Terceiro de uma série dedicada ao estudo da "questão do sangue" sob o ângulo das políticas sociais e do interesse público, o presente artigo aborda alguns temas importantes da literatura internacional. Uma característica perversa do paroquialismo dos debates, no Brasil, entre sanitaristas e hemote-rapeutas, movimentos sociais e aparelhos burocráticos, congressistas e grupos de pressão, é justamente o desconhecimento da literatura internacional. Ao discutir certos temas dessa literatura, procuramos trazer para o debate nacional alguns autores estrangeiros que tratam de aspectos institucionais, organizacionais e técnicos da maior importância para a montagem, operação e correção dos problemas de um sistema hemoterápico. O próprio pioneiris-mo dos trabalhos internacionais é digno de nota. Diferentemente de seus colegas brasileiros, os cientistas sociais europeus e norte-americanos dedicaram-se ao estudo da doação de sangue e da hemoterapia muito antes do aparecimento da Aids. A obra clássica sobre o tema, objeto de especial atenção no presente artigo, é The Gift Relationship, publicada na Inglaterra em 1971. Richard M. Titmuss, seu autor e mestre em estudos de política social na "London School", defende a doação altruísta, não-remunerada, como uma salvaguarda contra a hepatite pós-transfusional e como um instrumento de expansão do comportamento altruísta e dos laços comunitários em qualquer sociedade. O artigo apresenta, igualmente, as críticas ao trabalho de Titmuss que vieram do outro lado do Atlântico, particularmente as de Kenneth Arrow (Harvard) e Harvey Sapolsky (MIT). que defendem, em nome de um ideário neoliberal e de necessidades operacionais consideradas intrínsecas à atividade hemoterápica, a máxima liberdade de opções - inclusive a liberdade de conceder e receber compensação financeira pelo sangue doado e transfundido. Sapolsky, em especial, faz considerações importantes sobre a garantia adicional que painéis de doadores pagos podem representar contra as doenças transfusionais - lembrando não apenas o caso dos EUA como o da Suécia -, por permitirem um cuidadoso acompanhamento médico. O propósito deste artigo, além do exame do quadro internacional que gerou a controvérsia Titmuss versus Arrow e Sapolsky, é tirar lições para o caso brasileiro. De um lado, o Brasil reproduz do cenário norte-americano o exemplo costumeiro da doação e transfusões pagas. Lá, a formação de painéis de doadores pagos e cuidadosamente monitorados vem representando uma defesa adicional contra a contaminação do sangue. Aqui. entretanto, a atividade comercial está, não raro, oculta sob a cortina da atividade filantrópica e, mais freqüentemente, responde pela maior parte dos casos de contaminação do sangue no País. De outro lado, as doações voluntárias que, nos países desenvolvidos, provêm em grande parte das classes média e alta, no Brasil originam-se primordiamente das camadas mais pobres - justamente os grupos de mais baixo padrão nutricional e sanitário, e menos aptos a doar. Além disso, de modo geral a população brasileira doa menos sangue do que, por exemplo, os ingleses. O presente trabalho propõe, assim, uma questão básica: de que modo as discussões sobre os problemas do sangue no Brasil, particularmente a regulamentação da matéria constitucional de 1988, podem se beneficiar das idéias e polêmicas que brotaram em países do Primeiro Mundo? Se o ideário neoliberal de um Sapolsky, por exemplo, não cativar o leitor brasileiro, suas propostas ou programas de ação poderão surpreender pela aplicabilidade. O inverso talvez se dê em relação a Titmuss, cuja força de argumentação reside menos nas propostas de policy (debilitadas pela crítica desferida por Sapolsky) do que em sua generosa defesa de uma ética social redistributiva que, simultaneamente, se beneficie dos laços comunitários e os consolide. Uma política hemoterápica para o Brasil deverá tirar partido dessa profunda tensão entre valores éticos e propostas de ação.
Unlike their fellow Brazilians, social scientists in Europe and North America paid close attention to issues of blood donation and policy many years before the AIDS pandemic. This article is partly an attempt to review such pioneering studies. Among the most important contributions from the social sciences was Richard M. Titmuss's path-breaking study on The Gift Relationship (with the subtitle From Human Blood to Social Policy), published in England in 1971. Based on a 1967 survey of blood donors in England and on comparable data from other developed countries, it is a classic study of moral philosophy and public policy. Through this book, Titmuss became known as a staunch supporter of voluntary, non-paid donations, which, in his view, contributed to decrease the risks of transfusion-related hepatitis, and, most important, helped promote altruistic behavior within the social systems. This paper summarizes Titmuss's ideas and policy proposals, and discusses some authors who, in subsequent years, endorsed both his ideas and policy recommendations. From an opposite battle field (in American soil), the article selects two representative papers by Kenneth Arrow and Harvey Sapolsky, who diligently attempt to criticize Titmuss's views. The authors present a different, neoliberal set of principies in support of a free market for blood and plasma, where paid donations for whole blood and plasma collection must be allowed. Harvey Sapolsky, in particular, argues that the creation of paneis of paid, carefully monitored, blood donors may actually decrease the risks of contamination from hepatitis or AIDS. According to Sapolsky, Titmuss failed to see that the links between voluntary donations and transfusion-related hepatitis are unclear, and that even his 1967 survey data do not suggest the existence of any clear-cut relationship. For this reason, writes Sapolsky, it is also misleading to expect that unpaid donations will protect against AIDS. As the present paper tries to show, Sapolsky's analysis and proposals deserve careful consideration. They seem to represent a perfect case for an old dictum on "the creative power of the erroneous idea." His policy proposals seem perfectly sound, yet his moral philosophy - as much as Arrow's - is less convincing and enticing than Titmuss's. A related purpose of the article is to take some lessons from the international literature. In what ways are the various arguments on blood and social policy, summarized in the present article, relevant to the Brazilian debate? Unfortunately, petty politics and parochial interests have dominated the debate in Brazil, particularly in the Congress. In hopes that the Congress may be pressed to consider the real interests of the population in the future, this paper wishes to attract the attention of the professional groups and social movements involved in the fight against transfusion-related AIDS (which only 3 years ago accounted for 8% cases of the disease) to the technical and organizational issues discussed in the international literature. Specifically. the paper attempts to contribute to the current effort of revision of the legislation approved by the 1988 Constitution Assembly, which completely ignored crucial issues on the nature and operation of blood systems, such as those raised in the Titmuss-Arrow controversy.