Discaourses of self-help books and subjectivities prets-a-porter/Discursos de livros de autoajuda e subjetividades prets-a-porter.
Chiaretti, Paula ; Tfouni, Leda Verdiani
Discaourses of self-help books and subjectivities prets-a-porter/Discursos de livros de autoajuda e subjetividades prets-a-porter.
Introducao
Uma das consequencias que podemos tirar do aforismo lacaniano
'o inconsciente e articulado como uma linguagem' e a
solidariedade entre as dimensoes singular e social. Isto porque, segundo
Sauret (2009), para que os sujeitos se facam entender minimamente,
torna-se necessario que emprestem significantes de um mesmo Outro
simbolico. Enquanto a singularidade e entendida como aquilo que prove
uma unicidade ao sujeito, ao mesmo tempo em que o faz irredutivel a
qualquer outro, o social e entendido como "[...] aquilo que mantem
os sujeitos [...] juntos" (Sauret, 2009, p. 31, traducao nossa)
(1).
Apoiado nessa determinacao (ao menos parcial) do sujeito por esse
Outro simbolico em certa medida compartilhado, este trabalho busca
compreender as implicacoes que as transformacoes no laco social teriam
nas producoes discursivas. De acordo com Sauret (2009, p. 13, traducao
nossa), essas modificacoes do laco social estao relacionadas
[...] tanto a sua estrutura (mercado e sociedade de consumo),
quanto ao tipo de saber valorizado (a tecnociencia) ou desqualificado
(ontologias) e as ideologias que resultam disso (cientificismo) (2).
A fim de compreender alguns aspectos das modificacoes do laco
social, sera retomada a obra freudiana de 1930, O mal-estar na
civilizacao (Freud, [1930] 2011), para que, em seguida, observemos
alguns titulos de livros de autoajuda, considerados aqui materiais
discursivos privilegiados de analise dessas modificacoes e suas
implicacoes na promocao de uma certa subjetividade na atualidade, ja que
propoem, de maneira incisiva, modos de ser e estar no mundo, conforme
sera observado nas analises.
Freud, em 1930, coloca o mal-estar como um dos efeitos da entrada
do individuo na sociedade e a busca pela felicidade como finalidade e
intencao reveladas pela forma como os homens conduzem suas vidas. Para
Freud, os homens pedem isto da vida: "[...] eles buscam a
felicidade, querem se tornar e permanecer felizes" (Freud, [1930]
2011, p. 19). No entanto, muitos obstaculos se interpunham a esse fim.
Nesse momento, essa busca se caracteriza por duas metas: uma
positiva, relacionada a busca pelo prazer, e uma negativa, que se
relaciona a evitacao do desprazer.
Ao contrario do que Freud supunha nesse momento da sua obra,
liberar o sujeito da forte repressao sexual ('liberdade' que
pode ser observada a partir da decada de 60) nao o livrou de todo tipo
de mal-estar. Na realidade, observa-se, nos dias de hoje, a mais alta
incidencia diagnostica de depressao, um quadro diagnostico que tem se
delineado nos ultimos anos e que se diferencia daqueles quadros que
apontavam para o mal-estar na epoca em que Freud elabora sua teoria
psicanalitica: a histeria, por exemplo. Podemos considerar, no entanto,
que alguns fatores contribuem para o aumento de indice: os atuais
dispositivos diagnosticos da Psiquiatria que, ao ampliar os criterios
diagnosticos de depressao, incluindo, por exemplo, o luto, aumentam os
quadros clinicos que sao nomeados (diagnosticados) como depressivos; o
aumento da oferta de e da procura por servicos ligados a saude mental,
decorrente da propria formacao de campos profissionais e do
desenvolvimento de disciplinas especificas, como a Psicologia; dentre
outros.
Assim, podemos considerar que se, por um lado, a ciencia se produz
no sentido de minimizar um dado mal-estar, por outro lado, e
paradoxalmente, novos sintomas sao produzidos na medida em que o
conhecimento cientifico se formula em texto propondo praticas de conduta
especificas, como a medicalizacao ou as tecnicas terapeuticas, por
exemplo.
Em certo sentido, o que se observa na producao discursiva de livros
de autoajuda indica a incidencia da resolucao ao mal-estar proposta pela
ciencia (e, como veremos mais adiante, pelo mercado): ao homem, teria se
tornado possivel obter a satisfacao que lhe foi anteriormente negada ja
que atualmente existiriam os recursos necessarios para tanto.
