das sociedades democraticas e economicamente livres) e a impossibilidade (estrutural) de completude. Ainda que essa completude seja impossivel, ela pode ser propagandeada.

Mais que um catalogo (nao muito variado) de solucoes, observamos que o discurso de livros de autoajuda disponibilizariam sintomas prets-a-porter, cujo carater massivo pode ser relacionado as condicoes simbolicas e materiais de sua producao, referidas em grande medida ao discurso capitalista e ao discurso da ciencia. Assim, os sintomas sao considerados prets-a-porter por se encontrarem disponiveis no mercado, prontos para o consumo. Usualmente, eles tratam de algum 'impossivel' por meio da 'necessidade', relancando o sujeito nao ao que e proprio do desejo, mas a reformulacao da possibilidade de completude por meio do acesso a um artificio.

Dizemos artificio porque, sendo a falta estrutural e a completude impossivel, resta ao sujeito desejante a falta, que pode funcionar no sentido de movimenta-lo e/ou se virar com aqueles objetos que podem fazer as vezes do objeto que satisfaria o desejo, sem que, no entanto, isso se realize de fato (o que levaria ao aniquilamento do sujeito, caracterizado pela falta), pois o desejo e sempre insatisfeito. Sempre insatisfeito porque o objeto que poderia completar o sujeito e desde sempre o objeto perdido. Isso nao quer dizer que o sujeito nao busque (incessantemente) essa completude e que os discursos de livros de autoajuda nao se beneficiem dessa busca na medida em que (re)apresentam ao sujeito sempre essa possibilidade de 'realizacao'. Outros titulos de livros de autoajuda formulam enunciados que funcionam nessa mesma direcao: 'Realize seus desejos' e 'As dez leis da realizacao'.

E pela maneira como esse tipo de discurso (considerado aqui em certa medida representativo dos discursos atuais, ao lado do publicitario, por exemplo) denega reiteradamente a falta (e, consequentemente, o desejo) que podemos aproxima-lo da consideracao, feita por muitos teoricos, do momento atual como uma especie de perversao generalizada. Nao porque estejamos diante de uma sociedade composta por perversos, mas porque os lacos que se estabelecem--bem como os discursos que circulam--privilegiam certos funcionamentos que escamoteiam a falta, promovendo as supostas possibilidades de completude.

Essas possibilidades, nesses discursos, estao relacionadas ao proprio 'sujeito', aquilo que ele pode promover por si mesmo. O sujeito aqui e compreendido como autoengendrado e autogerivel. Dai afirmacoes como "[...] 'todos' nascemos com um potencial infinito de 'realizacao'" (Shinyashiki, 2012, p. 30, grifos nossos), presentes em livros de autoajuda. E a si mesmo que esse sujeito responde.

Seja lider de si mesmo

Dufour (2005) propoe que a pos-modernidade nao teria mais as mesmas figuras apresentaveis de Sujeito a propor. Ao contrario do periodo anterior no qual encontrariamos uma distancia entre o sujeito e aquele que funda (Deus, a Nacao etc.), na atualidade, essa distancia teria sido superada:

A pos-modernidade, democratica, com efeito correspondente a epoca em que nos pusemos a definir o sujeito nao mais por sua dependencia e sua submissao ao grande Sujeito, mas por sua autonomia juridica, por sua total liberdade economica, e em que nos pusemos a dar do sujeito falante uma definicao de 'autorreferencial': o novo sujeito nao e mais o sujeito de Deus, do Rei ou sujeito a Republica, mas sujeito dele mesmo (Dufour, 2005, p. 71, grifo do autor).

Para Lebrun (2010), se antes, no modelo religioso transcendente, o ponto fixo, que e Deus, que reconhece a humanidade, se encontrava no exterior (exogeno), atualmente, na sociedade organizada a partir do paradigma cientifico, esse ponto e identificado como interior (endogeno). No entanto, ciente dos modos de constituicao do sujeito a partir de processos ideologicos e inconscientes, devemos entender esse interior como uma exterioridade interna, paradoxo que Althusser (1980) ja aponta sobre a ideologia como om"i-historica.