Justamente por conta da 'novidade' dessa suposta
satisfacao que se encontraria ao alcance de todos (sendo aqui o 'ao
alcance de todos' um efeito de sentido reforcado, por sua vez, pela
configuracao de uma sociedade supostamente 'plenamente democratica
e meritocrata'), podemos considerar que, se, num primeiro momento
(aquele descrito na obra freudiana citada), a sociedade se organizava
inscrevendo os sujeitos em uma logica organizada a partir de uma
economia do recalque; o que se observa, na atualidade, seria uma
organizacao que incita ao gozo que escapa a metaforizacao e que, a
partir dessa 'nova economia subjetiva', novos e diferentes
sintomas se produziriam. Compreendendo esse modo de subjetivacao como
lugares previstos para inscricao de sujeito e sentido, passamos aos
titulos dos livros de autoajuda que tomamos neste trabalho como indices
de certo funcionamento discursivo que aponta para esse lugar de
completude e de plena satisfacao possiveis.
Desejo, logo realizo (3)
A partir do titulo do livro de autoajuda acima, podemos retomar as
modificacoes no laco social que implicam nao mais um mandamento de
renuncia a satisfacao, como observa Freud em 1930, mas justamente o seu
contrario: os avancos cientificos aliados as novas praticas de consumo
(que propoem novas maneiras de inscrever socialmente o sujeito)
assegurariam a completude a todos, nos moldes mercadologicos da
'satisfacao garantida ou o seu dinheiro de volta'. Por
substituir uma 'moral' anterior na qual eram esperados, do
sujeito, sacrificios em prol de um bem maior ou coletivo, Melman (2003,
p. 60) trata essa configuracao social e subjetiva como 'nova
moral', "[...] na qual cada um tem o direito de satisfazer o
seu gozo, sejam quais forem suas modalidades".
E nesse contexto que podemos observar, hoje, uma volumosa producao
discursiva que nao somente preve a possibilidade de que a finalidade (de
ser e permanecer feliz) se realize, como a impoe como necessaria. E o
que observamos em livros de autoajuda que, por meio de um discurso
prescritivo, elaboram um projeto de felicidade para um 'voce':
'E simples: 'voce' pode recriar a sua vida',
'Viva como 'voce' quer viver'. O 'voce'
aqui aponta para um lugar vago facilmente ocupado por qualquer um ou
todos, indiciando um funcionamento discursivo que provoca uma passagem
do um ao todos e uma permutacao entre o 'particular' e o
'universal'.
Assim, podemos observar como esse discurso forja um sujeito
universal, ou uma dada subjetividade, que aponta simultaneamente para a
negacao do abandono do principio do prazer, proposto por Freud ([1911]
2010) como um dos moduladores da constituicao do individuo e para uma
demanda atual e social de gozo.
'Desejo, logo realizo', ao retomar e reformular a citacao
cartesiana (Cogito ergo sum, 'penso, logo sou') que indica as
coordenadas de uma certa subjetividade, atualiza os sentidos, desfazendo
a referencia ao pensamento e ao ser e propondo uma nova referencia: ao
'desejo' e a 'realizacao'. Assim, essa substituicao
significante no recorte discursivo nos fornece as pistas sobre essa
configuracao social e subjetiva que privilegia as demandas (de gozo)
como as coordenadas simbolicas a partir das quais sujeito e sentido se
constituem.
A partir da retomada de certas condicoes de producao desse
enunciado ligadas ao consumo, como nos referimos antes, podemos
considerar o 'desejo' ai nao do ponto de vista da psicanalise,
como falta, mas, sim, a partir da propria logica de consumo, como
'mais-de-gozar', maneiras de suplantar o desejo por meio da
completude que em nada diz respeito do sujeito (para a psicanalise,
sempre desejante).
Tambem a 'realizacao' se encontra entre os significantes
privilegiados pela logica presente nos atuais moldes do capitalismo, na
medida em que convoca o sujeito a ocupar uma funcao (pro)ativa que
fusiona os sentidos do que seriam os objetivos e as metas particulares e
sociais. De modo algum, essa realizacao estaria relacionada ao principio
do prazer sobre o qual Freud ([1930] 2011, p. 28) escreve:
O programa de ser feliz, que nos e imposto pelo
principio do prazer, e irrealizavel, mas nao nos e
permitido--ou melhor, nao somos capazes de--abandonar
os esforcos para de alguma maneira
tornar menos distante a sua realizacao.
Podemos entender o programa de felicidade e realizacao
propagandeado pelo discurso de livros de autoajuda nao como um programa
similar ao do principio do prazer, que nao tem como finalidade a
manutencao de um estado social mais ou menos coeso, mas como um programa
de felicidade que, pautado mais pela 'seguranca' e
'harmonia social', serve a fins de administracao
politico-social.
Podemos considerar, entao, essa producao discursiva um sintoma
contemporaneo (Chiaretti, 2013), na medida em que se apresenta como uma
'solucao de compromisso' entre a injuncao ao gozo (das
sociedades democraticas e economicamente livres) e a impossibilidade
(estrutural) de completude. Ainda que essa completude seja impossivel,
ela pode ser propagandeada.
Mais que um catalogo (nao muito variado) de solucoes, observamos
que o discurso de livros de autoajuda disponibilizariam sintomas
prets-a-porter, cujo carater massivo pode ser relacionado as condicoes
simbolicas e materiais de sua producao, referidas em grande medida ao
discurso capitalista e ao discurso da ciencia. Assim, os sintomas sao
considerados prets-a-porter por se encontrarem disponiveis no mercado,
prontos para o consumo. Usualmente, eles tratam de algum
'impossivel' por meio da 'necessidade', relancando o
sujeito nao ao que e proprio do desejo, mas a reformulacao da
possibilidade de completude por meio do acesso a um artificio.
Dizemos artificio porque, sendo a falta estrutural e a completude
impossivel, resta ao sujeito desejante a falta, que pode funcionar no
sentido de movimenta-lo e/ou se virar com aqueles objetos que podem
fazer as vezes do objeto que satisfaria o desejo, sem que, no entanto,
isso se realize de fato (o que levaria ao aniquilamento do sujeito,
caracterizado pela falta), pois o desejo e sempre insatisfeito. Sempre
insatisfeito porque o objeto que poderia completar o sujeito e desde
sempre o objeto perdido. Isso nao quer dizer que o sujeito nao busque
(incessantemente) essa completude e que os discursos de livros de
autoajuda nao se beneficiem dessa busca na medida em que (re)apresentam
ao sujeito sempre essa possibilidade de 'realizacao'. Outros
titulos de livros de autoajuda formulam enunciados que funcionam nessa
mesma direcao: 'Realize seus desejos' e 'As dez leis da
realizacao'.
E pela maneira como esse tipo de discurso (considerado aqui em
certa medida representativo dos discursos atuais, ao lado do
publicitario, por exemplo) denega reiteradamente a falta (e,
consequentemente, o desejo) que podemos aproxima-lo da consideracao,
feita por muitos teoricos, do momento atual como uma especie de
perversao generalizada. Nao porque estejamos diante de uma sociedade
composta por perversos, mas porque os lacos que se estabelecem--bem como
os discursos que circulam--privilegiam certos funcionamentos que
escamoteiam a falta, promovendo as supostas possibilidades de
completude.
Essas possibilidades, nesses discursos, estao relacionadas ao
proprio 'sujeito', aquilo que ele pode promover por si mesmo.
O sujeito aqui e compreendido como autoengendrado e autogerivel. Dai
afirmacoes como "[...] 'todos' nascemos com um potencial
infinito de 'realizacao'" (Shinyashiki, 2012, p. 30,
grifos nossos), presentes em livros de autoajuda. E a si mesmo que esse
sujeito responde.
Seja lider de si mesmo
Dufour (2005) propoe que a pos-modernidade nao teria mais as mesmas
figuras apresentaveis de Sujeito a propor. Ao contrario do periodo
anterior no qual encontrariamos uma distancia entre o sujeito e aquele
que funda (Deus, a Nacao etc.), na atualidade, essa distancia teria sido
superada:
A pos-modernidade, democratica, com efeito correspondente a epoca
em que nos pusemos a definir o sujeito nao mais por sua dependencia e
sua submissao ao grande Sujeito, mas por sua autonomia juridica, por sua
total liberdade economica, e em que nos pusemos a dar do sujeito falante
uma definicao de 'autorreferencial': o novo sujeito nao e mais
o sujeito de Deus, do Rei ou sujeito a Republica, mas sujeito dele mesmo
(Dufour, 2005, p. 71, grifo do autor).
Para Lebrun (2010), se antes, no modelo religioso transcendente, o
ponto fixo, que e Deus, que reconhece a humanidade, se encontrava no
exterior (exogeno), atualmente, na sociedade organizada a partir do
paradigma cientifico, esse ponto e identificado como interior
(endogeno). No entanto, ciente dos modos de constituicao do sujeito a
partir de processos ideologicos e inconscientes, devemos entender esse
interior como uma exterioridade interna, paradoxo que Althusser (1980)
ja aponta sobre a ideologia como om"i-historica.