E a posicao de total autonomia e sua contraditoria submissao ao simbolico que o titulo de livro de autoajuda Seja lider de si mesmo retoma. A autonomia como artificio e efeito de sentido do processo de constituicao de sujeito aparece aqui no furo que o paradoxo no enunciado causa, descentrando o sujeito-centro-sentido, obrigando-o a ocupar um lugar de autoridade unica a qual deve se submeter.

Vale retomar, a partir do campo teorico da Analise de Discurso, que os efeitos de sujeito e de sentido dissimulam justamente o processo de sua constituicao. O apagamento desse processo possibilita a tomada do sujeito como causa de si, um efeito paradoxal que Pecheux ([1975] 2009, p. 144) ilustra a partir da historia do Barao de Munchhausen que "[...] se elevava nos ares puxando-se pelos proprios cabelos". A autonomia, como efeito ideologico elementar, e produzida pela interpelacao.

Podemos ainda pensar a questao a partir do modelo do panoptico proposto por Foucault (1977), fazendo os ajustes que as condicoes atuais de producao desse discurso nos obrigam nesse dispositivo de vigilancia. Esse dispositivo foi descrito como um paradigma a positividade do individuo, que passa a ser tomado pelas ciencias humanas modernas como observavel e portador de caracteristicas discerniveis. Logo, esse procedimento cientifico de producao de 'saber' ira se relacionar com o 'poder', na medida em que cercar e discretizar individuos favorecem o seu 'exercicio de controle', ja que o estado permanente de visibilidade permitiria ao poder se exercer automaticamente. Reencontramos a incidencia do modelo de vigilancia nesses discursos de livros de autoajuda, mas, dado o carater autorreferencial, o exercicio da vigilancia seria exercido pelo proprio objeto de vigilancia.

Enquanto o panoptico e uma maquina de dissociar o par ver e ser visto, os livros de autoajuda articulam essas duas funcoes, fazendo da subjetividade, encarnada no leitor, objeto e sujeito da vigilancia. E isso que nos levou a pensar em um 'panoptico no espelho': nao se trata mais de um outro que observa atentamente o sujeito, mas, sim, o proprio sujeito passa a se observar como um objeto. A subjetividade, nesse caso, e o objeto e mesmo um produto.

No entanto, ao lado do 'reconhecimento' (processo relacionado a identidade, a uma certa positividade e constituicao de sentidos sobre si), podemos observar um 'desconhecimento', pois e preciso que, ao mesmo tempo em que o sujeito se submeta ao campo do Outro, que essa submissao seja dissimulada para si mesmo, de forma que ele possa falar 'por si', ou como formula Althusser (1980): 'andar sozinho'.

Trata-se da propria construcao de uma 'interioridade' sobre a qual incide uma 'exterioridade' (ambas forjadas a posteriori). Talvez essa confusao propria de um processo, cuja descricao cronologica nao e suficiente, permita que seja ignorado o paradoxo da expressao 'livros' (alteridade) 'de autoajuda' (identidade). Como poderiamos falar em autoajuda quando estamos diante de um outro que nos informa sobre os procedimentos a serem tomados?

Podemos ainda pensar sobre esse enunciado, 'Seja lider de si mesmo', a partir da formulacao althusseriana de que nao ha exterior a ideologia, a ideologia e o exterior. Ha dominacao/submissao porque o sujeito, na sua constituicao, nao pode dar a si mesmo a propria representacao: toda 'natureza' do homem se relaciona ao fato de nao haver nada de natural; nao ha saida para o homem que nao seja pela via de uma submissao, que tende a ser apagada pela formulacao 'lider de si mesmo'.