E a posicao de total autonomia e sua contraditoria submissao ao
simbolico que o titulo de livro de autoajuda Seja lider de si mesmo
retoma. A autonomia como artificio e efeito de sentido do processo de
constituicao de sujeito aparece aqui no furo que o paradoxo no enunciado
causa, descentrando o sujeito-centro-sentido, obrigando-o a ocupar um
lugar de autoridade unica a qual deve se submeter.
Vale retomar, a partir do campo teorico da Analise de Discurso, que
os efeitos de sujeito e de sentido dissimulam justamente o processo de
sua constituicao. O apagamento desse processo possibilita a tomada do
sujeito como causa de si, um efeito paradoxal que Pecheux ([1975] 2009,
p. 144) ilustra a partir da historia do Barao de Munchhausen que
"[...] se elevava nos ares puxando-se pelos proprios cabelos".
A autonomia, como efeito ideologico elementar, e produzida pela
interpelacao.
Podemos ainda pensar a questao a partir do modelo do panoptico
proposto por Foucault (1977), fazendo os ajustes que as condicoes atuais
de producao desse discurso nos obrigam nesse dispositivo de vigilancia.
Esse dispositivo foi descrito como um paradigma a positividade do
individuo, que passa a ser tomado pelas ciencias humanas modernas como
observavel e portador de caracteristicas discerniveis. Logo, esse
procedimento cientifico de producao de 'saber' ira se
relacionar com o 'poder', na medida em que cercar e
discretizar individuos favorecem o seu 'exercicio de
controle', ja que o estado permanente de visibilidade permitiria ao
poder se exercer automaticamente. Reencontramos a incidencia do modelo
de vigilancia nesses discursos de livros de autoajuda, mas, dado o
carater autorreferencial, o exercicio da vigilancia seria exercido pelo
proprio objeto de vigilancia.
Enquanto o panoptico e uma maquina de dissociar o par ver e ser
visto, os livros de autoajuda articulam essas duas funcoes, fazendo da
subjetividade, encarnada no leitor, objeto e sujeito da vigilancia. E
isso que nos levou a pensar em um 'panoptico no espelho': nao
se trata mais de um outro que observa atentamente o sujeito, mas, sim, o
proprio sujeito passa a se observar como um objeto. A subjetividade,
nesse caso, e o objeto e mesmo um produto.
No entanto, ao lado do 'reconhecimento' (processo
relacionado a identidade, a uma certa positividade e constituicao de
sentidos sobre si), podemos observar um 'desconhecimento',
pois e preciso que, ao mesmo tempo em que o sujeito se submeta ao campo
do Outro, que essa submissao seja dissimulada para si mesmo, de forma
que ele possa falar 'por si', ou como formula Althusser
(1980): 'andar sozinho'.
Trata-se da propria construcao de uma 'interioridade'
sobre a qual incide uma 'exterioridade' (ambas forjadas a
posteriori). Talvez essa confusao propria de um processo, cuja descricao
cronologica nao e suficiente, permita que seja ignorado o paradoxo da
expressao 'livros' (alteridade) 'de autoajuda'
(identidade). Como poderiamos falar em autoajuda quando estamos diante
de um outro que nos informa sobre os procedimentos a serem tomados?
Podemos ainda pensar sobre esse enunciado, 'Seja lider de si
mesmo', a partir da formulacao althusseriana de que nao ha exterior
a ideologia, a ideologia e o exterior. Ha dominacao/submissao porque o
sujeito, na sua constituicao, nao pode dar a si mesmo a propria
representacao: toda 'natureza' do homem se relaciona ao fato
de nao haver nada de natural; nao ha saida para o homem que nao seja
pela via de uma submissao, que tende a ser apagada pela formulacao
'lider de si mesmo'.
Nao ha alternativa a entrada no simbolico. Isso equivaleria a
esperar que se deixassemos uma crianca com 'nada',
espontaneamente a inscricao na linguagem se faria. Ao contrario disso, a
linguagem deve ser transmitida, deve vir de um Outro lugar, de um ou de
alguns outros. Isso quer dizer que o sujeito renuncia o objeto e passa a
habitar um mundo que e mediatizado pelas palavras. Aqui, linguagem e
interdicao sao a mesma coisa. O interdito desde entao se relaciona a um
impossivel: o da coincidencia entre palavras e coisas.
Liberte-se
Que liberdade poderia haver em obedecer ao imperativo de
libertar-se? De certa maneira, para que seja obedecida, a indicacao deve
paradoxalmente ser desobedecida. Se tomarmos o enunciado a partir de seu
funcionamento sintatico, poderiamos nos referir a duas posicoes
distintas--sujeito e objeto.
Podemos, ao mesmo tempo, considerar que o principio de identidade
(A = A) somente esteja presente no nivel imaginario. Isso porque,
segundo Ivan Correa (2011), falar que em 'A = A' tratar-se-ia
sempre do mesmo 'A' nao estaria correto, uma vez que o segundo
'A' ja nao e mais identico ao primeiro, pois aparece em uma
posicao diferente na equacao.
Igualmente, pensando na oracao e no funcionamento discursivo que a
sintaxe implica, nao podemos considerar que sujeito e objeto sejam
identicos ja a partir da posicao que ocupam na oracao. Se o efeito de
sentido que causa 'Liberte-se' tende a identificar o sujeito
ao objeto, estamos diante de um funcionamento analogo ao que vimos
quando tratamos, no item anterior, do panoptico no espelho. O modelo
disciplinar (a despeito dos deslizamentos de sentido que libertar
poderia promover) encontra uma sofisticacao na medida em que se
pulveriza e se identifica com o sujeito, que deve exercer tanto o papel
ativo quanto passivo de sua realizacao.
A ciencia da felicidade
Conforme adiantamos acima, o discurso cientifico se apresenta como
uma das bases que produzem a legitimidade do discurso de livros de
autoajuda. O discurso cientifico se caracteriza por apagar a diferenca,
que somente poderia ser explicada ao reduzi-la a algo da ordem do
identico, ao repetivel, ja que a ciencia se apoia na identidade. Todos
os seus procedimentos somente sao garantidos se puderem ser replicados
em condicoes (variaveis) identicas. Ao estabelecer esse criterio de
identidade, nos desvencilhamos precisamente da singularidade, que se
configura como uma ruptura desse continuo entre particular e universal.
Singularidade, portanto, que aparece marcada por uma falha, um furo. O
singular do sujeito e aquilo que nao pode equivaler a tipo de
conhecimento algum.
A unidade imaginaria do sujeito se diferencia da singularidade e
deve ser compreendida a partir da dissimulacao da constituicao dupla do
sujeito: "[...]um 'mesmo' sujeito e, efetivamente,
'outro'" (Courtine & Haroche, 1988, p. 38, grifos dos
autores). Isso significa que, a partir de determinados processos
historicos relacionados a producao do conhecimento cientifico e do
discurso que o materializa, se cria tambem uma interioridade
(individual) que a ciencia se propoe a conhecer e decifrar. Tenta-se, a
partir de entao, descrever e explicar essa interioridade do sujeito
(psicologico) por meio de indicios de sua expressao. A interioridade em
si pode ser considerada um efeito de sentido referencial proprio as
ciencias psicologicas e ao discurso que as acompanha.
Courtine e Haroche (1988) apontam ainda para as reflexoes politicas
modernas que partem desse pressuposto da interioridade decifravel,
apoiados na 'identidade' do sujeito como algo passivel de
conhecimento (ou reconhecimento). Segundo os autores,
[...] e assim que o homem moderno se afastou de si mesmo, podendo
apenas assegurar-se do conhecimento de um eu intimo, atraves da
introspeccao do olhar distante dos saberes exteriores especializados
(Courtine & Haroche, 1988, p. 45).
Sao esses saberes especializados que podem descrever o sujeito,
enredar narrativas sobre si e promover procedimentos de conduta a serem
seguidas. O discurso da ciencia, ou seu semblante, aparece entao no
discurso de livro de autoajuda como um saber que legitima a producao de
sentido que pode ser observada nos titulos A ciencia da felicidade, A
ciencia de ficar rico, Expert em seducao. O efeito de sentido produzido
pelo uso da palavra ciencia e expert, nesses recortes, aponta para a
possibilidade de, assim como acontece na ciencia, tornar-se possivel a
apresentacao de um 'metodo' que leva necessariamente a um
'resultado', levando novamente aquilo que se encontra no campo
das possibilidades para o campo das necessidades, o campo daquilo que
'nao poderia acontecer de outra maneira'.