Nao ha alternativa a entrada no simbolico. Isso equivaleria a esperar que se deixassemos uma crianca com 'nada', espontaneamente a inscricao na linguagem se faria. Ao contrario disso, a linguagem deve ser transmitida, deve vir de um Outro lugar, de um ou de alguns outros. Isso quer dizer que o sujeito renuncia o objeto e passa a habitar um mundo que e mediatizado pelas palavras. Aqui, linguagem e interdicao sao a mesma coisa. O interdito desde entao se relaciona a um impossivel: o da coincidencia entre palavras e coisas.

Liberte-se

Que liberdade poderia haver em obedecer ao imperativo de libertar-se? De certa maneira, para que seja obedecida, a indicacao deve paradoxalmente ser desobedecida. Se tomarmos o enunciado a partir de seu funcionamento sintatico, poderiamos nos referir a duas posicoes distintas--sujeito e objeto.

Podemos, ao mesmo tempo, considerar que o principio de identidade (A = A) somente esteja presente no nivel imaginario. Isso porque, segundo Ivan Correa (2011), falar que em 'A = A' tratar-se-ia sempre do mesmo 'A' nao estaria correto, uma vez que o segundo 'A' ja nao e mais identico ao primeiro, pois aparece em uma posicao diferente na equacao.

Igualmente, pensando na oracao e no funcionamento discursivo que a sintaxe implica, nao podemos considerar que sujeito e objeto sejam identicos ja a partir da posicao que ocupam na oracao. Se o efeito de sentido que causa 'Liberte-se' tende a identificar o sujeito ao objeto, estamos diante de um funcionamento analogo ao que vimos quando tratamos, no item anterior, do panoptico no espelho. O modelo disciplinar (a despeito dos deslizamentos de sentido que libertar poderia promover) encontra uma sofisticacao na medida em que se pulveriza e se identifica com o sujeito, que deve exercer tanto o papel ativo quanto passivo de sua realizacao.

A ciencia da felicidade

Conforme adiantamos acima, o discurso cientifico se apresenta como uma das bases que produzem a legitimidade do discurso de livros de autoajuda. O discurso cientifico se caracteriza por apagar a diferenca, que somente poderia ser explicada ao reduzi-la a algo da ordem do identico, ao repetivel, ja que a ciencia se apoia na identidade. Todos os seus procedimentos somente sao garantidos se puderem ser replicados em condicoes (variaveis) identicas. Ao estabelecer esse criterio de identidade, nos desvencilhamos precisamente da singularidade, que se configura como uma ruptura desse continuo entre particular e universal. Singularidade, portanto, que aparece marcada por uma falha, um furo. O singular do sujeito e aquilo que nao pode equivaler a tipo de conhecimento algum.

A unidade imaginaria do sujeito se diferencia da singularidade e deve ser compreendida a partir da dissimulacao da constituicao dupla do sujeito: "[...]um 'mesmo' sujeito e, efetivamente, 'outro'" (Courtine & Haroche, 1988, p. 38, grifos dos autores). Isso significa que, a partir de determinados processos historicos relacionados a producao do conhecimento cientifico e do discurso que o materializa, se cria tambem uma interioridade (individual) que a ciencia se propoe a conhecer e decifrar. Tenta-se, a partir de entao, descrever e explicar essa interioridade do sujeito (psicologico) por meio de indicios de sua expressao. A interioridade em si pode ser considerada um efeito de sentido referencial proprio as ciencias psicologicas e ao discurso que as acompanha.

Courtine e Haroche (1988) apontam ainda para as reflexoes politicas modernas que partem desse pressuposto da interioridade decifravel, apoiados na 'identidade' do sujeito como algo passivel de conhecimento (ou reconhecimento). Segundo os autores,

[...] e assim que o homem moderno se afastou de si mesmo, podendo apenas assegurar-se do conhecimento de um eu intimo, atraves da introspeccao do olhar distante dos saberes exteriores especializados (Courtine & Haroche, 1988, p. 45).