Reinventar-se
Como efeito, podemos pensar que as conquistas do homem (o
desenvolvimento tecnico e cientifico) fariam que o lugar de Deus se
esvaziasse e pudesse ser 'reocupado' pelo proprio homem. Isso
quer dizer que nao se trataria tanto da ideia de que 'Deus esta
morto' quando daquela segundo a qual os deuses estao corporificados
no proprio homem. A ideia de um 'deus protetico' (Freud,
[1930] 2011), que se torna possivel a partir dos avancos cientificos e
dos gadgets que dao ao homem a possibilidade de experimentar mais do que
a sua experiencia humana poderia permitir (a internet, por exemplo,
permite que uma pessoa esteja em contato com diferentes pessoas ao redor
do mundo, ou que saiba de acontecimentos em tempo real), estaria
presente em discursos que produzem sentidos sobre as possibilidades de
reinvencao do proprio homem. Todos produzem conteudos para si. No cerne
da revolucao tecnologica, encontramos a ideia de controle e governanca
como fundadoras de praticas que prescindiriam de uma hierarquia ou de um
programa previamente estabelecido. Os fluxos e movimentos sao constantes
e permitiriam que sentidos presentes nas diversas narrativas sobre si
(incluidos ai toda a logica atual do fake) sejam multiplos.
Alem disso, diante da vacancia imaginaria do lugar da autoridade,
existiria uma consequencia relacionada a propria producao de
conhecimento, uma especie de "[...] liquidacao coletiva da
transferencia" (de saber) (Melman, 2003, p. 17), ou seja, ante a
ausencia de uma referencia que sustente o saber, encontramos um mundo
povoado por 'gestoes' que chegam ate o sujeito de maneira
simplificada, sob as vestes de metodos e procedimentos com
'tecnicas de comunicacao' ou 'gestos que ajudam a
conquistar'. Em lugar de uma moral com codigos de conduta rigidos
como nas sociedades tradicionais, encontramos dicas, conselhos, tecnicas
etc.
Podemos articular as 'tecnicas de comunicacao', por
exemplo, a uma das tres fontes do mal-estar apontadas por Freud, que e a
da relacao entre os homens (ao lado da decadencia do corpo e das forcas
da natureza) se consideramos os protocolos de relacionamento como uma
das maneiras de tentar se esquivar dessa fonte de mal-estar. Freud
([1930] 2011) demonstra a maneira como isso se enuncia ao resgatar o
mandamento 'amar ao proximo como a ti mesmo', que, pelo
simples fato de ser um mandamento, deixa claro o carater artificial de
tal empreitada. E preciso que ao menos um mandamento se enuncie dando
pistas ao sujeito, definitivamente apartado do instinto, sobre como
'ser' e 'estar' no mundo.
De acordo com Aleman (2011, p. 19, grifos do autor, traducao
nossa),
[...] a barreira simbolica que o constitui [o sujeito], o
separa da pulsao, mas por sua vez estabelece uma
doacao de um mais de satisfacao pulsional que se
associa a uma serie de 'mandatos', 'ditos oraculares e
primeiros', 'imperativos', que sem representar o
sujeito exaustivamente, determinam seu lugar (4).
A logica dos mandamentos biblicos com sua listagem, prescricao e
uso de verbos no infinitivo se encontra massivamente presente em livros
de autoajuda e, vale ainda destacar que, nao so o proprio eu e
regulado/ajustado por meio desses procedimentos e gestoes, como o
'outro' e apreendido ai como objeto maleavel, como podemos
observar, por exemplo, no titulo Transforme seu marido ate sexta. O
pronome possesivo aqui nao indica um marido, mas, sim, todo e qualquer
marido, ja que, por meio da reducao 'cientifica' a qual os
discursos de livro de autoajuda apelam e da generalizacao, esse discurso
propoe respostas ao malestar anunciado ja no proprio titulo.
Como fazer amigos e influenciar pessoas
O funcionamento que permite a formulacao de uma questao/problema e
a sua resolucao em um mesmo enunciado se encontra em uma serie de
titulos cuja repeticao sintatica pode ser representada pela estrutura:
adverbio 'Como' + verbo no infinitivo. Como em: 'Como
lidar com pessoas dificeis'; 'Como fazer alguem se apaixonar
por voce em ate 90 minutos'; 'Como conquistar as
pessoas'; 'Como fazer amigos e influenciar pessoas';
'Como lidar com pessoas que te deixam louco'.
O outro/semelhante ('alguem', 'amigos',
'pessoas') aparece aqui como objeto passivel de controle por
parte do sujeito, como uma variavel cientifica qualquer, fazendo que as
caracteristicas de replicabilidade se estendam as relacoes entre os
homens. O 'eu' e o 'outro' ai funcionam como
variaveis manipulaveis do modelo cientifico.