Sao esses saberes especializados que podem descrever o sujeito, enredar narrativas sobre si e promover procedimentos de conduta a serem seguidas. O discurso da ciencia, ou seu semblante, aparece entao no discurso de livro de autoajuda como um saber que legitima a producao de sentido que pode ser observada nos titulos A ciencia da felicidade, A ciencia de ficar rico, Expert em seducao. O efeito de sentido produzido pelo uso da palavra ciencia e expert, nesses recortes, aponta para a possibilidade de, assim como acontece na ciencia, tornar-se possivel a apresentacao de um 'metodo' que leva necessariamente a um 'resultado', levando novamente aquilo que se encontra no campo das possibilidades para o campo das necessidades, o campo daquilo que 'nao poderia acontecer de outra maneira'.

Reinventar-se

Como efeito, podemos pensar que as conquistas do homem (o desenvolvimento tecnico e cientifico) fariam que o lugar de Deus se esvaziasse e pudesse ser 'reocupado' pelo proprio homem. Isso quer dizer que nao se trataria tanto da ideia de que 'Deus esta morto' quando daquela segundo a qual os deuses estao corporificados no proprio homem. A ideia de um 'deus protetico' (Freud, [1930] 2011), que se torna possivel a partir dos avancos cientificos e dos gadgets que dao ao homem a possibilidade de experimentar mais do que a sua experiencia humana poderia permitir (a internet, por exemplo, permite que uma pessoa esteja em contato com diferentes pessoas ao redor do mundo, ou que saiba de acontecimentos em tempo real), estaria presente em discursos que produzem sentidos sobre as possibilidades de reinvencao do proprio homem. Todos produzem conteudos para si. No cerne da revolucao tecnologica, encontramos a ideia de controle e governanca como fundadoras de praticas que prescindiriam de uma hierarquia ou de um programa previamente estabelecido. Os fluxos e movimentos sao constantes e permitiriam que sentidos presentes nas diversas narrativas sobre si (incluidos ai toda a logica atual do fake) sejam multiplos.

Alem disso, diante da vacancia imaginaria do lugar da autoridade, existiria uma consequencia relacionada a propria producao de conhecimento, uma especie de "[...] liquidacao coletiva da transferencia" (de saber) (Melman, 2003, p. 17), ou seja, ante a ausencia de uma referencia que sustente o saber, encontramos um mundo povoado por 'gestoes' que chegam ate o sujeito de maneira simplificada, sob as vestes de metodos e procedimentos com 'tecnicas de comunicacao' ou 'gestos que ajudam a conquistar'. Em lugar de uma moral com codigos de conduta rigidos como nas sociedades tradicionais, encontramos dicas, conselhos, tecnicas etc.

Podemos articular as 'tecnicas de comunicacao', por exemplo, a uma das tres fontes do mal-estar apontadas por Freud, que e a da relacao entre os homens (ao lado da decadencia do corpo e das forcas da natureza) se consideramos os protocolos de relacionamento como uma das maneiras de tentar se esquivar dessa fonte de mal-estar. Freud ([1930] 2011) demonstra a maneira como isso se enuncia ao resgatar o mandamento 'amar ao proximo como a ti mesmo', que, pelo simples fato de ser um mandamento, deixa claro o carater artificial de tal empreitada. E preciso que ao menos um mandamento se enuncie dando pistas ao sujeito, definitivamente apartado do instinto, sobre como 'ser' e 'estar' no mundo.

De acordo com Aleman (2011, p. 19, grifos do autor, traducao nossa),
   [...] a barreira simbolica que o constitui [o sujeito], o
   separa da pulsao, mas por sua vez estabelece uma
   doacao de um mais de satisfacao pulsional que se
   associa a uma serie de 'mandatos', 'ditos oraculares e
   primeiros', 'imperativos', que sem representar o
   sujeito exaustivamente, determinam seu lugar (4).


A logica dos mandamentos biblicos com sua listagem, prescricao e uso de verbos no infinitivo se encontra massivamente presente em livros de autoajuda e, vale ainda destacar que, nao so o proprio eu e regulado/ajustado por meio desses procedimentos e gestoes, como o 'outro' e apreendido ai como objeto maleavel, como podemos observar, por exemplo, no titulo Transforme seu marido ate sexta. O pronome possesivo aqui nao indica um marido, mas, sim, todo e qualquer marido, ja que, por meio da reducao 'cientifica' a qual os discursos de livro de autoajuda apelam e da generalizacao, esse discurso propoe respostas ao malestar anunciado ja no proprio titulo.

Como fazer amigos e influenciar pessoas

O funcionamento que permite a formulacao de uma questao/problema e a sua resolucao em um mesmo enunciado se encontra em uma serie de titulos cuja repeticao sintatica pode ser representada pela estrutura: adverbio 'Como' + verbo no infinitivo. Como em: 'Como lidar com pessoas dificeis'; 'Como fazer alguem se apaixonar por voce em ate 90 minutos'; 'Como conquistar as pessoas'; 'Como fazer amigos e influenciar pessoas'; 'Como lidar com pessoas que te deixam louco'.

O outro/semelhante ('alguem', 'amigos', 'pessoas') aparece aqui como objeto passivel de controle por parte do sujeito, como uma variavel cientifica qualquer, fazendo que as caracteristicas de replicabilidade se estendam as relacoes entre os homens. O 'eu' e o 'outro' ai funcionam como variaveis manipulaveis do modelo cientifico.

Como observam Tfouni e Tfouni (2014, p. 120), encontramos nesses titulos
   [...] uma tentativa de apagamento da subjetividade e
   das crencas e valores pessoais, o que impede outras
   interpretacoes possiveis, produzindo um efeito de
   transparencia do sentido, e colocando forcadamente
   o sujeito em uma posicao determinada com relacao a
   ideologia e a interpretacao. Do mesmo modo, essas
   formulas genericas discursivas apagam as diferencas
   entre classes, na medida em que postulam um
   sujeito universal e uma sociedade onde todos seriam
   iguais e teriam o mesmo direito a felicidade--ao
   mesmo tempo em que atribuem uma credibilidade
   indiscutivel a quem (pessoa, empresa, grupo,
   instituicao) os obedece.


Podemos pensar a partir desse ponto, e ainda considerando o entrelacamento entre discurso cientifico e discurso capitalista (ligado ao consumo) presente em discursos de livros de autoajuda, nas satisfacoes oferecidas pelos produtos do mercado (gadget) que tem uma vida util curta, um objeto de consumo curto e rapido ('ate sexta'). O imperativo de consumo, uma das exegeses contemporaneas, faz que o sujeito modelo de nossos tempos seja o sujeito-consumidor. Assim, o que se promove e a relacao do homem com esse gadget (e nao com outro homem), estimulando a ilusao de completude. E aqui a puncao (<>), descrita por Lacan (1966-1967) como disjuncao (^) e juncao (V) ao mesmo tempo, entre sujeito e objeto, continua exercendo uma funcao paradoxal de reunir e separar o sujeito do objeto que poderia vir a completa-lo. No entanto, o que se oferece como objeto de consumo sao personalidades, funcionamentos psiquicos, papeis, formas de vida, maneiras de se relacionar etc.

O ideal (inatingivel) de felicidade e satisfacao condensa em si os elementos que caracterizam uma construcao de uma subjetividade marcada, por um lado, pelo imperativo de harmonia autorizado pelo discurso capitalista e pelo discurso da ciencia (da Psicologia e da medicalizacao) e, por outro lado, pela propria constituicao do sujeito que preve um lugar privilegiado ao ideal por meio de mecanismos como o da orientacao em direcao ao Eu ideal.