Como observam Tfouni e Tfouni (2014, p. 120), encontramos nesses
titulos
[...] uma tentativa de apagamento da subjetividade e
das crencas e valores pessoais, o que impede outras
interpretacoes possiveis, produzindo um efeito de
transparencia do sentido, e colocando forcadamente
o sujeito em uma posicao determinada com relacao a
ideologia e a interpretacao. Do mesmo modo, essas
formulas genericas discursivas apagam as diferencas
entre classes, na medida em que postulam um
sujeito universal e uma sociedade onde todos seriam
iguais e teriam o mesmo direito a felicidade--ao
mesmo tempo em que atribuem uma credibilidade
indiscutivel a quem (pessoa, empresa, grupo,
instituicao) os obedece.
Podemos pensar a partir desse ponto, e ainda considerando o
entrelacamento entre discurso cientifico e discurso capitalista (ligado
ao consumo) presente em discursos de livros de autoajuda, nas
satisfacoes oferecidas pelos produtos do mercado (gadget) que tem uma
vida util curta, um objeto de consumo curto e rapido ('ate
sexta'). O imperativo de consumo, uma das exegeses contemporaneas,
faz que o sujeito modelo de nossos tempos seja o sujeito-consumidor.
Assim, o que se promove e a relacao do homem com esse gadget (e nao com
outro homem), estimulando a ilusao de completude. E aqui a puncao
(<>), descrita por Lacan (1966-1967) como disjuncao (^) e juncao
(V) ao mesmo tempo, entre sujeito e objeto, continua exercendo uma
funcao paradoxal de reunir e separar o sujeito do objeto que poderia vir
a completa-lo. No entanto, o que se oferece como objeto de consumo sao
personalidades, funcionamentos psiquicos, papeis, formas de vida,
maneiras de se relacionar etc.
O ideal (inatingivel) de felicidade e satisfacao condensa em si os
elementos que caracterizam uma construcao de uma subjetividade marcada,
por um lado, pelo imperativo de harmonia autorizado pelo discurso
capitalista e pelo discurso da ciencia (da Psicologia e da
medicalizacao) e, por outro lado, pela propria constituicao do sujeito
que preve um lugar privilegiado ao ideal por meio de mecanismos como o
da orientacao em direcao ao Eu ideal.
E justamente por conta desse processo que nunca chega ao seu
termino que poderiamos considerar que a paradoxal constituicao do
sujeito, pautada, por um lado, pela necessidade da renuncia ao estado
primitivo de completude e gozo absoluto e, por outro, pela orientacao ao
Ideal, se configura como um lugar privilegiado para a ancoracao de tal
producao discursiva. Dai, por exemplo, a formulacao de um titulo como:
Um dia alguem vai supera-lo e que esse alguem seja voce mesmo. Aqui,
novamente, a cisao do sujeito com ele mesmo funciona, produzindo
sentidos que apontam, por um lado, para um imperativo de completude e
realizacao e, por outro, para o projeto fracassado de uma identificacao
ao ideal do eu.
E por isso que podemos considerar a subjetividade (um efeito de
sentido) produzida pelo discurso de livros de autoajuda como aquela
pautada por uma 'falta-a-ser-feliz', falta essa cuja extincao
e reiteradamente prometida e garantida pela ciencia e seus procedimentos
bem-sucedidos.
Consideracoes finais
Tfouni (2014, p. 29) observa, a respeito dos genericos discursivos
(como e o caso dos titulos aqui apresentados), que
A eficacia das formulas genericas esta no fato de que
--por condensarem os valores, julgamentos,
opinioes, enfim, um imaginario social dominante e
determinante de certas posicoes de sujeito--criam
sitios de significacao, ou lugares do interdiscurso (da
memoria do dizer) que irao produzir uma ilusao de
que na sociedade nao existem conflitos nem
contradicoes e que ha uma comunhao universal de
ideias, o que ajuda a manutencao do status quo.
Lacan destaca que as 'ondas estaveis' (eu, ideal do eu,
supereu) das quais se ocupa Freud, constantemente presentes em sua obra
e que podemos considerar estarem no centro das producoes discursivas dos
livros de autoajuda, nao devem ser retomadas de maneira a serem
consagradas, mas, sim, para que possamos entender como servem de
obstaculo ao sujeito e ao projeto de leva-lo aonde a Psicanalise
pretende leva-lo, a saber, a seu desejo (Lacan, [1969-1970] 1992).
Se o projeto totalitario de felicidade para todos carrega em si os
germes do seu fracasso, e preciso recorrer a um outro projeto possivel.
Um que nao se trate de uma proposta universalizante, mas de um projeto
que leve em conta as singularidades e que, por consequencia, aposte na
contingencia.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i4.27856
Referencias
Aleman, J. (2011) Para una izquierda lacaniana: intervenciones y
textos. Buenos Aires, AR: Grama Ediciones.
Althusser, L. (1980) Ideologia e aparelhos ideologicos do Estado.
Lisboa, PT: Presenca.
Chiaretti, P. (2013) Subjetividade em discursos de livros de
autoajuda (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras
de Ribeirao Preto, Universidade de Sao Paulo, Ribeirao Preto.
Correa, I. (2011) A Psicanalise e seus paradoxos: seminarios
clinicos. Recife, PE: Centro de Estudos Freudianos do Recife.
Courtine, J.-J.; Haroche, C. (1988). O homem
perscrutado--semiologia e antropologia politica da expressao e da
fisionomia do seculo XX. In S. T. M. Lane (Org.), Sujeito e texto (p.
37-60). Sao Paulo, SP: EDU.
Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir cabecas: sobre a nova
servidao na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de
Freud.
Foucault, M. (1977). Vigiar e punir: o nascimento da prisao.
Petropolis, RJ: Vozes, 1977.
Freud, S. ([1911] 2010). Formulacoes sobre os dois principios do
funcionamento mental. In S. Freud. Observacoes psicanaliticas sobre um
caso de paranoia relatado em autobiografia ('O caso
Schreber'), Artigos sobre tecnica e outros textos (1911-1913) (Vol.
10, p. 108-121, Obras Completas). Sao Paulo, SP: Companhia das Letras.
Freud, S. ([1930] 2011). O mal-estar na civilizacao. Sao Paulo, SP:
Penguin Classics Companhia das Letras.
Lacan, J. (1966-1967). Le seminaire, livre 14: La logique du
fantasme (Seminario Inedito).
Lacan, J. ([1969-1970] 1992). O seminario, livro 17. O avesso da
psicanalise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
Lebrun, J.-P. (2010). A perversao comum: viver junto sem o outro.
Rio de Janeir, RJ: Campo Matemico.
Melman, C. (2003) Novas formas clinicas no inicio do terceiro
milenio. Porto Alegre, RS: CMC.
Pecheux, M. ([1975] 2009) Semantica e discurso: uma critica a
afirmacao do obvio. Campinas, SP: Unicamp.
Sauret, M.-J. (2009). Malaise dans le capitalisme. Toulouse, FR:
Presse Universitaires du Mirail.
Shinyashiki, R. (2012) O sucesso e ser feliz. Sao Paulo, SP:
Editora Gente.
Tfouni, L. V. (2014) Em busca da felicidade, o corpo se consome no
consumo. In M. J. F. Coracini, & A. M. Carmagnani (Org.), Midia,
exclusao e ensino: dilemas e desafios na contemporaneiaaae (p. 25-38).
Campinas, SP: Pontes.
Tfouni, L. V.; Tfouni, F. E. V. (2014) A midia e a fabricacao
do--bom--sujeito. Revista Todas as Letras Mackenzie online, 16(1), p.
116-124.
Received on May 18, 2015.
Accepted on October 22, 2015.
Paula Chiaretti [1] * e Leda Verdiani Tfouni [2]
[1] Programa de Pos-graduacao em Ciencias da Linguagem,
Universidade do Vale do Sapucai, Av. Prefeito Tuany Toledo, 470,
37550-000, Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil. [2] Faculdade de
Filosofia, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto, Universidade de Sao
Paulo, Ribeirao Preto, Sao Paulo, Brasil. * Autor para correspondencia.
E-mail: chiaretti.paula@gmail.com
(1) No original: "[...] ce qui fait tenir des sujets [...]
ensemble".
(2) No original: "[...] aussi bien a sa structure (marche et
societe de consommation) qu'au type de savoir valorise (la
techno-science) ou disqualifie (ontologies) et aux idelogies qui en
decoulent (scientisme)".
(3) Titulos de livros de autoajuda serao utilizados neste trabalho
como titulos de secoes.
(4) No original: "La barrera simbolica que lo constuye, lo
separa de la pulsion, pero a la vez establece una donacion de un plus de
satisfaccion pulsional que se associa a una serie de
'mandatos', 'dichos oraculares y primeros',
'imperativos', que sin representar al sujeto exaustivamente,
determinan su lugar".
COPYRIGHT 2016 Universidade Estadual de Maringa
No portion of this article can be reproduced without the express written permission from the copyright holder.
Copyright 2016 Gale, Cengage Learning. All rights reserved.