E justamente por conta desse processo que nunca chega ao seu termino que poderiamos considerar que a paradoxal constituicao do sujeito, pautada, por um lado, pela necessidade da renuncia ao estado primitivo de completude e gozo absoluto e, por outro, pela orientacao ao Ideal, se configura como um lugar privilegiado para a ancoracao de tal producao discursiva. Dai, por exemplo, a formulacao de um titulo como: Um dia alguem vai supera-lo e que esse alguem seja voce mesmo. Aqui, novamente, a cisao do sujeito com ele mesmo funciona, produzindo sentidos que apontam, por um lado, para um imperativo de completude e realizacao e, por outro, para o projeto fracassado de uma identificacao ao ideal do eu.

E por isso que podemos considerar a subjetividade (um efeito de sentido) produzida pelo discurso de livros de autoajuda como aquela pautada por uma 'falta-a-ser-feliz', falta essa cuja extincao e reiteradamente prometida e garantida pela ciencia e seus procedimentos bem-sucedidos.

Consideracoes finais

Tfouni (2014, p. 29) observa, a respeito dos genericos discursivos (como e o caso dos titulos aqui apresentados), que
   A eficacia das formulas genericas esta no fato de que
   --por condensarem os valores, julgamentos,
   opinioes, enfim, um imaginario social dominante e
   determinante de certas posicoes de sujeito--criam
   sitios de significacao, ou lugares do interdiscurso (da
   memoria do dizer) que irao produzir uma ilusao de
   que na sociedade nao existem conflitos nem
   contradicoes e que ha uma comunhao universal de
   ideias, o que ajuda a manutencao do status quo.


Lacan destaca que as 'ondas estaveis' (eu, ideal do eu, supereu) das quais se ocupa Freud, constantemente presentes em sua obra e que podemos considerar estarem no centro das producoes discursivas dos livros de autoajuda, nao devem ser retomadas de maneira a serem consagradas, mas, sim, para que possamos entender como servem de obstaculo ao sujeito e ao projeto de leva-lo aonde a Psicanalise pretende leva-lo, a saber, a seu desejo (Lacan, [1969-1970] 1992).

Se o projeto totalitario de felicidade para todos carrega em si os germes do seu fracasso, e preciso recorrer a um outro projeto possivel. Um que nao se trate de uma proposta universalizante, mas de um projeto que leve em conta as singularidades e que, por consequencia, aposte na contingencia.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i4.27856

Referencias

Aleman, J. (2011) Para una izquierda lacaniana: intervenciones y textos. Buenos Aires, AR: Grama Ediciones.

Althusser, L. (1980) Ideologia e aparelhos ideologicos do Estado. Lisboa, PT: Presenca.

Chiaretti, P. (2013) Subjetividade em discursos de livros de autoajuda (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto, Universidade de Sao Paulo, Ribeirao Preto.

Correa, I. (2011) A Psicanalise e seus paradoxos: seminarios clinicos. Recife, PE: Centro de Estudos Freudianos do Recife.

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Received on May 18, 2015.

Accepted on October 22, 2015.

Paula Chiaretti [1] * e Leda Verdiani Tfouni [2]

[1] Programa de Pos-graduacao em Ciencias da Linguagem, Universidade do Vale do Sapucai, Av. Prefeito Tuany Toledo, 470, 37550-000, Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil. [2] Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto, Universidade de Sao Paulo, Ribeirao Preto, Sao Paulo, Brasil. * Autor para correspondencia. E-mail: chiaretti.paula@gmail.com

(1) No original: "[...] ce qui fait tenir des sujets [...] ensemble".

(2) No original: "[...] aussi bien a sa structure (marche et societe de consommation) qu'au type de savoir valorise (la techno-science) ou disqualifie (ontologies) et aux idelogies qui en decoulent (scientisme)".

(3) Titulos de livros de autoajuda serao utilizados neste trabalho como titulos de secoes.

(4) No original: "La barrera simbolica que lo constuye, lo separa de la pulsion, pero a la vez establece una donacion de un plus de satisfaccion pulsional que se associa a una serie de 'mandatos', 'dichos oraculares y primeros', 'imperativos', que sin representar al sujeto exaustivamente, determinan su lugar".
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